Numa manhã de nevoeiro cerrado, desisti das aulas e fui caminhar para o Passeio Alegre, onde o Douro entra pelo Atlântico (ou será o contrário?) e sentimos um conforto romântico, paralisante e ao mesmo tempo redentor. Desde cedo que somos habituados a romantizar o Porto, ou melhor, a estimular o romantismo das suas vielas, do seu casario, do seu tom outonal perpétuo, da sua neblina. A certa altura, deixamos de saber onde acaba a nossa melancolia íntima e começa a melancolia que o granito da cidade nos oferece. Nessa manhã, inebriado pelos efeitos da meteorologia na cidade, sentei-me num banco de jardim a ler – como um diletante pretensioso, no seu ar de spleen da Foz – um pequeno livro de poemas do Manuel António Pina. Pouco depois de me sentar, aproximou-se de mim um homem demasiado magro para o seu sobretudo, as mãos aduncas e o cabelo ralo por baixo de uma boina, o nariz ligeiramente tapado por um cachecol de lã grossa e um olhar terno. Olhou para o livro e declarou: «um dos nossos melhores poetas vivos.» Apercebi-me que, dentro das vestes, aquele homem era o Eugénio de Andrade.
«O Eugénio fazia parte desta cidade, como tantos outros poetas e artistas. No Porto, as elites culturais diluíam-se e integravam sem esforço a grande massa que compunha uma ideia de cidade.»
Na transição de século, o Porto era ainda uma cidade onde se proporcionavam encontros. Nos cafés, nas ruas, nas salas de espetáculos, a cidade não era só um cenário pitoresco, mas um movimento social coletivo, onde poetas e operários partilhavam mesas e até a burguesia se via sem outro remédio senão conviver com as camadas populares. Na Árvore, na Unicep ou na Seiva Trupe, por exemplo, o classismo ficava à porta. Nos jardins do Palácio ou nos bares da Fonte Taurina misturavam-se mulheres e homens sem aparente ligação e era preciso um esforço muito grande para dividir os portuenses.
O Eugénio fazia parte desta cidade, como tantos outros poetas e artistas. No Porto, as elites culturais diluíam-se e integravam sem esforço a grande massa que compunha uma ideia de cidade. Os nichos culturais do Porto não ostentavam o academicismo, nem uma distinção qualquer em relação aos demais. Não havia gente a fazer de conta que o Eugénio de Andrade não era um grande poeta só porque morava ali ao lado e, quando ele morreu, não houve lágrimas de crocodilo, houve uma comoção muito grande, porque havíamos perdido um de nós.
Durante muitos anos, andei pelas ruas do Porto a aprender a viver. Porque era ali que se ouvia com perfeita nitidez a realidade. Na baixa do Porto havia trabalho para além do comércio, até pequena indústria. Os cafés eram lugares de encontro tanto de estudantes como de vendedores, reformados, operários e diletantes. Era rara a mesa de café que não tinha um exemplar do Primeiro de Janeiro, do Comércio do Porto ou do Jornal de Notícias. Falava-se de tudo e aprendia-se muito. Vivia-se na baixa do Porto, apesar do silêncio soturno e das criaturas sombrias que tomavam conta das ruas depois de o comércio fechar.
«Durante muitos anos, andei pelas ruas do Porto a aprender a viver. Porque era ali que se ouvia com perfeita nitidez a realidade.»
Uma década depois de ter deixado o Porto, ouço relatos de como é impossível viver na cidade e na sua periferia, de como os despejos e o novo imobiliário descaracterizaram a cidade onde crescemos e atiraram muitos de nós para a periferia da periferia, de como o setor de turismo passou a representar a esmagadora maioria da oferta de trabalho, expulsando outras formas de trabalho da vida da cidade. E por isso, quando a propósito do centenário do Eugénio de Andrade me recordei da cidade onde cresci, tentei perceber se era um mero exercício de nostalgia ou se era a convicção de que é possível uma cidade diferente daquela em que o Porto se transformou.
É natural e até legítimo que olhemos para os lugares onde crescemos com nostalgia. Eles são a memória da nossa existência, o cenário que justifica as nossas dinâmicas, as nossas escolhas, os nossos gostos. São eles que conservam a nossa inocência, os nossos sonhos e deslumbramentos. Quando algo se altera definitivamente, há qualquer coisa em nós que se perde ou uma parte de nós que é levada na torrente da memória dos lugares.
«Uma década depois de ter deixado o Porto, ouço relatos de como é impossível viver na cidade e na sua periferia, de como os despejos e o novo imobiliário descaracterizaram a cidade onde crescemos e atiraram muitos de nós para a periferia da periferia»
Talvez seja importante perguntar se estamos apenas confrontados com a nossa nostalgia, quando as opções políticas transformam as cidades na geografia, na demografia, na economia e na cultura; se o nosso sentimento de perda não é, também, um desconforto com a quebra das nossas relações sociais e do nosso sentimento coletivo; se aquilo que sentimos em relação às nossas cidades e à nossa memória, entre todas as contradições e necessidades que decorrem da vida em sociedade, não é, também, uma conceção diferente daquilo que pretendemos que elas sejam, daquilo que desejamos que sejam as suas verdadeiras transformações.
As opções que foram tomadas – as ações e omissões – trouxeram resultados que não sentimos como vantajosos para a nossa relação com a cidade, sobretudo, na habitação e no trabalho. Com a ideia de que era preciso dar um salto para o séc. XXI, confundimos modernização com destruição do tecido social e cultural. Já é com dificuldade que as ruas do Porto são musicadas pelo jargão do quotidiano, pela desinquietante presença da figura popular do portuense, da sua ironia permanente e do amor pela cidade em cada gesto e em cada palavra e que, sem qualquer necessidade de caricatura, caracterizava os bairros de uma forma insubstituível.
«Porque querer uma cidade melhor não é nostalgia, é futuro. É preciso tomarmos as cidades nas nossas mãos e fazermos delas o melhor lugar para viver.»
Na cidade que hoje existe, e que continua a ser a cidade mais perfeita do mundo como o conhecemos, não sei se será possível viverem os poetas. Os operários, os comerciantes, os estudantes, os pensionistas, os administrativos, os professores, os funcionários públicos, entre tantos outros, esses certamente que já não conseguem lá viver. E como vive a cidade sem a sua gente? O que é o Porto sem a hipótese dos poetas que o cantam?
Se a nostalgia é um exercício inútil, a convicção da ideia que temos para as nossas cidades não pode ficar apenas para nós. Não nos devemos deixar derrotar pelas acusações de idealismo e nostalgia. Porque querer uma cidade melhor não é nostalgia, é futuro. É preciso tomarmos as cidades nas nossas mãos e fazermos delas o melhor lugar para viver.
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