Houve uma consciência política a montante da decisão de te envolveres neste assunto – para além da questão puramente humanitária – de que existem implicações em termos da acção política das instituições ao mais alto nível?
Não posso dizer que eu estivesse particularmente consciente das várias dimensões que tem este trabalho extremamente complexo antes de começar a fazer o resgate marítimo. Porque é que eu decidi juntar-me? A certa altura, em 2016, que foi o pico da atenção mediática sobre o assunto, víamos todos os dias, na televisão e nos jornais, imagens horríveis de pessoas nos campos de refugiados, ou a afogarem-se no mar Mediterrâneo. E, na altura, com o pouco conhecimento que eu tinha sobre este assunto, tinha a sensação de que devia fazer alguma coisa. Sem ter uma análise política particularmente profunda, só por assistir a uma catástrofe que estava a desenrolar-se à minha frente, levava-me a pensar que, sendo um europeu relativamente privilegiado, sem contas para pagar, sem filhos para cuidar, sem grandes responsabilidades, devia contribuir de alguma forma para que isto acabasse.
«A política está no início disto. Só se tivesse havido um terramoto ou um furacão não era a política que estava no início do fenómeno. Mas é uma questão que tem exclusivamente a ver com políticas de fronteira, nomeadamente da União Europeia.»
E depois, por outro lado, talvez aí sim com uma perspectiva mais política, embora muito pouco profunda também, pensava que já não se podia chamar a isto uma «crise». Estavam pessoas a morrer aos milhares há anos. Estávamos em 2016, os números já tinham aumentado significativamente. Já tinha morrido muita gente num desastre de 2013. Em 2014 morreram milhares de pessoas, 2015 mais ainda, 2016 mais ainda… e a sensação que eu tinha é que era preciso atribuir responsabilidades, porque já tinha havido tempo de resolver isto. Já não era uma coisa que nos tinha apanhado desprevenidos. Então eu pensava que quem tinha a responsabilidade de tirar as pessoas desta situação eram os Estados europeus e que, no mínimo, estavam a recusar-se a fazê-lo. Portanto, tinha uma certa perspectiva humanitarista e, por outro lado, uma perspectiva de protesto também, que me levou a ir para lá.
Uma vez lá, juntei-me à minha primeira missão em Setembro de 2016 e gosto de pensar que consegui ao longo destes últimos anos criar uma consciência política muito mais abrangente daquilo que de facto se passa ali. Porque resulta claro, quando pomos lá os pés, que os Estados europeus não estão a ignorar o problema: estão activamente a torná-lo pior. Nas televisões e nos jornais costumamos ver tratada esta tragédia das mortes aos milhares no Mediterrâneo como uma espécie de catástrofe natural. Aquilo acontece e nós, europeus, ou ajudamos e somos boas pessoas, ou não ajudamos e pronto. Como se fosse neutra a nossa acção. Na verdade, não tem nada a ver com isso, as pessoas estão nesta situação por razões políticas. A política está no início disto. Só se tivesse havido um terramoto ou um furacão não era a política que estava no início do fenómeno. Mas é uma questão que tem exclusivamente a ver com políticas de fronteira, nomeadamente da União Europeia. As pessoas não se põem num barco, pagando até mais do que pagariam por uma passagem de avião, se tivessem maneira de o fazer de avião, com segurança. Não faz sentido nenhum. Só não o fazem porque não podem. Então põem-se nestes barcos. Porque não têm outra opção. E isso é uma escolha política deliberada. Isto assim, visto de uma perspectiva muito abrangente.
Se nos aproximarmos um bocadinho, aí vemos todo o tipo de acções dos Estados que conscientemente tornam a vida destas pessoas pior e tornam a possibilidade de sobreviver mais baixa. Para começar, temos toda a criminalização da ajuda humanitária, que em 2017 e 2018 atingiu todas as tripulações de resgate do Mediterrâneo central. Depois temos o financiamento a Estados autoritários ou a milícias armadas de países terceiros completamente criminosos, como a chamada guarda costeira líbia. Depois, nos países de fronteira, como a Itália, há novos decretos que dificultam ainda mais o trabalho de resgate, por intermédio de burocracias. Portanto, eu tinha uma perspectiva humanitária e superficialmente política, quando entrei, e hoje vejo este trabalho como uma acção fundamentalmente política, com uma vertente humanitária.
Dirias que isso é transversal nas várias organizações? Ou há também ajuda humanitária que está desligada das questões política subjacentes aos problemas? Há diferentes perspectivas?
Certamente que há diferentes perspectivas. A Jugend Rettet, que operava o navio Iuventa, onde eu comecei este trabalho, era uma organização muito pequena. Temos a Sea Watch, que actualmente já tem alguma dimensão, mas ainda assim não tem nada a ver com essas mega organizações. E, portanto, naturalmente, tendo histórias diferentes, também têm perspectivas diferentes. O que eu diria é que houve também uma evolução no sentido de uma politização das organizações. Seja porque as organizações decidiram tomar posições políticas mais vincadas, seja porque as que não eram políticas foram substituídas progressivamente pelas mais politizadas. E a razão, penso eu, é que às tantas se tornou inevitável admitir que isto é um problema fundamentalmente político. Porque a partir do momento em que as tripulações começam a ser criminalizadas, em 2017 – a nossa foi a primeira –, no início de 2018 não havia nenhum navio no mar. Todas as organizações retiraram os navios do mar e foram reunir para pensar o que fazer deste novo desenvolvimento. Não conseguindo, efectivamente, garantir a liberdade pessoal das tripulações, ainda que não tendo dúvidas relativamente à justeza do que estava em causa, era preciso decidir o que fazer. E as organizações que voltaram, voltaram com uma mensagem vincadamente política, dizendo que o facto de estarem a ser criminalizados não mudava em nada a necessidade daquilo que estavam a fazer. É necessário fazer isto. Talvez ainda mais necessário porque a oposição é tão forte. Criou-se uma ideia de que de facto não nos podíamos deixar intimidar. O que estávamos a fazer, na verdade, não só era moralmente correcto e legal, como até obrigatório legalmente. E, portanto, aceitámos as dificuldades como uma consequência inevitável do nosso trabalho e seguimos em frente.
Até certa altura as organizações articulavam com as autoridades dos países, do ponto de vista do procedimento de resgate: dirigiam-se a uma embarcação que estava à deriva, porque havia uma indicação das autoridades costeiras italianas. Como é que havia esta articulação e como é que se explica a contradição de depois terem sido movidos processos contra os membros destas organizações?
Basicamente, a perspectiva com que fazemos o nosso trabalho não mudou muito desde 2016, desde que eu comecei. O que mudou muito foi a perspectiva das autoridades relativamente a nós. Quando eu entrei, em 2016, a esmagadora maioria dos casos a que nós respondíamos eram primeiro sinalizados pelo Centro de Coordenação de Resgate Marítimo de Roma. É um órgão que faz parte do Estado italiano, quase todos os países costeiros o têm, e dividem as águas internacionais por áreas de responsabilidade de coordenação de resgate. Não são águas territoriais, são internacionais, mas têm jurisdições relativamente à responsabilidade do resgate. E nós estávamos constantemente em contacto com este centro e eles até nos chamavam de parceiros, a certa altura. Obviamente com perspectivas diferentes do que estávamos a fazer mas, ainda assim, a cooperar de uma forma bastante fluida com o objectivo final de resgatar o máximo número de pessoas possível. Isso foi mudando... Em 2017, com um crescimento enorme da extrema-direita em Itália, mas também no resto da Europa, começa a mudar a narrativa relativamente ao papel das ONG, o que se traduz numa cooperação cada vez menos activa por parte das autoridades. E, hoje, o que vemos é um cenário bastante obscuro nesse sentido, porque, não só os centros de coordenação de resgate praticamente não nos dizem nada, não nos dão informação relativamente a coordenadas onde possam estar os barcos em emergência, como a Frontex que tirou de lá os seus navios para não ter de resgatar estas embarcações, mantendo apenas os meios aéreos para fazer reconhecimento e passar as informações à chamada guarda costeira líbia, em vez de nos passar a nós. Para que a guarda costeira líbia possa retorná-los à Líbia, em violação da lei internacional. E para além disto, verifica-se ainda uma recusa em fornecer assistência em alto mar. Nós, até aqui, resgatávamos as pessoas, comunicávamos a este centro de coordenação que tínhamos resgatado tantas pessoas, em tal estado de saúde, combinávamos um rendez-vous e eles vinham com um navio da guarda costeira, italiano, da marinha ou da Frontex, apanhavam as pessoas em alto mar e levávam-nas em segurança para Itália ou para Malta.
«É uma espécie de violação da lei internacional por proxy, isto que a União Europeia faz. Embora, noutros sítios do Mediterrâneo, a União Europeia o faça até directamente, sem vergonha nenhuma, como na Grécia»
Hoje isto não acontece. Agora temos de passar semanas à espera de um porto seguro, porque pedimos que nos indiquem um porto para nós desembarcarmos as pessoas, que vêm numa situação extremamente precária, e tipicamente demoram semanas a fazê-lo, deixando as pessoas numa situação absolutamente insustentável. Um detalhe, que não é insignificante, é que, por causa desta demora, as ONG deixaram de recolher corpos. Antigamente, quando chegávamos tarde para alguém, e alguém morria no mar, nós recolhíamos o corpo para que depois, chegado a terra, pudesse ser identificado e se pudesse dar alguma paz à família, dizendo-lhe o que aconteceu. Hoje nós não podemos dar-nos a esse «luxo», porque não sabemos quando é que podemos descarregar o corpo. E é uma questão de saúde pública manter um corpo durante semanas sem refrigeração a bordo do navio. E, portanto, isto dá origem a situações absolutamente macabras, como a que aconteceu há dois anos com um navio dos médicos sem fronteiras, em que eles chegaram tarde a uma situação de emergência e encontraram-se de repente num mar de 130 corpos em águas internacionais e não resgataram ninguém. Passaram só. E foram se embora. E são 130 corpos que depois dão a costa, evidentemente. Só que enquanto derem à costa Sul, os Estados europeus não se incomodam…
Classificas de ilegal o retorno destas pessoas à Líbia porque a norma seria trazê-las para porto seguro. Podes explicar? Como é que a União Europeia financia este processo?
Exactamente. Existe um conceito na lei internacional que se chama non-refoulement, que é uma cláusula que proíbe o retorno de pessoas a países onde elas possam sofrer perseguição, violência, seja qual for o atentado à sua segurança. Portanto, imaginemos uma pessoa a fugir de um país em guerra: qualquer pessoa que agarre nela e a ponha de volta nesse país, está a incorrer numa violação directa da Lei internacional. Agora, desde 2017, que a Itália, em particular, e a União Europeia, em geral, fazem acordos com uma milícia, também ela envolvida no tráfico humano, a que chamaram guarda costeira líbia, precisamente para fazer este trabalho. Portanto, todos os anos vão milhões e milhões de euros dos contribuintes europeus para os bolsos desta milícia criminosa, com o objectivo de capacitá-la a chegar a águas internacionais, interceptar barcos que fogem da violência da Líbia e devolvê-los aos campos de detenção, que mais vale chamarmos de campos de concentração, que existem na Líbia, onde nós sabemos que existe tortura, existe venda de escravos, existe todo o tipo de violações de direitos humanos que possamos imaginar. E, portanto, é uma espécie de violação da lei internacional por proxy, isto que a União Europeia faz. Embora, noutros sítios do Mediterrâneo, a União Europeia o faça até directamente, sem vergonha nenhuma, como na Grécia.
«De certa forma, todos os conflitos no mundo são patrocinados por indústrias europeias e com autorização de governos europeus»
Temos o exemplo da guarda costeira grega. O que tem feito é, não só apanhar as pessoas em alto mar e levá-las para águas turcas, como também apanhar pessoas já desembarcadas nas ilhas Gregas, autenticamente raptá-las – existem inúmeros relatos – pô-las em carrinhas não identificadas, levá-las até ao porto, metê-las num barco e esse barco levá-las para águas turcas e deixá-las à deriva, num barco sem motor, ou qualquer coisa que flutue. Obviamente que morre gente assim, assassinadas de certa forma. Ou então acabam por ser arrastadas de volta para a Turquia, também em violação da Lei Internacional.
Para ir ainda a montante disto tudo, no caso da Líbia, por exemplo, é um importante factor a ter em conta a responsabilidade que a União Europeia tem também na desestabilização daquele país. O que levou aquele país a ser um lugar de onde tantas pessoas querem sair?
Sim, absolutamente. Quer dizer, a NATO bombardeou a Líbia em 2011, durante a primeira guerra civil. A segunda decorreu da primeira, mas a primeira foi causada directamente por acção dos países da União Europeia. Também não podemos lavar as mãos aí, de maneira nenhuma. Mas como não podemos lavar as mãos do que acontece na maior parte dos países de origem destes migrantes. Se quisermos ser extremamente simplistas: os maiores vendedores de armas do mundo, depois dos Estados Unidos da América, são essencialmente países europeus. De certa forma, todos os conflitos no mundo são patrocinados por indústrias europeias e com autorização de governos europeus.
Falaste de uma dificuldade acrescida nos últimos anos, com o crescimento da extrema-direita na Europa, e em Itália em particular. Mas isso significa que existe uma contradição entre as instituições da União Europeia e a narrativa da extrema-direita que está a dificultar o trabalho destas organizações? Ou existe um diálogo entre estes vários poderes? O que poderia a União Europeia fazer de diferente face a políticas nacionais que são mais abertamente contra o resgate e o acolhimento de migrantes?
Bem, para já, é preciso esticar bastante a imaginação para achar que a União Europeia podia ter como motivação de facto, sei lá, o cumprimento dos direitos humanos ou salvar o maior número de vidas possível. Estamos longíssimo disso e, aliás, é bastante enganador acharmos que a culpa do que está a acontecer é da extrema-direita. Não é. É dos partidos do establishment, do centro-esquerda e do centro-direita europeus. E reforço isto dizendo que, em Itália, os governos que fizeram pior pelos direitos dos migrantes, nas últimas décadas, foram os governos do PD, Partido Democrático, do centro-esquerda. Foi com eles que começou a criminalização. Marco Minniti, enquanto era ministro do Interior, foi quem desenhou o acordo com a Líbia, com a guarda costeira líbia. Portanto, temos os partidos do establishment à cabeça da destruição dos direitos dos migrantes na Europa. Dito isto, nesse cenário hipotético em que a União Europeia teria, de facto, uma perspectiva, se não politicamente contra isto, pelo menos humanitarista, que nem isso tem, uma coisa que era absolutamente importante fazer era distribuir a responsabilidade de lidar com os fluxos migratórios. Por várias razões, mas principalmente por causa do regulamento de Dublin que não alterámos desde quase a Segunda Guerra Mundial. Este é um regulamento que, entre outras coisas, põe uma responsabilidade desmedida nos países de fronteira.
«Boa parte da extrema-direita europeia é composta por partidos que vivem da imigração, na verdade. Paradoxalmente. Se deixar de existir o problema da imigração, deixa de haver Salvini»
Porque quando um migrante indocumentado entra num país de fronteira, vamos dizer, na Hungria, e sem qualquer intenção de ficar na Hungria, depois chega à Alemanha, a Alemanha pode invocar o regulamento de Dublin para deportar esta pessoa para a Hungria, para que a Hungria lide com essa pessoa e faça todo o processo de asilo, se for o caso disso, ou de repatriamento. Obviamente, toda a gente sabe que a maior parte dos migrantes não quer ficar na Hungria. Passam na Hungria porque é uma porta de entrada até ao Reino Unido, à Alemanha, à França, à Suécia, seja onde for. Porque é que, ainda assim, a narrativa anti-imigração cresce tanto na Hungria? Por causa disto, por causa desta responsabilidade desmedida que a União Europeia põe nos países de fronteira. É preciso alterar Dublin. E acho que uma coisa muito significativa é que, por exemplo, em Itália, a participação que a Liga Norte, por exemplo, partido de extrema-direita que hoje está no governo, na sua intervenção no Parlamento Europeu, bloqueou todas as possibilidades de alterar o regulamento de Dublin. O que é estranho, não é? Mas não é estranho se pensarmos que boa parte da extrema-direita europeia é composta por partidos que vivem da imigração, na verdade. Paradoxalmente. Se deixar de existir o problema da imigração, deixa de haver Salvini. Não existe, não aparece, porque é a única bandeira dele, a única coisa que ele defende. Se a União Europeia tivesse feito um bom trabalho a distribuir, de facto, a fazer um sistema que funcionasse, de acolhimento e distribuição dessa responsabilidade, isso teria tirado, julgo eu, muito espaço de crescimento à extrema-direita nos países de fronteira. Digo, Hungria, Grécia, Itália, Espanha, principalmente.
Se estas pessoas fossem acolhidas segundo estes princípios, de respeito pelos direitos humanos e garantia da igualdade, significava que os países europeus teriam de lhes conceder uma série de direitos, nomeadamente laborais. Mas isto é um problema também para países onde esses direitos laborais não estão totalmente salvaguardados, até para as próprias populações nacionais… Como é que se lida com isto?
Temos observado na maior parte dos países europeus uma dualização do mercado de trabalho. Os precários ficam mais precários e os seguros ficam ligeiramente mais seguros, ou pelo menos mantêm-se como estão, quem tem contratos permanentes e por aí adiante. Acho que os migrantes, particularmente os indocumentados, têm um papel muito importante aqui, no sentido em que formam uma espécie de sub-proletariado europeu. Em Portugal, até há pouco tempo, eram 300 mil os migrantes que estavam a trabalhar e a pagar impostos e segurança social, que tinham feito uma manifestação de interesse no SEF, para ter uma autorização de residência, e esbarravam no atraso deste serviço. Têm 90 dias de prazo legal para dar às pessoas uma resposta final e demoram tipicamente dois, três, quatro anos a dar. O que significa que temos literalmente centenas de milhar de pessoas a trabalhar as suas contribuições, literalmente a sustentar-nos uma parte da segurança social, mas sem direitos laborais.
«Enquanto houver 300 mil migrantes dispostos, por estarem desesperados, a trabalhar por 200 euros, não há razão para os patrões contratarem portugueses, ou seja quem for, por um ordenado decente.»
A verdade é que temos escravatura em Portugal: temos pessoas a trabalhar por um contrato de trabalho que não recebem. Temos pessoas que recebem abaixo do ordenado mínimo, temos pessoas que não têm fins-de-semana, que trabalham 12, 14, 16 horas por dia. Portanto, mesmo em países onde alguns dos direitos laborais estão conquistados e vigoram, como em Portugal, acaba por existir um aproveitamento da vulnerabilidade dos migrantes indocumentados para flexibilizar ainda mais o mercado laboral. Portanto, deixando mais ou menos intocados esses direitos laborais dos nativos, dos que já cá estão, mas aproveitando toda uma mão-de-obra estrangeira gigantesca, que nem sequer sabemos o quão grande é pela Europa fora – porque muitas destas pessoas, não só estão indocumentadas, como nem sequer fizeram uma manifestação de interesse – a sustentar boa parte das nossas indústrias, que têm os trabalhos mais difíceis.
É por isso que eu acho que é extremamente significativo dizer que os direitos dos migrantes são direitos dos portugueses. Enquanto houver 300 mil migrantes dispostos, por estarem desesperados, a trabalhar por 200 euros, não há razão para os patrões contratarem portugueses, ou seja quem for, por um ordenado decente. Creio que é estratégico e absolutamente necessário que a luta pelos direitos laborais inclua os trabalhadores migrantes e os mais precários dos mais precários.
O que pensas da dualidade daquilo a que se assistiu quando em Fevereiro de 2022 houve aqueles desenvolvimentos dramáticos na guerra na Ucrânia? Porque é que achas que, de repente, era evidente que se devia acolher as pessoas que fugiam de uma situação como aquela, e de terem sido postos todos os meios à disposição?
Eu acho que posso falar por mim e por muitas das pessoas que trabalham com migrantes e refugiados, em Portugal e pela Europa fora, quando digo que o sentimento que temos é extremamente agridoce. Porque, por um lado, vimos refugiados ucranianos a serem recebidos de uma forma sem precedentes, sendo movidos mundos e fundos, criadas «vias verdes» para atribuir protecção às pessoas. Por exemplo, o SEF criou uma plataforma online, em poucos dias, após o início da guerra, através da qual uma família ucraniana podia inscrever-se e obter protecção internacional no espaço de 24 horas. Isto é inimaginável para qualquer pessoa de qualquer outra nacionalidade. E é fundamentalmente bom. É necessário. E repara: é o que nós temos andado a pedir nos últimos anos para todas as pessoas nestas situações de vulnerabilidade. Mas sempre nos foi dito que era impossível, que existem procedimentos, que temos de seguir, que não permitem resolver as coisas com a urgência necessária. Aqui, no caso dos refugiados ucranianos, ignorámos esses procedimentos, arranjámos uma forma muito mais rápida de os ajudar. Aparentemente não aconteceu nenhuma catástrofe, não é? Não aconteceu nada. Aqueles medos todos que são evocados quando aceitamos muitos refugiados e muitos migrantes, de que vai aumentar a criminalidade... Não aumentou. Que vai ser insustentável para a segurança social... Também não parece. Portanto, todos esses medos que são mitos, não se verificaram nessa situação.
«O problema foram as inúmeras barreiras burocráticas que foram postas à frente de todas as outras pessoas, muçulmanas, negras, seja o que for, e que não foram postas à frente dos ucranianos, cristãos, brancos…»
Então, na verdade, isto até pode proporcionar uma oportunidade de mostrar, finalmente, não só que era possível fazer, como foi feito. Então, podemos decidir estender essa capacidade a todas as pessoas que precisam. Esta foi a parte doce do agridoce: finalmente conseguimos receber pessoas que precisam de uma forma expedita. Com problemas, sem dúvida, mas de uma forma completamente sem precedentes, que torna evidente a discriminação inacreditável relativamente a refugiados de qualquer outra nacionalidade. Veja-se os casos dos refugiados sírios, por exemplo, ou refugiados afegãos, ou iraquianos, presos durante anos a fio em campos de refugiados na Grécia. Quando houve o incêndio em Mória, Portugal comprometeu-se a receber 500 menores não acompanhados que vinham desse desastre. Dois anos depois, não tínhamos recebido metade. E estas pessoas vêm num dia. É absolutamente incompreensível que haja esta diferença. Agora, acho que é importante dizer que a diferença fundamental entre a maneira como acolhemos, por exemplo, sírios, e a maneira como acolhemos refugiados ucranianos, no ano passado e neste ano, é fundamentalmente estatal. Repara que, em 2015, com a chegada aos milhares de refugiados sírios às costas gregas, a sociedade civil portuguesa mobilizou-se a sério. Houve 350 organizações da sociedade civil portuguesa que se juntaram para fazer a plataforma de apoio aos refugiados e estavam aqui de braços abertos para receber as pessoas. Qual é que foi a diferença? As pessoas não chegaram. Porquê? Porque o programa de recolocação foi uma fachada. Não chegavam pessoas, basicamente. Chegaram meia dúzia de famílias. Filmámos essas famílias para fingir que estava tudo a funcionar bem. Foi uma ajuda irrisória face à quantidade de pessoas que chegaram à Grécia. O problema foram as inúmeras barreiras burocráticas que foram postas à frente de todas as outras pessoas, muçulmanas, negras, seja o que for, e que não foram postas à frente dos ucranianos, cristãos, brancos…
«Obviamente, [as pessoas nos campos de refugiados] são postas nesta situação de forma absolutamente deliberada, porque já vimos com o caso ucraniano que existiam formas de tornar o processo mais expedito»
Outro caso, absolutamente grotesco, foi o massacre de Melilla. Foram massacradas pelo menos 40 pessoas pela polícia e militares espanhóis, e polícia e militares marroquinos, na fronteira entre Melilla e Marrocos. Eram duas mil pessoas, na sua maioria sudaneses, que tentavam entrar em Espanha para pedir asilo. Portanto, vindos do Sudão tinham 92% de probabilidade de conseguir asilo, porque de facto o Sudão do Sul é um sítio de extrema violência nos dias que correm. Ora, são tão refugiados quanto os que vêm da Ucrânia. E, não só 40 pessoas foram mortas, como as que sobreviveram, a esmagadora maioria foi empurrada para trás e distribuída por pontos aleatórios pelo meio de Marrocos. Portanto, foram-lhes negados completamente os direitos. O Pedro Sánchez, primeiro-ministro de Espanha, veio congratular as autoridades de ambos os países por terem defendido as fronteiras de Espanha de um ataque violento, quando foram as autoridades que mataram 40 pessoas. Uma prática reiterada, com dois pesos e duas medidas, absolutamente inaceitável.
Em relação aos campos de refugiados, também há muitas organizações que fazem trabalho humanitário nestes lugares, situação em que vivem milhares de pessoas já na Europa, em condições que podem ser consideradas sub-humanas, em soluções que são proporcionadas por Estados europeus. Não é só um problema nos países de origem, no qual as instituições europeias têm responsabilidade, não é só um problema de fronteira, é um problema de pessoas que já vivem em território europeu…
Sim, é isso. Temos campos de refugiados, na verdade, de ambos os lados da fronteira, financiados pela União Europeia. Em que temos milhares ou dezenas de milhar de pessoas a viver em situações extremamente precárias. Eu trabalhei com a plataforma de apoio aos refugiados na Ilha de Lesbos, nos campos de refugiados ali. E vi, em Mória, milhares de tendas de Verão em cima do asfalto, num sítio em que neva durante o Inverno, onde as pessoas morrem de hipotermia porque não têm como se aquecer. Em situações extremamente precárias, onde ficam meses ou anos a fio à espera de uma resposta que pode ser negativa. E sem possibilidade de trabalhar, sem possibilidade de fazer nada de jeito, presos naquela ilha.
«Há um fio que liga os centros de detenção onde as pessoas são torturadas na Líbia, que liga ao massacre na Melilla, que liga aos pushbacks ilegais da guarda costeira líbia paga pela União Europeia, que liga aos campos de refugiados na Grécia e no resto da Europa, que liga à criminalização da ajuda humanitária.»
E, obviamente, são postas nesta situação de forma absolutamente deliberada, porque já vimos com o caso ucraniano que existiam formas de tornar o processo mais expedito. Infinitamente mais expedito. Aí provámos que não havia razão absolutamente nenhuma para manter as pessoas nestas situações. E até saiu um relatório que foi publicado pelo The Guardian, que dizia que 40% da população dos campos de refugiados na Grécia estava a passar fome. Isto só pode ser deliberado. Em solo europeu, estamos a falar de lugares que são geridos pelo Estado. É inacreditável que isto aconteça. Agora, acho que, na verdade, se olharmos para isto, há um fio que liga todas estas coisas. Há um fio que liga os centros de detenção onde as pessoas são torturadas na Líbia, que liga ao massacre na Melilla, que liga aos pushbacks ilegais da guarda costeira líbia paga pela União Europeia, que liga aos campos de refugiados na Grécia e no resto da Europa, que liga à criminalização da ajuda humanitária. Há todo um fio que liga estas coisas todas, que é uma criminalização da própria migração.
«Porque quando tu crias barreiras legais à entrada de pessoas, então a pessoa ao entrar já está a violar uma lei. Já pode ser igualado a um criminoso.»
E eu acho que isto acontece, não porque não queremos migrantes em solo europeu, isso é impossível, nunca vamos conseguir fazer um poço à volta da Europa, e na verdade não queremos porque precisamos desse tal sub-proletariado, que são imigrantes dispostos a trabalhar por nada. Mas precisamente para manter esse estatuto. Porque quando tu crias barreiras legais à entrada de pessoas, então a pessoa ao entrar já está a violar uma lei. Já pode ser igualado a um criminoso. E sendo um criminoso, aos olhos da opinião pública, pode ser tratado de qualquer maneira. Então já se torna justificado que uma pessoa indocumentada chegue ao Reino Unido, peça asilo, mas, porque passou uma fronteira de maneira irregular, seja deportada para o Ruanda. Já se torna, aos olhos da opinião pública, uma coisa de algum modo aceitável. Acho que todas estas coisas jogam nesse sentido. Não é que a extrema-direita ou o establishment europeu queiram acabar com os fluxos migratórios. Nós precisamos dos migrantes. A segurança social em Portugal estaria um desastre se não houvesse migrantes em Portugal. Queremos é que eles trabalhem por pouco. E que concorram para o objectivo de flexibilização do mercado laboral.
Foste ilibado dos processos que estavam em investigação, mas não foram todos ilibados nem arquivados na mesma altura. Tens voltado a fazer operações de resgate depois de terem caído as acusações?
Sim, o caso não foi arquivado, mas eu fui ilibado. Éramos dez pessoas, seis de nós não fomos acusados, não fomos levados a tribunal. Ou seja, estávamos sob investigação, fomos constituídos arguidos e em 2021 saiu uma acusação formal que visava apenas quatro dos dez. Portanto seis de nós fomos deixados ir, digamos, eu incluído. O que significa que tenho quatro colegas meus em tribunal neste momento. A investigação começou em 2016, foi tornada oficial em 2017, fomos constituídos arguidos em 2018 e a acusação formal saiu só em 2021. E estamos em 2023 e ainda está o navio arrestado e os meus colegas a ser julgados. E está nesse ponto. Os advogados estimam que isto ainda demore vários anos a ser resolvido, muito embora seja o único caso do meu conhecimento, destes semelhantes, ainda de pé. De acusações gravíssimas como esta de auxílio à imigração ilegal e tráfico humano, que depois podem levar a 20 anos de prisão... Todos os outros foram arquivados e as pessoas foram ilibadas. Essa é uma luta com a qual ainda nos deparamos. Eu, pessoalmente, tendo a sorte de já estar ilibado, voltei ao mar. Desde 2021 que estou de volta no activo. Essa organização desapareceu entretanto, porque ficámos sem navio. E então juntei-me à Sea Watch, em 2021, e tenho estado a fazer missões sempre que tenho disponibilidade, nos navios deles.
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