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As lições da Batalha de Cable Street

De que forma uma manifestação de 1936 nos pode dar ânimo para os combates antifascistas de hoje?

Mural assinalando, no local, a Batalha de Cable Street. 
Mural assinalando, no local, a Batalha de Cable Street. CréditosDR

Na semana passada, dezenas de milhar de racistas, mobilizados sob o pretexto de uma notícia que sabiam ser falsa, agrediram imigrantes, incendiaram carros, destruíram bibliotecas, atacaram mesquitas e cercaram hotéis onde se alojavam refugiados.

Esta explosão do ódio, alimentada pelo agravamento das condições de vida e a desindustrialização de grande parte do território do Reino Unido, foi criada pelos órgãos de comunicação social, redes sociais nas mãos de bilionários, políticos conservadores e de extrema-direita que conseguiram criar um consenso, em muitos britânicos, de que os problemas existentes no país estão ligados ao número de imigrantes e refugiados que aí vive.

No Reino Unido, como em toda a Europa, os ricos estão cada vez mais ricos, o capitalismo financeiro produz a destruição criativa dos postos de trabalho e dos direitos sociais com o aumento estratosférico dos dividendos num capitalismo cada vez mais de casino, mas a culpa de as novas gerações irem viver pior que as anteriores é atribuída aos trabalhadores imigrantes.

O discurso do ódio é possível por que há muito que ele é difundido e propagandeado todos os dias, estabelecendo que há humanos e outros seres de segunda classe. Isso é amplamente visível, por exemplo, na forma como a comunicação social e os governantes tratam a guerra na Palestina. Vemos todos os dias morrerem crianças, mulheres e homens, sob os nossos olhos, numa guerra em directo. Mas essas pessoas podem ser mortas, sem que ninguém faça nada para parar este genocídio.

Os governos da Europa reprimem as manifestações contra Israel, como em França e na Alemanha; proíbem conferências, em Berlim, sobre o que se passa em Gaza e despedem professores universitários que defendam os palestinianos, como Jodi Dean e Nanci Fraser. Aqui, em Portugal, comentadores e políticos - do Chega ao PS - cantam loas ao embaixador de Israel e disputam fotografias com o representante de um Estado genocida, como se de medalhas se tratassem.

Temos um mundo em que há povos que têm mais direito à vida que outros. No Iemen, Somália, Palestina, Sahara Ocidental a vida não vale nada aos olhos da autodenominada «opinião pública mundial», que é o nome atribuído, na comunicação social, aos aparelhos ideológicos de Estado dos poderes do mundo ocidental.

O neoliberalismo e o imperialismo, como sempre, abriram alas ao discurso do ódio racista. Temos um sistema económico que não dá direitos sociais e políticos aos trabalhadores imigrantes que vivem nos países europeus, para que eles possam ser explorados abaixo do salário mínimo e que pressionem para baixo os salários dos outros trabalhadores.

Há uns anos, pensando os negros tempos em que vivemos, o historiador David Rosenberg publicou um artigo, na revista britânica Tribune, sobre a chamada Batalha de Cable Street, em que dezenas de milhares de antifascistas derrotaram uma marcha fascista que pretendia atacar um bairro de maioria judaica em Londres.

Quando, a 4 de Outubro de 1936, o líder fascista britânico,  Sir Oswald Mosley, 6º Baronete de Ancoats, ameaçou mobilizar «quatro colunas de marcha»  para invadir as ruas de East End mais povoadas por judeus, os comunistas e organizações antifascistas judias opuseram-se determinantemente. Em dois dias, recolheram quase 100.000 assinaturas de residentes locais numa petição que exigia que o ministro do Interior proibisse a marcha de Mosley. O governo ignorou-a, invocando a liberdade de expressão.

O Conselho do Povo Judeu Contra o Fascismo e o Antissemitismo, comunistas e sindicalistas não baixaram os braços. Distribuíram milhares de panfletos apelando: «Esta marcha não pode acontecer».

No dia da marcha fascista, foram mobilizadas tantas dezenas de milhares de pessoas que bloquearam completamente Gardiners Corner, em Aldgate, a porta de entrada para o East End, gritando: «não passarão».

A polícia a cavalo carregou sobre a multidão anti-fascista, mas não conseguiu abrir caminho para os fascistas. Mosley esperou em vão na Royal Mint Street, perto da Torre de Londres, que lhe fosse dito para iniciar a sua marcha.

Por fim, a polícia tentou redirecionar a marcha mais para sul, através da Cable Street, uma artéria estreita da periferia da cidade que ia em direção às docas. Os primeiros dois terços da Cable Street eram quase exclusivamente habitados por judeus, o último terço era maioritariamente irlandês. Mosley tinha tentado cativar os irlandeses com as fake news da época que garantiam que os judeus tinham apoios sociais, casas melhores e ganhavam mais que os irlandeses. Mas o discurso de classe real falou mais alto que a invenção do racismo. Nesse dia, os estivadores irlandeses deslocaram-se ao extremo judeu da Cable Street para ajudar a construir barricadas.

A polícia acabou por desalojar a primeira barricada, sem se aperceber de que havia mais barricadas. Os agentes ficaram apanhados entre as barricadas, foram bombardeados com objectos atirados das janelas dos apartamentos pelas mulheres de Cable Street. Perante a resistência, a polícia recuou e disse a Mosley que o seu plano de marchar no East End estava sem efeito.

O impacto desse dia foi profundamente sentido por ambos os lados. Os antifascistas, especialmente os da comunidade judia, ganharam confiança e estavam determinados a solidificar a unidade que tinham forjado. O comunista judeu Phil Piratin, que desempenhou um papel estratégico fundamental nesse processo, disse: «Em Stepney nada tinha mudado fisicamente. As casas pobres, as ruas de má qualidade, as oficinas com más condições eram as mesmas, mas as pessoas tinham mudado. As suas cabeças pareciam estar mais altas e os seus ombros mais direitos. O terror tinha perdido. As pessoas sabiam que o fascismo podia ser derrotado se se organizassem para o fazer.»

Como conclui Rosenberg: «Em última análise, os sentimentos e crenças maliciosas que o movimento fascista de Mosley representou ao longo da década de 1930 só podiam manipular a consciência das pessoas numa sociedade que permitia uma profunda desigualdade social e económica, desemprego em massa, salários baixos, habitação precária, acesso deficiente à educação, negligência por parte dos que detinham o poder e a riqueza, desespero generalizado. Se ao menos estes problemas estivessem confinados ao passado. Aqueles que reconhecem hoje a forma perniciosa como a política do ódio se propaga, devem expor e combater tanto os problemas sociais e económicos subjacentes como os abutres que deles se alimentam. E, talvez, ao fazê-lo possamos inspirar-nos e tirar ideias das pessoas comuns que, no turbilhão dos anos 30, ignoraram os conselhos vazios dos que tinham vidas mais confortáveis e uma visão mais cega, e encontraram formas colectivas de enfrentar estes problemas com tanta coragem, imaginação e determinação.»

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