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Luta de classes em tempo de pandemia

As consequências da pandemia sublinham desigualdades económicas já existentes e revelam as contradições do capitalismo na busca incessante do lucro sobre a satisfação das necessidades básicas da humanidade.

A enfermeira Edith Ihejirika, empunhando um cartaz com os dizeres «Cuidados de saúde salvam vidas» foi uma das participantes num indignado protesto contra a falta de máscaras e luvas, realizado junto às urgências do Centro Médico Jacobi, no bairro do Bronx, em Nova Iorque, EUA, a 28 de Março de 2020
CréditosJ.C.Rice / New York Post

A pandemia do SARS-CoV-2 tem sido retratada um pouco por todo o mundo como uma «guerra», médicos e enfermeiros estão «na linha da frente», há uma «corrida de armas» global por uma vacina contra um «inimigo invisível«, mas todos temos de estar «mobilizados», pois este inimigo afecta todos nós. Sendo certo que o vírus poderá afectar qualquer um de nós – afinal, o Príncipe Carlos foi infectado e o primeiro-ministro Boris Johnson passou um período nos cuidados intensivos – também é certo que factores socio-económicos influenciam a exposição ao vírus, a qualidade dos cuidados de saúde a que se tem acesso, e a probabilidade de infecção resultar em morte. As desigualdades socio-económicas existentes antes da pandemia ganham novo relevo, em particular em países sem sistemas de saúde público universal, ou onde estes existem mas foram significativamente degradados pelas políticas neoliberais das últimas décadas.

«As desigualdades socio-económicas existentes antes da pandemia ganham novo relevo, em particular em países sem sistemas de saúde público universal, ou onde estes existem mas foram significativamente degradados pelas políticas neoliberais das últimas décadas»

Nos EUA – actualmente o país com mais mortes por COVID-19 – esta questão tem recebido alguma atenção devido ao impacto desproporcional da doença entre os negros. No estado de Louisiana, um dos focos da doença nos EUA, ou na cidade de Chicago, 70% das mortes foram de negros, embora estes constituam apenas 33% da população. O governador do Estado de Nova Iorque, um dos estados mais atingido, e que chegou a designar o vírus como «o grande equalizador», já reconheceu como na verdade este afecta mais a comunidade negra: neste estado, 18% das mortes foram de negros, embora estes sejam apenas 9% da população estadual.

As causas são fundamentalmente socio-económicas:

1) níveis de pobreza mais elevados (20% de negros são pobres vs. 10% de branco), associados a problemas de saúde que constituem factores de risco no caso da COVID-19, como diabetes, doença cardíaca, hipertensão e asma – a probabilidade de morte devido a asma era já 5 vezes mais elevada em crianças negras;

2) maior frequência de habitação em prédios de apartamentos com elevadas densidades (maior densidade e risco de contágio);

3) maior precariedade financeira e menor frequência de emprego onde o teletrabalho é praticável, tornando assim mais difícil permanecer confinado em casa. Indo trabalhar, fazem-no com maior frequência usando transportes públicos para empregos que implicam contacto pessoal (tudo factores que aumentam risco de contágio);

4) menor acesso a testes de coronavírus e a cuidados de saúde em geral, havendo menor frequência de seguro de saúde;

5) tenderão a ir a hospitais que por si possuem piores condições (falta de profissionais de saúde, de equipamento de protecção pessoal, de ventiladores).

Tragicamente, devido a estes factores, o número de mortes por COVID-19 entre os negros deverá ser uma sub-estimativa, pois no caso de morte em casa (por oposição à morte em hospital), a presença do vírus não é testada e a morte não lhe é atribuída. Mas estes factores socio-económicos estendem-se a outras etnias, como os latinos: sendo 29% da população da cidade de Nova Iorque, constituem já 34% dos mortos. Não obstante existirem factores de discriminação racial, as causas apontadas acima aplicam-se à generalidade das classes sociais desfavorecidas, à classe trabalhadora.

Em vários locais, os trabalhadores em sectores que se mantêm activos queixam-se da falta de condições e material de protecção. Em finais de Março, enfermeiras no Bronx, Nova Iorque, protestaram frente ao hospital exigindo máscaras e luvas. Centenas de trabalhadores de higiene urbana, sobretudo negros, em Pittsburgh, na Pennsylvania, fizeram uma greve ilegal exigindo condições de segurança. Trabalhadores da Instacart – que faz entregas de mercearia –, fizeram greve, mantendo-se no local de trabalho, exigindo subsídio de risco, desinfectante e material de protecção pessoal. Trabalhadores da Trader-Joe's – outra cadeia de supermercados – recolheram quase 21 mil assinaturas para exigir subsídio de risco. Trabalhadores da Whole Foods – rede de supermercados, subsidiária da Amazon – realizaram um sick-out: no dia 31 de Março não foram trabalhar em protesto, exigindo condições de segurança e higiene, melhor seguro de saúde, subsídio de risco, pagamento de salário para trabalhadores em quarentena, e o encerramento imediato de qualquer local onde um trabalhador tenha sido testado como positivo.

Os cerca de 400 mil trabalhadores dos armazéns da Amazon têm permanecido a trabalhar durante a situação actual, dando resposta ao aumento de encomendas, na ordem de 50 vezes mais para artigos de mercearia. Embora não sindicalizados, os protestos e greves destes trabalhadores têm alastrado, tal como o vírus: são mais de 50 os armazéns onde foram registados casos de infecção.

A 30 de Março, no armazém JFK8 em Nova Iorque, trabalhadores fizeram greve exigindo o encerramento durante duas semanas para limpeza as instalações, após vários trabalhadores terem contraído o vírus (na altura, dois segundo a administração, 10 segundo os trabalhadores). Na segunda feira seguinte (dia 6 de Abril), tendo o número de infectados subido para mais de 25, os trabalhadores fizeram nova greve.

Um dos organizadores do protesto, Chris Smalls, foi demitido pela Amazon, alegando esta que Smalls havia estado em contacto com um infectado e havia recusado manter-se em casa. Small defendeu-se dizendo que só o mandaram para casa 3 semanas depois da exposição ao vírus, e que mais ninguém foi colocado em quarentena, tendo o próprio infectado permanecido a trabalhar junto de outros associados. Porém numa reunião interna da Amazon, que contou com a presença do CEO Jeff Bezos, as razões da demissão foram claras. Em notas da reunião, obtidas pela Vice, o vice-presidente e consultor jurídico principal da Amazon, David Zapolsky, refere-se ao plano discutido para difamar e despedir Smalls: «ele não é esperto, não tem discurso articulado (...) Devemos passar a primeira parte da nossa resposta com um caso forte de como a conduta do organizador [sindical] foi imoral, inaceitável e possivelmente ilegal, e só depois darmos a nossa informação habitual sobre segurança no trabalho. Devemos torná-lo a parte mais interessante da história, e se possível torná-lo a cara de todo o movimento sindical». É bom recordar que foram os trabalhadores neste armazém que, em 2018, lançaram uma campanha para sindicalizar os trabalhadores da Amazon.

Em Chicago, trabalhadores abandonaram o armazém quando a administração se recusou a desinfectar o edifício após um trabalhador ter sido testado positivo. Dizia uma trabalhadora no piquete frente ao edifício: «Queremos trabalhar! Queremos trabalhar num edifício limpo! Queremos trabalhar onde estejamos seguros, e os nossos filhos fiquem seguros. Como podemos ser trabalhadores essenciais, mas as nossas vidas não serem essenciais?».

Embora alguns armazéns tenho sido encerrados após casos de infecção, outros permanecem abertos, e os trabalhadores não são notificados, acabando apenas por saber pelo passa-palavra. Tal foi o caso em Detroit, onde, contrariamente a Nova Iorque ou Chicago, os trabalhadores não estavam organizados antes da pandemia. A frustração pela forma como a Amazon tem gerido a situação tem servido para galvanizar e organizar os trabalhadores.

Mas enquanto a Amazon tem procurado recrutar mais cem mil trabalhadores para dar resposta às encomendas, muitos trabalhadores têm sofrido a crise económica gerada pela pandemia. Nas passadas três semanas, o Departamento Federal de Trabalho reportou quase 17 milhões declarações de desemprego. No final de Março, o número foi superior a 6.6 milhões por semana. Na história recente, os números mais elevados, em 1982, nunca superaram 700 mil por semana.

A luta de classes reflecte-se também no relacionamento internacional. Os casos de ajuda internacional da China e Cuba, com o envio de material e pessoal médico, têm contrastado com a falta de solidariedade ao nível da União Europeia ou com a tentativa do Presidente Trump comprar a empresa alemã CureVac – uma das empresas pioneiras no desenvolvimento de uma vacina – com a condição da vacina ser exclusivamente para uso nos EUA.

As consequências desta pandemia sublinham desigualdades económicas já existentes e revelam as contradições do capitalismo – a busca incessante do lucro por cima da satisfação das necessidades básicas da humanidade. Cabe-nos superar a actual crise de saúde. Mas também superar um sistema económico que é um sério entrave ao progresso da humanidade.

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