São múltiplas as causas do empobrecimento da caça em Portugal, de que se destacam a redução das áreas com condições adequadas à vida e desenvolvimento das espécies, a expansão das zonas urbanas e rede rodoviária, o ineficaz sistema de fiscalização, seja por escassez de meios humanos ou por inadequação às exigências da realidade de hoje.
Estes são apenas alguns dos males endémicos que enfermam o sector da caça, a que se vieram juntar outros, como o fim do regime livre, e com a alteração do regime jurídico de base, em que a caça deixou de ser um bem público, passando a ser propriedade do proprietário do terreno, com o aumento das taxas sobre associações e clubes de caçadores, a vergonhosa «caça» à multa, etc. Situações que agravaram e descaracterizaram esta importante actividade secular e de interesse nacional, com consequências directas no abandono desta actividade por cerca de 150 mil caçadores, capital humano essencial tanto na manutenção da biodiversidade como na recuperação e manutenção do património cinegético.
A actual situação é o resultado de um processo legislativo massivo que envolve tanto o sector da caça como o das armas e que tem vindo a ser conduzido em função dos lobbies que se movimentam nestas áreas, onde o interesse prevalecente é a recuperação da propriedade fundiária e se misturam burocratas e escritórios de advogados, com o preconceito e a ignorância a fazerem lei.
É assim que o XIII Governo, tendo como primeiro-ministro António Guterres e ministro da Agricultura Capoula dos Santos, aprovou, já no fim do mandato, a Lei de Bases Gerais da Caça, que abre as portas ao ressurgimento de coutadas e reservas privadas, designadas pomposamente de turísticas, mas onde o objectivo é o lucro, e que levou à descaracterização de todo o sector.
No mesmo sentido e dando a machadada final, em 2006, o então primeiro-ministro José Sócrates extinguiu o Corpo Nacional da Guarda Florestal, transferindo os seus já muitos escassos recursos humanos e meios materiais para a GNR, com a criação do Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA/GNR), militarizando um serviço essencial ao país e levando à perda de conhecimentos acumulados.
Os resultados estão à vista. Às duas entidades responsáveis pela prevenção e fiscalização venatória, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e o SEPNA, com atribuições espartilhadas por dois ministérios e poucos recursos humanos e materiais, o que resta é para o show-off, limitam-se a operações de carácter militar, como a «Operação Artémis» (deusa grega da vida selvagem e da caça), onde foram empenhados 5029 elementos e da qual resultou 45 crimes registados, 29 detenções, 38 armas apreendidas e 145 autos de contra-ordenação1.
É caso para dizer que «a montanha pariu um rato». Mas é um exemplo daquilo que é feito, em termos de fiscalização, dos meios empregues e dos avultados recursos financeiros esbanjados de forma gratuita.
Em relação aos efectivos destas duas endades, o ICNF tem uma estrutura pesada e de pirâmide etária invertida, com apenas 222 vigilantes da natureza2. No tocante ao SEPNA/GNR, os elementos disponíveis são referentes a 2005 e apontam para 299 militares operacionais, distribuídos pelas 64 Equipas de Protecção da Natureza e do Ambiente (EPNA) nos diversos destacamentos territoriais da GNR3.
É importante destacar que o quadro orgânico da Guarda Florestal, que chegou a atingir os 5000 efectivos, em 2004 estava reduzido a apenas 555 guardas florestais e 237 postos de vigia, para uma cobertura nacional. Apetece dizer, para mal já bastava assim...
É, pois, com este enquadramento, onde manifestamente os interesses público e privado se chocam, tanto ao nível da área vegetal como da cinegética, da fiscalização como em apoios, e onde é exercida mão pesada para os caçadores, seus clubes e associações, e vigilância frouxa e permissiva em relação aos grandes interesses que se movimentam sobre a capa de actividades venatórias, com recorrentes atentados e verdadeiras catástrofes ambientais.
Em Portugal, as negociatas com objectivos obscuros e que nada têm a ver com actividades ligadas à caça movimentam-se com todo o à-vontade, onde gentalha sem escrúpulos disponibiliza as suas coutadas e reservas para o abate sistemático e sem regras, levando ao extermínio das espécies e lesando o património cinegético nacional.
É impressionante o coro de vozes que se levantou, a pretexto dos recentes acontecimentos na Herdade da Torre Bela, no concelho de Azambuja, às portas de Lisboa, com o extermínio de 540 animais de caça maior em apenas dois dias, e onde imperou a desinformação, o preconceito e a ignorância.
E assim foi, desde o PAN, sempre igual a si próprio, a exigir a extinção das actividades de caça, até ao ministro do Ambiente, com falhas de memória, para defender e dar cobertura ao parque fotovoltaico, a pedir alterações da lei, passando pelas entidades públicas e privadas com responsabilidades na matéria, a «sacudirem a água do capote» ou a optarem simplesmente pelo silêncio.
Este triste e inqualificável acontecimento aparece associado à instalação de um mega parque fotovoltaico, gerido por um grupo francês, com ocupação de 80% da herdade e arrendado por um milhão de euros por ano, e que levou à devastação do coberto vegetal, áreas de sobreiro e azinheira (espécies protegidas) e à exigência da transferência da fauna, composta por veados, gamos e javalis.
Que conveniente foi a matança...
Simplesmente, o que aconteceu na Herdade da Torre Bela e e muitas Torres Belas deste país, não foi uma montaria, nem foram caçadores. Trata-se de indivíduos bons atiradores, devidamente organizados e enquadrados, que abatem elevado número de exemplares, movidos unicamente por fins lucrativos.
Não exercem um desporto ou uma actividade lúdica, estão ao serviço de uma indústria de abastecimento de carne de caça, para países como a Noruega, Suécia e Dinamarca, onde é vendida a bom preço.
E foi assim que na maior reserva murada da Europa, reserva turística de caça, que os veados, gamos e javalis, machos e fêmeas, exemplares nobres da caça de troféu, foram encurralados e, sem possibilidade de fuga, foram indiscriminadamente aniquilados sem paixão ou princípios éticos, através de fuzilaria de cerca de 2000 tiros de grosso calibre. Fuzilaria que tinha que se ouvir a quilómetros de distância e, pasme-se, não houve nenhuma entidade que fosse averiguar e investigar.
Não fosse o mero registo da glorificação da infeliz façanha nas redes sociais e tudo ficaria no «segredo dos deuses».
E agora o que fazer? Há que «cortar o mal pela raiz». É fundamental que o Ministério Público investigue este crime contra o património cinegético nacional e que os responsáveis sejam punidos de forma exemplar.
As reservas de caça, concessionadas pelo Estado, não podem ser geridas pelo interesse particular do concessionário ou pelo lucro, mas em atenção ao interesse público da conservação e fomento da caça. Trata-se de providenciar e monitorizar o funcionamento das reservas, a protecção e multiplicação das espécies e o efectivo cumprimento da lei.
É em nome do interesse nacional que há que criar dificuldades a estas organizações internacionais, sobretudo impedir estas novas vocações de mercenarismo venatório, o que se consegue com uma eficiente fiscalização.
Esta é uma função que cabe ao ICNF, mas este elemento importante não foi tido em atenção.
Há a necessidade de uma profunda reestruturação do ICNF, libertando elementos para o terreno e reforçando o seu efectivo.
O SEPNA/GNR deve ser reforçado e as suas funções autonomizadas do restante dispositivo, para que possam cumprir cabalmente, a uma missão especializada, com rigor e objectividade. Ambas as entidades devem, obrigatoriamente, apresentar anualmente um relatório da sua actividade, para uma maior transparência e informação pública.
É também importante o reforço das associações e clubes de caçadores através do apoio financeiro do Estado, pelo trabalho relevante que fazem na defesa do património cinergético, o controlo e equilíbrio da vida selvagem e o repovoamento das espécies; igualmente a abolição total das taxas e outros emolumentos, que estrangulam o seu funcionamento.
É decisivo, para inverter o panorama hoje existente, onde o nosso património cinegético nacional tão durante está a ser atingido, que haja vontade política para repor o equilíbrio e os direitos dos caçadores, para valorizar os interesses e modos de vida das zonas rurais, no respeito pelas tradições que a caça, como desporto, actividade lúdica e de controlo das espécies selvagens, assume no contexto social, económico e turístico.
Espera-se deste infeliz acontecimento que a «culpa não morra solteira», porque à justiça não basta realizar-se, é necessário que seja visível.
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