Governamentalização das Forças Armadas: chavão ou destruição da instituição?
Na parte I deste artigo abordámos o enquadramento constitucional dos militares-cidadãos e da Defesa Militar. Nesta parte II começar-se-á por abordar legislação e regulamentação em vigor e concluir-se-á com a apreciação de algumas das declarações em sede da Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso de Tancos.
Da Lei de Defesa Nacional (LDN)
Em matéria de responsabilidade direta sobre a Defesa Nacional (DN) são por esta ordem nomeados o Presidente da República (PR), a Assembleia da República (AR) e só depois o Governo. Esta ordenação é consentânea com a dependência do Governo perante a AR e a nomeação dos Chefes Militares pelo PR é um normativo consentâneo com a condição do PR ser o Comandante Supremo das Forças Armadas (FA).
Mas, no nosso contexto pós-25 de Abril, prejudica o sistema de «pesos e contrapesos» e é no mínimo estranho que a AR fique de fora do processo de nomeação dos Chefes Militares, sendo a AR o órgão de soberania imediatamente a seguir ao PR com responsabilidades na DN.
Do ponto de vista da responsabilidade direta sobre a DN faria sentido que a nomeação dos Chefes Militares fosse precedida de audição na AR e sujeita a seu parecer. Parecer, que poderia ter a força de veto se aprovado por maioria qualificada de dois terços. Esta alteração reforçaria o comando constitucional que impõe que as FA estão ao serviço do povo. Quem melhor do que a AR representa esse universo?
Será que a Defesa Militar melhora, e em quê, pelo direito do Ministro da Defesa Nacional (MDN) de aprovar as promoções a, e de, oficial general? Pelo contrário, esta tramitação coloca os candidatos ao ingresso no generalato, e o generalato, na peugada de mostrar serviço suscetível de reconhecimento pelo Governo, o que nem sempre tem necessariamente a ver com um bom desempenho militar. A consagração legislativa desta intromissão do MDN na progressão de carreira dos militares ainda é mais acentuada na tramitação consagrada na Lei Orgânica de Bases da Organização das FA (LOBOFA) que se aborda mais à frente.
O Conselho Superior de Defesa Nacional aprova as propostas de nomeação e exoneração dos incumbentes para vários cargos militares. O que surpreende é tratar-se de competências ali referidas como de âmbito administrativo.
Em letra de Lei, temos um Conselho Superior a aprovar propostas de nomeação só para esse Conselho exercer competências administrativas!
Como está restringida a liberdade de expressão dos militares? Conforme o teor do Artigo 28º da LDN, «os militares em efetividade de serviço têm o direito de proferir declarações públicas sobre qualquer assunto, com a reserva própria do estatuto da condição militar, desde que aquelas não ponham em risco a coesão e a disciplina das Forças Armadas, nem o dever de isenção política, partidária e sindical dos seus membros».
Como se deve interpretar o dever de «isenção política»? O Artigo 20.º do RDM prescreve que tal dever consiste no rigoroso apartidarismo dos militares, «não podendo usar a sua arma, o seu posto ou a sua função para qualquer intervenção política, partidária ou sindical». Fica por se saber onde começa e acaba o partidarismo e quando uma qualquer intervenção cívica de um militar na efetividade de serviço, fora do exercício das suas funções militares, não é considerada intervenção política alavancada, contra vontade do próprio e em termos de impacto na opinião pública, pelo condição e posto que o militar detém.
À revelia do texto constitucional, quem assim legisla faz mira para militares afastados da intervenção cívica e política.
Da Lei Orgânica de Bases da Organização das FA
Considera-se uma intromissão na esfera de competência e cadeia de comando dos Chefes militares, o MDN nomear os titulares dos cargos de: Vice-chefe; Comandantes dos comandos de componente, naval, terrestre e aérea; Comandantes da Academia Militar, da Escola Naval e da Academia da Força Aérea; Chefe do Estado-Maior do Comando Conjunto para as Operações Militares; Comandantes dos comandos dos Açores e da Madeira; Chefe do órgão de informações e de segurança militares; Diretor do Instituto Universitário Militar e o Diretor do Hospital das Forças Armadas. Cargos que não ficam diminuídos se a nomeação for da exclusiva competência do Chefe de quem hierarquicamente dependem.
Vincar a linha de comando e integral subordinação hierárquica é o que melhor serve a coesão, a unidade de comando e a responsabilização de quem comanda e chefia.
Nestas matérias, é perigoso acolher iniciativas que, pretensamente, acentuam a subordinação dos militares ao poder político mas que acarretam a vulnerabilização da cadeia de comando. É elucidativo ouvir um Chefe Militar dizer que reiteradamente observou incumprimento de ordens dadas ao ponto de ter perdido a confiança em comandantes subordinados. Por algum motivo ninguém perguntou porque não puniu os incumpridores ou promoveu a sua substituição1.
Das nomeações passemos à tramitação das promoções (Artigo 25º, da LOBOFA) – as promoções a, e de, oficial general são sujeitas a aprovação pelo MDN e as promoções até ao posto de coronel ou capitão-de-mar-e-guerra efetuam-se exclusivamente no âmbito das FA, ouvidos os órgãos de conselho dos ramos. Acontece que nestes órgãos de conselho têm assento oficiais generais cuja promoção foi e tem de ser aprovada pelo MDN.
Salvo casos (escassos mas felizmente ainda ocorrentes) em que a personalidade de quem preside é que determina o rigor das apreciações, o MDN, direta ou por interposta pessoa, pronuncia-se sobre as promoções até coronel ou capitão-de-mar-e-guerra.
Por economia de espaço e tempo não se elaborará aqui sobre as incidências do novo Regulamento da Avaliação do Mérito dos Militares das Forças Armadas cujo teor atual foi promovido pelos Chefes militares mas ecoa-se o que a Associação de Oficiais das FA sobre isso assinalou: «...este regulamento prevê que louvores dados por decisores políticos são mais “valiosos” que louvores dados por profissionais militares».
Carreira, promoção e respeito pela antiguidade constituem uma tríade de elementos essenciais ao funcionamento da Instituição Militar, são a sua coluna vertebral e fluxo de perenidade2.
Manter esse fluxo no estrito seio da Instituição é o que maior contributo traz à coesão, disciplina consentida e espírito de camaradagem de quem vive e treina para as situações mais adversas e em que a derrota do inimigo para ser vitória tem de ser de todos.
«Cereja em cima do bolo» – são os atuais procedimentos para as promoções nas FA3. Esses procedimentos constituem um enxovalho e desautorização inadmissível dos Chefes Militares e foram impostos com o argumento da necessidade de controlo da despesa e das medidas (sopradas pelos Miguéis de Vasconcelos de hoje) que a Tróica suscitou.
Como pode um General ser respeitado e reconhecido pelos seus subordinados como Comandante quando a promoção de um soldado só ocorre se e quando o Governo autorizar?
Do ponto de vista legislativo e regulamentar da gestão do Pessoal sugere-se ao Governo que, urgentemente, elimine constrangimentos injustificáveis neste domínio e que o MDN suscite a revisão da fronteira onde deverão quedar-se as competências da sua Direção Geral de Recursos4, para que esses constrangimentos e invasão de competências não vulnerabilizem o exercício do comando por parte dos Chefes Militares.
Trata-se de defender condições fundacionais da hierarquização, coesão e disciplina do funcionamento das FA.
Naturalmente que se for adotado outro princípio orientador da carreira e emprego dos militares podemos observar, sem motivo para contestação ou sentimento de relutância, algo próximo do que norteia a carreira e progressão dos diplomatas, na gíria de caserna costuma falar-se em «saber pisar alcatifa de veludo» e «manter sempre a mão no frio» (alusão ao tempo passado em receções nas Embaixadas). Mas, que tem isso a ver com respeito e consideração aos combatentes? Quem tenha dúvidas na resposta não deve ficar surpreso ao observar como são tratados os nossos antigos combatentes e deficientes!
Elencados aspetos Constitucionais, de legislação e regulamentação subordinada que retratam como o poder político encara e enquadra os militares, referenciemos declarações de ex-Chefes militares para concluir como viram a sua ação de comando ser interferida pelo Governo e por políticos. As audições da Comissão de inquérito da AR ao «caso de Tancos» permitem ilustrar a situação.
Das diversas intervenções, as dos ex-CEME General Jerónimo e General Rovisco Duarte e dos Tenentes Generais Serafino, Menezes e Calçada permitem compilar dezenas de ocorrências em que fica explícita a intromissão do Governo na esfera de ação e competência dos Chefes Militares e a desconsideração pelas sugestões e propostas apresentadas. Intromissão, por motivos vários mas que pouco ou nada teriam a ver com a resolução de problemas do Exército (EX), foram casos de imposição ao EX de iniciativas que prejudicaram o seu esforço noutras áreas. Desconsideração, de propostas e iniciativas do EX para a resolução do seu problema mais candente, a incorporação e retenção de Praças e Sargentos.
Dessas intervenções casos houve em que é incompreensível e inadmissível que tenham sido aceites missões externas de elevado risco com insuficiente grau de equipamento e proteção da força combatente, situação que ainda hoje estamos a viver e a que é urgente pôr fim enquanto é tempo.
Quando tecnologicamente praticável e disponível, por muito cara que a proteção da força fique, o custo que a perda de vida humana pode comportar não se lhe compara. Daí que o investimento na proteção da força, ao nível tecnologicamente possível, tem de ser condição imperativa e precedente ao empenhamento da mesma.
Para concluir como o persistente «arco da governação» na área Defesa encara e enquadra os militares e, pelo respeito devido aos camaradas inquiridos, quedemo-nos em parte das declarações iniciais do ex-CEME general Jerónimo a propósito do roubo ocorrido em Tancos – não tentem encontrar um bode expiatório a todo o custo para calar o bruaá, bruaá dos media e da opinião pública.
Retomando a questão de início – Governamentalização das Forças Armadas, Chavão ou Destruição da Instituição?
Quando reiteradamente se ouve esta referência à governamentalização das FA, que não subsistam dúvidas de que disso efetivamente se trata. O poder olha para os militares como a sua guarda pretoriana. Essa postura é incompatível com a nossa Constituição e o saudável funcionamento da nossa democracia.
A defesa da democracia impõe que o poder cesse de acintosamente circunscrever as FA e os militares a uma condição de diminuta cidadania e aos militares impõe-se indisponibilidade para manobras de influência no combate partidário e a exigência do cumprimento escrupuloso da Constituição em toda a plenitude, como militares-cidadãos-militares. Este é o caminho que estancará a degradação a que imparavelmente vimos assistindo e o nosso melhor contributo para umas FA ao serviço do povo português e, por isso, ao serviço de um Portugal soberano.
O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990
- 1. Certamente porque teria de explicar o que se estava a passar a quem propôs as nomeações, e na tropa é tradição que "só explica quem perde"!
- 2. São determinantes para estabelecer a diferença entre um "amontoado" de cidadãos e cidadãos militarmente organizados.
- 3. Declarações dos Presidentes das Associações Profissionais de Militares a 7 de Março, na Comissão de Inquérito da AR ao caso de Tancos.
- 4. Fronteiras que devem ser estabelecidas contrariando os anseios de predominância do seu Diretor Geral de Recursos.
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