O assassinato de dez civis (entre eles, sete crianças) em Cabul, no Afeganistão, por parte das forças armadas dos Estados Unidos da América, foi reconhecido apenas alguns meses depois do ataque. O «acidente» acabou por ser atríbuido à forma negligente como os EUA recolheram e avaliaram a informação recolhida pelos seus serviços, que confundiram carros e não viram as crianças na habitação, minutos antes de a bombardearem.
Este novo caso já não pode ser imputado à irresponsabilidade geral que parece grassar no exército mais caro do planeta. Como relata a reportagem do The New York Times (NYT), houve um esforço concertado por parte do exército dos EUA para encobrir os bombardeamentos que mataram, pelo menos, 64 mulheres e crianças sírias, perto de Baghuz.
A Casa Branca lançou uma ofensiva económica e legal contra o TPI depois de o tribunal ter decidido investigar crimes de guerra cometidos no Afeganistão por todas as partes, incluindo os EUA. O presidente norte-americano autorizou a imposição de sanções económicas a qualquer funcionário do Tribunal Penal Internacional (TPI) envolvido na investigação ou acusação de militares norte-americanos sem o consentimento dos Estados Unidos, anunciou ontem a Casa Branca. A medida, que visa igualmente qualquer pessoa que tenha «tentado o mesmo contra um aliado dos Estados Unidos sem o consentimento desse país», impõe ainda restrições de vistos aos familiares dos funcionários do TPI envolvidos nas investigações. A decisão foi apresentada pelo secretário de Estado, Mike Pompeo, o conselheiro de segurança nacional, Robert O’Brien, o secretário da Defesa, Mark Esper, e o procurador-geral, William Barr. Este deixou claro que se trata do começo de uma campanha fundamentada contra o TPI e que as medidas agora aprovadas por Donald Trump são um «primeiro passo importante para acusar o TPI por exceder o seu mandato e violar a soberania dos EUA», informa The Guardian. Barr acusou o TPI de ser «pouco mais que um instrumento político» e afirmou que o Departamento da Justiça possui «informação credível» sobre o TPI que «levanta sérias preocupações sobre um longo historial de corrupção financeira» ao mais alto nível da procuradoria. As sanções e a campanha contra o TPI surgem como resposta à autorização dada em Março último pelo tribunal, com sede em Haia (Países Baixos), para avançar com uma investigação sobre alegados crimes de guerra e contra a humanidade cometidos no Afeganistão, desde Maio de 2003, pelos talibãs, soldados afegãos e tropas e agentes da inteligência norte-americanos. Em Dezembro, o TPI anunciou o lançamento de uma investigação sobre crimes de guerra cometidos na Palestina, na sequência de um pedido feito pelos palestinianos. Mike Pompeo deixou claro que as sanções também visam defender Israel. «Tendo em conta o robusto sistema legal civil e militar de Israel e o seu longo historial de investigação e condenação de más condutas pelo pessoal militar, é óbvio que o TPI está a colocar Israel na sua mira por questões claramente políticas», disse Pompeo, um aliado de Netanyahu, sem fazer qualquer referência à política de gatilho fácil e à impunidade com que as Forças Armadas israelitas operam nos territórios ocupados, pelas quais são amplamente acusadas tanto pelos palestinianos como por múltiplas organizações internacionais. O secretário de Estado dos EUA instou os países aliados a alinharem na campanha contra o tribunal internacional. «O vosso país pode ser o próximo, especialmente aqueles que são membros da NATO e combateram o terrorismo no Afeganistão ao nosso lado», disse. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, mostrou-se satisfeito com a medida e acusou o TPI de ser um órgão «politizado e obcecado com uma caça às bruxas contra Israel e os Estados Unidos, bem como contra outros países democráticos que respeitam os direitos humanos». A investigação solicitada pela procuradora do tribunal, Fatou Bensouda, visa esclarecer, entre outras coisas, os crimes alegadamente cometidos por soldados norte-americanos no Afeganistão, país asiático onde os Estados Unidos mantêm uma presença militar desde 2001. A CIA, contra a qual existem alegações de tortura, também é visada pelo inquérito. Os Estados Unidos não são membros do TPI, nem ratificaram o tratado em que a constituição do tribunal internacional assenta. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Internacional|
Trump autoriza sanções contra o TPI por investigar os EUA
Defender também Israel
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«Em quase todas as instâncias, o exército promoveu a ocultação do trágico ataque», afirma a reportagem. Em Março de 2019, um drone militar fazia um voo de reconhecimento na Síria num dos últimos acantonamentos do Estado Islâmico no país, identificando, à beira de um rio, um grande grupo de mulheres e crianças. Inesperadamente, um jacto F-15E surgiu na área.
O bombardeamento foi-se sucedendo perante a confusão dos militares que comandavam o drone e que não tinham sido informados sobre o ataque. «Mas quem é que os está a bombardear?» perguntou um deles, num grupo de conversa privado a que o NYT teve acesso, «Acabámos de largar bombas em cima de 50 mulheres e crianças», é a resposta.
A notificação feita de imediato por um responsável desse destacamento, que desencadearia uma potencial investigação a um crime de guerra, foi prontamente ignorada. «O número de mortos foi minimizado, os relatórios foram sendo atrasados, saneados, classificados». Eventualmente, a coligação internacial liderada pelos EUA terraplanou, com bulldozers, o local do crime.
O primeiro reconhecimento oficial por parte dos Estados Unidos da América sobre o ataque surgiu esta semana, depois do NYT enviar as imagens e documentos que recolheu e que comprovam o sucedido.
Reconhecendo a existência de mais de 80 mortes, apenas 16 seriam, de acordo com os EUA, soldados do Estado Islâmico (EI), a que acrescem quatro civis. Sobre as restantes 60 pessoas assassinadas a teoria adquire contornos mais absurdos e grotescos: As mulheres e crianças seriam também combatentes do EI e, como tal, devem ser contabilizadas como tropas inimigas, tudo em «legítima defesa».
Nos quase mil bombardeamentos levados a cabo pelas forças militares norte-americanas em 2019 (4729 bombas e mísseis) na Síria e no Iraque, os EUA reconhecem apenas a morte de 22 civis. Em nenhum momento é feita menção deste ataque, levantando sérias dúvidas sobre o real número de vítimas civis da acção intervencionista norte-americana na Síria e noutros países.
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