Quase perdia este acontecimento na espuma dos dias, no movimento rápido de passar os olhos pelas notícias. Mas ali estava: texto e imagem. Liliana Segre presidiu à abertura do Senado da República, em Itália, a 12 de outubro de 2022. Tem 92 anos, cabelos totalmente brancos. Sobreviveu ao campo de concentração e de extermínio de Auschwitz-Birkenau, onde mais de 1,1 milhão de homens, mulheres e crianças foram mortos.
A senadora vitalícia Liliana Segre declara aberta a sessão. Ouvimo-la. Mas também a ouviram aqueles que admiram Mussolini. Ela que durante tanto tempo não falou do que passou em Auschwitz: era difícil encontrar as palavras certas, afirmou numa entrevista de 2020. O silêncio de quase 45 anos. O tempo que foi preciso para poder contar.
O corpo de Liliana Segre traz em si a memória dolorosa do passado: todas as manhãs, vê no seu braço a tatuagem com o número de prisioneira do campo de concentração nazi. Tantos são os corpos que, de diferentes maneiras, contêm em si a memória ferida ou a memória cicatriz da opressão e da repressão. Tantas são as vozes que ainda podem contar. Mas, temos de perguntar: quem as quer ouvir? Como as ouvimos? E o que fazemos com o ficamos a saber?
No Senado, vestida de escuro, Liliana Segre relembra que neste mês de outubro passam cem anos da Marcha sobre Roma que, usando as suas palavras, deu início à ditadura. Ou posto de outra forma, o princípio do regime fascista de Benito Mussolini. Ali, no Senado da República, diz-nos da espécie de vertigem, «relembrando que a mesma menina, num dia como este de 1938, desconsolada e perdida, foi forçada por leis racistas a deixar a sua carteira vazia na escola primária, está agora, por uma estranha reviravolta do destino, no lugar mais prestigiado do senado».
Como não sentir essa espécie de vertigem? O braço tatuado com o número do campo de concentração, no presente, numa ligação aos eventos dolorosos e traumáticos do passado. O trazer para o discurso os acontecimentos de 1922, lembra-nos, por outro lado, os braços estendidos da saudação fascista.
Como não sentir esta vertigem quando, neste momento, em outubro, no Senado da República, em Itália, parecem cruzar-se as linhas que urdiram a História da Europa? Que, afinal, está próxima e presente. Como se o presente se visse invadido pelos fantasmas do passado, ou por novas formas desses mesmos fantasmas.
«Como não sentir essa espécie de vertigem? O braço tatuado com o número do campo de concentração, no presente, numa ligação aos eventos dolorosos e traumáticos do passado. O trazer para o discurso os acontecimentos de 1922, lembra-nos, por outro lado, os braços estendidos da saudação fascista.»
Este texto não é, contudo, sobre Liliana Segre. Convoca a história e as memórias que aquela senadora, sentada naquele lugar, com os novos equilíbrios de poder numa Itália com a presença da extrema-direita, trazem. Assim, a um século de distância, aí estão, se olharmos para 1922, os camisas negras de Mussolini, no que foi a primeira vaga do fascismo, ainda antes da Grande Depressão, na sequência da crise de 1929. Anos depois, na década seguinte, o nazismo chegaria ao poder. E convoquemos também, neste desfiar de conjunturas históricas, a II Guerra Mundial. As mortes. A destruição.
A presença e importância da vítima, não pode ou não deve, contudo, ocultar aquelas e aqueles que lutaram. Mulheres e homens que escolheram o lado antifascista. Foram sujeitos ativos, aqueles que não colaboraram, os que resistiram. Os que têm nome e que a História registou, mas, também todos aqueles que não conseguimos recuperar, mas que estiveram lá. Se com relativa facilidade podemos trazer para a luz os grandes atos de desafio e de luta, não podemos esquecer os pequenos gestos de resistência.
O dia-a-dia, que parece sempre igual, é, também, o tempo e o lugar de afirmação das escolhas e dos posicionamentos éticos e políticos. Afinal, nos fugazes momentos do nosso quotidiano, quando viramos a cara para fingir que não vemos a injustiça, não estaremos de alguma forma a contemporizar?
Como muitos antes de mim afirmaram, combate-se pela memória. Todos os dias, em múltiplas frentes. Combate-se contra as ausências, a amnésia, o esquecimento, que, tantas vezes, desliza para o apagamento e para a desculpabilização. No caso português, podemos surpreender estes processos no debate sobre a natureza do regime salazarista ou, ainda, na forma como se quer olhar de forma menos dura para o que foi o colonialismo português.
Para que serve, então, lutar pela memória?
A primeira resposta que nos surge, prende-se com uma ideia comummente referida: lembramos para não repetir. Há um princípio ético neste dever de memória e no reconhecimento da centralidade do direito de memória. Defende-se a existência de uma estreita relação entre a verdade, a justiça, a reparação e a não repetição, quando estão em causa violações dos Direitos Humanos.
Neste sentido, este combate está imbricado na própria construção e aprofundamento da democracia. Esta luta pela memória, pela interpretação do passado, pelo seu significado, é afinal uma questão que tem uma estreita ligação com o presente.
Quer-se, então, uma memória viva e partilhada, a que podemos acrescentar as novas lutas do presente, para que nos sirva para a construção do futuro. E esta é uma batalha decisiva, nos tempos que correm.
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