Em Dezembro, o jornalista colombiano Mario Jursich Durán escrevia assim: «O assassinato é a nossa principal forma de parentesco. Todos na Colômbia temos um pai, uma mãe, um filho, uma filha, um irmão, uma irmã, um tio, uma tia, um primo, uma prima, um sobrinho, uma sobrinha, um parente distante, um amigo, uma amiga, um conhecido – alguém que conhecíamos de vista, alguém por quem sentíamos simpatia, alguém de quem ouvimos falar. E com todos eles nos une o sangue derramado por mãos cainitas [fratricidas].»
Em finais de Setembro hesitei se haveria gancho noticioso para escrever sobre violência na Colômbia. Agosto tinha sido particularmente duro: «Três jovens assassinados em Venecia» (24 de Agosto); «Seis pessoas assassinadas em Tumaco: três massacres em menos de 24 horas» (22 de Agosto); «Cinco vítimas deixa o massacre perpetrado em Arauca» (21 de Agosto); «Massacre de Samaniego: uma nova matança de jovens põe em relevo o recrudescimento da violência na Colômbia» (16 de Agosto). São títulos do El Espectador. Ainda na quarta-feira o AbrilAbril noticiava mais assassinatos e um número – 1040 – de líderes eliminados desde o acordo de Paz com as FARC (Novembro de 2016). Diariamente, o gancho noticioso na Colômbia é o assassinato.
«Dados recentes da ONU revelam que os massacres aumentaram 30% nos primeiros anos do governo Duque. O número de massacres de 2019 é o mais alto desde 2014. "Paz com legalidade", portanto.»
A banalização é tal que mais um massacre não chega aos media internacionais. A atenção dá-se quando há uma explosão colectiva, manifestação espontânea, quando os colombianos saem à rua, o que explica que jornais como o Público ou o Observador tenham noticiado protestos de Setembro, mas nada sobre massacres no Verão. Ironicamente, o DN é quem mais noticia massacres mas depois fez chamada de capa, no início de Outubro, com uma carta do presidente Iván Duque (comemorando dois anos de mandato): «Paz com legalidade é a nossa política de desenvolvimento social e de transformação das condições de vida de milhões de colombianos, que pusemos em prática desde o início do nosso governo, procurando a estabilização dos territórios mais afetados pela violência e pela pobreza.» Dados recentes da ONU revelam que os massacres aumentaram 30% nos primeiros anos do governo Duque. O número de massacres de 2019 é o mais alto desde 2014. «Paz com legalidade», portanto.
Mas os números da Misión de Observación Electoral são aterradores – não apenas de assassinatos, mas de várias formas de violência, incluindo de género: 67% dos municípios onde decorreram são zonas do Programa de Desenvolvimento com Enfoque Territorial. Estes territórios foram, durante décadas, afectados pela violência (das guerrilhas, dos grupos armados paramilitares ou do próprio Estado), e que, no rescaldo do processo de paz, receberam uma série de programas de investimento e estabilização. O estudo usa a expressão «grupo armados legais» para descrever os actores. Isto porque, na Colômbia, há «grupos armados ilegais»: o braço armado das FARC foi oficialmente desmantelado (as dissidências actuais são ilegais), e o ELN não chegou a acordo de paz. Os actores desta violência são «grupos armados legais», paramilitares «protegidos» pelo Estado, que o Estado deixa impunemente agir em regiões que deveria defender, ou o próprio Exército colombiano.
«Quem resiste fá-lo para ter acesso a terra, a rios, a justiça social, a educação, às vezes, pelo direito a atravessar uma propriedade ou simples acesso à torneira de água num bairro popular.»
Duque escreve: «Comprovámos que a paz se constrói nos territórios e não tem qualquer ideologia, nem partido político. Comprovámos, também, que a paz não pode ser utilizada com fins eleitorais e populistas para dividir a nação.» A ironia desta declaração está na palavra paz: é que é a guerra que não pode ser utilizada com fins eleitorais e populistas para dividir a nação. E é a guerra, a violência, que não parou e tem vindo a aumentar sob o seu mandato, que continua a dividir os colombianos entre vivos e mortos.
Os únicos inimigos da paz, diz Duque, «são aqueles que têm pretendido, durante décadas, impor-se à sociedade colombiana pela força das armas». Grande parte dessa força foi desmantelada com os processos de Havana, com o render incondicional das FARC, com a entrega das armas, com a integração dos ex-combatentes na sociedade civil, e até o presidente Santos recebeu um Prémio Nobel da Paz. A guerra, essa, continua: a do Estado colombiano, ou de grupos armados, contra sectores de resistência do próprio povo. Quem resiste fá-lo para ter acesso a terra, a rios, a justiça social, a educação, às vezes, pelo direito a atravessar uma propriedade ou simples acesso à torneira de água num bairro popular. Não estamos a falar, como por vezes se crê, de gangsters que se atravessam no caminho de gangsters pelo controlo de narcotráfico ou minério. Esses chegam-nos em parangonas de extradições de chefes do narco. Estamos a falar de invisíveis: sindicalistas, líderes políticos, jovens estudantes, jornalistas, mulheres em apoio a vítimas de crimes sexuais, ex-combatentes que viveram na selva durante 30 anos e que deixaram as armas porque pensavam que o Estado os protegeria. Isto é: gente que se atravessa diante de grupos armados para conseguir viver.
«É, como diz um amigo, um país que contraditoriamente se orgulha de ter sido dos poucos a «escapar» às ditaduras latino-americanas do século XX assente na ilusão democrática de uma enorme vala comum.»
A advogada defensora de Direitos Humanos Diana Sanchéz Lara dizia no El Espectador em Agosto aquilo que ninguém afecto a Duque (e ao seu pai ideológico, Álvaro Uribe) quer repetir: «Quem governa a Colômbia há dois anos são aqueles que promoveram o NÃO ao referendo sobre a paz. (...) Necessitavam que o país continuasse com o conflito, a violência, a corrupção alimentada por alianças com o narcotráfico e o paramilitarismo e, a passos, justificar um orçamento militar elevado, que hoje ascende aos [oito mil milhões de euros].»
Temos, portanto, territórios onde antes estavam as FARC e onde agora há um vazio de poder. Ele dá-se porque o Estado protege grupos que, com o desaparecimento das FARC, têm acesso a recursos antes intactos. Territórios ricos em minérios (cobre, ouro) e por explorar (madeiras, gado) são zonas que o Estado considera de interesse estratégico, fonte de disputas territoriais de multinacionais armadas de capangas, avançando pela floresta antes virgem ou expropriando terras indígenas e afro consagradas na Constituição, forçando populações a migrar.
Não há paz na Colômbia, apesar do Prémio Nobel e de um presidente em negação. E agora já não pode dizer que são as FARC, a sua incipiente dissidência, ou até o ELN, com penetração irrisória. Agora o governo não pode esconder-se dos mortos. Porque todos são civis. São mais quase 50 anos de conflito, mais de seis milhões de refugiados, mais 260 mil mortos, mais de 80 mil desaparecidos, num país em que 1,1% dos proprietários de terra concentram 52,2% da terra arável, e desses 21,5 milhões de hectares, apenas 4,1 milhões são cultivados. Estes são os números da ONU. É, como diz um amigo, um país que contraditoriamente se orgulha de ter sido dos poucos a «escapar» às ditaduras latino-americanas do século XX assente na ilusão democrática de uma enorme vala comum. Ou, como diz outro: é «um Estado bárbaro», em que a vida não vale nada e a morte pode valer muito dinheiro.
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