A directora-geral do Fundo Monetário Internacional, Kristalina Georgieva, pronunciou uma sentença em poucas palavras que vale mais que mil imagens: «A Organização Mundial da Saúde [OMS] existe para proteger a saúde das pessoas; o FMI existe para proteger a saúde da economia mundial.»
Ficamos avisados: ai dos povos cujos dirigentes resolverem combater o cataclismo económico gerado pelo novo coronavírus recorrendo às bem conhecidas «ajudas» do FMI e das suas extensões troikianas para consumo interno da União Europeia!
Quando o Fundo Monetário Internacional fala em «proteger a saúde da economia mundial» sabemos que isso não passa de uma metáfora, porque a directora-geral de turno, que sucedeu a Christine Lagarde, entretanto transferida para a chefia do Banco Central Europeu, está realmente a pensar na acumulação dos lucros das grandes empresas e na dinâmica especulativa do casino financeiro.
É o saber de experiência feito, potenciado pela dimensão da hecatombe porque, para os ogres do capitalismo, os tempos de grandes crises são também os das grandes oportunidades. Era precisamente isso que o banqueiro David Rockefeller queria transmitir quando afirmava que «tudo o que precisamos é da grande crise adequada e as nações aceitarão uma nova ordem mundial».
Ora uma «ordem mundial» como a pretendida pela família Rockefeller só pode ser a que garanta a actuação plena do capitalismo selvagem, isto é, o estabelecimento de mecanismos firmes que mantenham o neoliberalismo cada vez mais a salvo das preocupações com as pessoas.
Georgieva explicou muito bem que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Da economia trata o FMI; das pessoas que cuide a OMS, seja dos efeitos do coronavírus, da fome – que mata nove milhões anualmente – do ébola, da malária e de outras pragas decorrentes do crescimento da miséria mundial que tem no FMI um dos seus principais causadores.
A «nova ordem», o «novo normal»
Desenganem-se, portanto, os que vêem nestes tempos de peste uma ameaça para o capitalismo. O capitalismo não se suicida, não morre de morte natural nem de uma qualquer virose.
Desde 2008 que se vem debatendo com uma crise teimosa que dava sinais de explodir a todo o momento quando entrou em cena o SARS-CoV-2 e mudou radicalmente as regras do jogo. A partir daqui pode diluir-se a bolha de crise na tormenta generalizada com epicentro na saúde pública enquanto se vai talhando um «novo normal» – eventualmente uma «nova ordem» rockefelleriana – do qual sejam extirpados muitos dos obstáculos sociais que ainda tolhem a implantação da plena anarquia económica.
«O capitalismo não se suicida, não morre de morte natural nem de uma qualquer virose.»
Qualquer de nós tem a noção de que se vêm agudizando, há mais de uma década, as contradições entre as necessidades do neoliberalismo económico e o funcionamento das chamadas «democracias liberais»; esta situação gerou até a cunhagem do curioso termo de «iliberalismo», isto é, a crescente inclinação da ditadura económica para a ditadura política sem disfarces.
A ordem mundial pré-vírus caracterizava-se cada vez mais pelo antagonismo entre o globalismo neoliberal, assente na democracia formal que emana, essencialmente, das forças que fazem mover o Partido Democrático dos Estados Unidos; e o «iliberalismo» ou «populismo» ou «nacionalismo», um «moderno» fascismo puramente neoliberal do ponto de vista económico que ganhou maior influência desde que as hordas de Trump tomaram conta do Partido Republicano dos Estados Unidos.
As «democracias liberais» ainda determinam as políticas oficiais de Bruxelas, mas o peso das correntes «iliberais» – sem rodeios, neofascistas – faz-se sentir sobretudo no Centro e Leste da Europa, com algumas metástases latinas.
Não será excessivo recordar que a ditadura política é o terreno preferido da ditadura económica como expressão plena do neoliberalismo. O pujante triunfo do neoliberalismo económico nos anos 80 do século passado arrastou e transfigurou correntes políticas que ainda mantinham referências sociais e acabaram por se converter aos mecanismos ditatoriais do mercado.
A geminação ideológica do Partido Trabalhista britânico de Tony Blair com o Partido Conservador de Margaret Thatcher – admiradora de Pinochet – foi a transformação mais emblemática deste processo. E deixou raízes tão profundas que ainda recentemente as correntes manobradas por Blair deram um golpe interno nos trabalhistas para acabar com a gestão de inspiração social-democrata de Jeremy Corbyn.
As excepções como regra
A pandemia de coronavírus desabou sobre a crise anunciada do neoliberalismo e a agudização do combate fratricida entre as suas correntes «democrática» globalista e neofascista.
E mudou muita coisa, a mais essencial das quais será a criação da oportunidade para que o neoliberalismo económico tire proveito da crise desbravando ainda mais o caminho para o autoritarismo político. É o que ressalta de muitas afirmações sobre a extensão das medidas sociais de excepção por tempo indeterminado e as elucubrações a propósito daquilo a que já chamam «o novo normal», acompanhado pelo seu cortejo de restrições sociais e cívicas – com efeitos políticos – e de intrusão na privacidade dos cidadãos.
«A vigilância intrusiva será um pequeno preço a pagar pela liberdade básica de estar com outras pessoas», escreveu Gideon Lichfield na edição de 17/20 de Março da Technology Review do Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT).
«Milhões que fazem brilhar de gula os olhos de credores e especuladores e que não cairão dos céus sem pesadas contrapartidas que, como acontecia nos tempos pré-Covid-19, também no «novo normal» serão sustentadas pelos mesmos de sempre e às ordens de troikas que podem até assumir outras designações para desempenharem as mesmas missões.»
Regressando à sentença da directora-geral do FMI não será exagerado prever que o «novo normal» na economia, tendo como objectivo a sua «saúde», irá gerar uma concentração ainda maior de riqueza em cada vez menos empresas e pessoas; o desmoronamento do sector de pequenas e médias empresas que, uma vez falidas, cairão nas bocas insaciáveis dos tubarões; a extinção de mais direitos laborais, o aprofundamento da desregulação do mercado de trabalho e uma vaga de desemprego com dimensões trágicas; novas formas de produção, como o teletrabalho, com menos direitos; cortes salariais e dos custos de trabalho nos países desenvolvidos e o maior empobrecimento ainda dos países em vias de desenvolvimento; a escalada vertiginosa das dívidas soberanas; a imposição de mais privatizações.
Nos Estados Unidos e na União Europeia há promessas de milhões e milhões para fazer frente às consequências da crise económica; e o FMI, como vimos, está a postos. Milhões que fazem brilhar de gula os olhos de credores e especuladores e que não cairão dos céus sem pesadas contrapartidas que, como acontecia nos tempos pré-Covid-19, também no «novo normal» serão sustentadas pelos mesmos de sempre e às ordens de troikas que podem até assumir outras designações para desempenharem as mesmas missões.
A aliança entre a futurologia e a prática
Também nunca será excessivo recordar que a deflagração de uma pandemia está, há muitos anos, nos horizontes dos futuristas neoliberais – o que é válido tanto para os globalistas como para os «iliberais». Não surpreenderá, portanto, que as entidades competentes saibam como proceder quando se trata de cuidar da «saúde da economia», quiçá para fazer dela a «grande crise adequada» de que falava David Rockefeller.
No traumático ano de 2008, o Centro de Análises e Perspectivas da CIA publicou um relatório sobre as «tendências globais para 2025» no qual antecipou «a emergência de uma doença respiratória altamente transmissível e para a qual não existirá contramedida adequada e que poderá desencadear uma pandemia mundial».
Nove anos depois, na edição de 2017 da Conferência de Segurança de Munique, o inevitável profeta Bill Gates assegurou que «uma pandemia mundial fortemente mortal acontecerá durante as nossas vidas».
Entre as profecias e a realidade, entretanto, vão-se detectando misteriosas coincidências. Em 2015, a revista Nature Medicine publicou um trabalho sobre «os esforços bem-sucedidos para projectar um vírus com a proteína de base SHCO14 do coronavírus dos morcegos-ferradura da China para infectar células das vias respiratórias humanas sem necessidade de um hospedeiro intermediário».
A manipulação foi efectuada no principal laboratório de guerra biológica nos Estados Unidos, localizado em Forte Detrick, Maryland. O ex-vice-ministro da Defesa da Alemanha, Willy Wimer, revelou nesse mesmo ano que os Estados Unidos chegaram a patentear esta descoberta.
«(...) em 23 dias da fase inicial do surto, as elites ricas dos Estados Unidos extraíram proveitos de 282 mil milhões de dólares (...)»
Ficaram por explicar, entretanto, muitos dos aspectos e motivações que envolveram o «exercício anti-epidémico» de divulgação «reservada» designado «Crimson Contagion», organizado já em 2019 pelo Departamento norte-americano da Saúde em 12 Estados norte-americanos, como a seu tempo noticiou o New York Times.
Em 22 de Março de 2020, o New York Times escreveu o seguinte: «Washington – O surto do vírus respiratório começou na China e rapidamente se espalhou pelo mundo através de passageiros aéreos com febres elevadas. Nos Estados Unidos, foi detectado pela primeira vez em Chicago e 47 dias depois a Organização Mundial da Saúde declarou uma pandemia. Mas então já era tarde demais: 110 milhões de americanos iriam ficar doentes, com 7,7 milhões de hospitalizados e 586 mil mortos. Esse cenário, com o nome de código de "Crimson Contagion" e imaginando uma pandemia de gripe, foi simulado pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanitários do governo Trump numa série de exercícios que ocorreram de Janeiro a Agosto» (de 2019).
Todos estes factos nos conduzem à certeza de que em termos económicos – a saúde é um caso à parte – o sistema capitalista neoliberal não foi apanhado de surpresa perante as circunstâncias em desenvolvimento, pelo que muitas das medidas que correm mundo não terão sido preparadas sobre o joelho.
Até os métodos principais de enfrentamento da pandemia – confinamento com distanciamento social e «imunização colectiva» com «trabalho não pára» – traduzem, grosso modo, as linhas de fractura entre globalismo e «iliberalismo».
Um sinal de que, entretanto, os barões neoliberais não foram apanhados desprevenidos é revelado pelo Instituto de Estados Políticos dos Estados Unidos: em 23 dias da fase inicial do surto, as elites ricas dos Estados Unidos extraíram proveitos de 282 mil milhões de dólares – um bom bocado mais do que o PIB anual português.
As missões dos cidadãos
Não sabemos se esta é a «grande crise adequada» de que falou o banqueiro David Rockfeller. Que é uma crise longa parece não haver dúvidas, basta ouvir a frequência com que nos vão preparando para «a segunda vaga» ou «a terceira» ou mesmo «a quarta».
A revista Science acaba de publicar um artigo produzido pela Universidade de Harvard segundo o qual o confinamento social deverá prolongar-se até 2022, por insuficiência de imunização; e a pandemia assumirá a forma de uma gripe pandémica circulando sazonalmente após a grande vaga inicial.
Já percebemos, porém, o caminho que as coisas estão a tomar nos domínios do condicionalismo dos comportamentos, dos ataques à privacidade e das restrições às liberdades.
Não há alternativa, dizem-nos. Há um preço a pagar – são sempre os mesmos a arcar com os custos mais elevados e não existe nenhuma garantia de que agora seja diferente.
Nada impede, porém, os cidadãos de redobrarem a vigilância sobre as crescentes tendências autoritárias, sobre a normalização do excepcionalismo nas suas várias designações técnicas.
«(...) o neoliberalismo debate-se numa espécie de «guerra civil» entre as suas facções – ainda que ambas convirjam cada vez mais no sentido da imposição do autoritarismo.»
O capitalismo não será vítima do vírus; pelo contrário, está preparado para tirar proveito dele enquanto as pessoas continuam a morrer. Por outro lado, o neoliberalismo debate-se numa espécie de «guerra civil» entre as suas facções – ainda que ambas convirjam cada vez mais no sentido da imposição do autoritarismo.
Existe, neste quadro, um imenso espaço para a acção e a mobilização anticapitalista. É missão reforçada dos cidadãos estarem atentos a cada direito social, cívico e humano que tentem por entre parêntesis, a cada passo contra a privacidade, a cada prolongamento do excepcionalismo primeiro porque tem de ser e depois porque tem sido assim.
Há que denunciar cada investida deste tipo, mesmo quando embrulhada nas melhores intenções, cada golpe nos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. O direito à luta não prescreve, a vigilância democrática tem de ser à prova de vírus, o distanciamento social não pode capturar o direito à mobilização cidadã como refém.
O neoliberalismo quer tirar partido de um vírus que há muito guardava na cartola? Então há que inverter-lhe o jogo, por muito que as forças sejam desiguais.
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