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Uma outra vez: ainda o «Museu Salazar»

Uma outra vez. No início de março, voltou a emergir a notícia de que o «Centro Interpretativo do Estado Novo» – que frequentemente surge referido como Museu Salazar – vai avançar.

CréditosNuno André Ferreira / Agência Lusa

Pela mão da autarquia, a sua instalação está prevista para a Escola-Cantina Salazar, no Vimieiro, concelho de Santa Comba Dão. A terra onde nasceu Salazar. De acordo com as várias notícias, está a ser constituída uma nova comissão científica e prevê-se a abertura deste espaço em maio – esperemos que não a 28, data do golpe que terminou a experiência republicana e instaurou a ditadura militar. Porque as datas contam e carregam significados.

Uma outra vez. Voltar ao desenrolar de um processo que é longo, para encontrar alguns momentos-chave, que interligam a ideia de espaço e de memória. Os lugares, como sabemos, não são neutros e podem ser lidos num complexo relacional, pensando as diferentes camadas de significados. Sobre eles também se construíram, nos últimos anos, hipóteses e projetos, carregados de significados políticos. Não é só o espaço ou o lugar associado a Salazar, mas também a forma como lhe é conferido significado.

Em primeiro lugar, a casa. Numa reportagem da RTP, de 28 de abril de 1996, sobre a romagem ao túmulo de Salazar, podemos ver a casa onde o ditador nasceu, na qual foi aposta uma faixa onde se pode ler: «Se Deus quiser será aqui o futuro museu do Dr. Oliveira Salazar» – a própria formulação respeitosa não deixa margens para dúvida acerca das intenções do promotores da ideia. Tratava-se de um preito de homenagem.

Em 2007, a União dos Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP) apresentou uma petição «solicitando que a Assembleia da República condene politicamente o processo que visa a materialização do Museu Salazar e que tome medidas para impedir a respectiva concretização». Ainda a casa. Consideram que este projeto «assume o objetivo de materializar um pólo de  saudosismo  fascista  e  de  revivalismo  do regime ilegal e opressor, derrubado pelo 25 de Abril de 1974».

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Museu Salazar: «Chamam-lhe apenas Estado Novo, nunca falam em fascismo»

Questionado pelo AbrilAbril sobre a abertura de um museu dedicado a Salazar, Domingos Abrantes afirmou que «é difícil imaginar que se possa tratar de um museu com vista ao esclarecimento do povo português».

Salazar e Franco, líderes dos dois regimes fascistas da Península Ibérica
Créditos

Não é nova a tentativa de branquear o Estado Novo, através da criação de um museu dedicado à figura de António de Oliveira Salazar, presidente do Conselho da mais longa ditadura fascista da Europa.

Segundo o semanário Expresso, o chamado Centro Interpretativo do Estado Novo vai abrir ainda este ano, com as obras a começarem em Agosto. O espaço será o da antiga escola-cantina Salazar, ao lado da casa onde viveu o ditador, em Santa Comba Dão.

A iniciativa avança pela mão do presidente da Câmara Municipal, Leonel Gouveia (PS), que afirmou não se destinar a um «santuário para nacionalistas» mas onde também não se quer «diabolizar o estadista».

Em declarações ao AbrilAbril, Domingos Abrantes, resistente antifascista e ex-preso político, lembrou que este objectivo já está há muito tempo em cima da mesa, por parte dos «saudosistas do fascismo», acrescentando que o significado da iniciativa não pode ser menorizado. «Está em linha de continuidade com uma ofensiva que se tem vindo a intensificar de branqueamento do fascismo», alertou. 

Rebatendo o argumento de que um museu sobre Salazar possa ser neutro, afirmou que «é difícil imaginar que se possa tratar de um museu com vista ao esclarecimento do povo português e, sobretudo das novas gerações, em relação ao que foi o fascismo, a repressão, o obscurantismo, os assassinatos, durante 48 anos, do qual esta figura, não sendo única, é em grande parte responsável».

Sublinhou que, ao contrário do que se procura com o Museu do Aljube, em Lisboa, e com o Museu Nacional da Resistência e Liberdade, em Peniche, este não se anuncia como um espaço de denúncia dos crimes e da política de Salazar, apoiada pelos grandes grupos económicos e financeiros. «Aliás, chamam-lhe apenas Estado Novo, nunca falam em fascismo, e o Estado Novo é fascismo», afirmou.

Assembleia da República condenou a criação do museu Salazar

Já em 2008 havia chegado à Assembleia da República uma petição dinamizada pela União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), com cerca de 16 mil subscritores, que condenava a abertura deste museu.

No texto afirmava-se que o espólio para o acervo museológico – não contando com o que existe na Torre do Tombo –  não teria qualquer relevo para o estudo objectivo da história deste período, e que com objectos de uso pessoal do ditador não se construía um centro de estudos. «Este projecto assume o objectivo de materializar um pólo de saudosismo fascista e de revivalismo do regime ilegal e opressor, derrubado pelo 25 de Abril de 1974», lê-se no documento.

Fruto desta petição, viria a ser aprovado por unanimidade o relatório final no sentido de dever a Assembleia da República «condenar politicamente qualquer propósito de criação de um museu Salazar e apelar a todas as entidades, e nomeadamente ao Governo e às autarquias locais, para que recusem qualquer apoio, directo ou indirecto, a semelhante iniciativa». No mesmo relatório ficou expresso que «a Assembleia da República não pode ter uma posição neutral entre a ditadura e a democracia», já que a Constituição da República portuguesa «proíbe as organizações que perfilhem a ideologia fascista».

Para Domingos Abrantes, a condenação expressa na petição de 2008 «mantém-se mais actual do que nessa altura, uma vez que desde então assistimos ao renascer em toda a parte das forças fascistas, que se assumem com maior ou menor timidez».

Considerando esta iniciativa um «insulto às vítimas do fascismo», o ex-preso político deixa o apelo a que se intensifique «a luta contra o que isto significa, em nome da liberdade e dos que sacrificaram as suas vidas para que o povo português pudesse viver melhor».

Historiadores não acompanham a iniciativa 

Ao Expresso, o historiador Fernando Rosas transmite também a ideia de que este projecto «será uma forma de tentar atrair turismo político e não de aprofundar a História do regime», e alerta para os exemplos de Predappio, onde nasceu Benito Mussolini, e do Vale dos Caídos, onde se encontra sepultado Francisco Franco, que se transformaram em locais de culto dos neofascistas de toda a Europa. 

A historiadora Irene Pimentel referiu igualmente ao semanário que não faz a «mínima ideia» de como vai ser feito e que acredita existir uma «estratégia de elogio da personalidade» do ditador.

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Acrescentam, ainda: «O museu Salazar, se por hipótese absurda e inadmissível alguma vez se viesse a concretizar, não seria um  factor de efectivo desenvolvimento do concelho, nem o pagamento de qualquer dívida de Santa Comba Dão a  um “filho da Terra”, porque esta nada lhe deve senão opressão e atraso económico e social como, aliás, todo o  país.  E  não  seria  um  organismo  “meramente  científico”,  mas, sim,  objectivamente,  uma  organização centrada na propaganda do regime corporativo-fascista do «Estado Novo» e do ditador Salazar.»

Uma outra vez: em vez da casa, foi proposta a inauguração do tal Centro Interpretativo do Estado Novo, na Escola-Cantina Salazar. Em setembro de 2019, o parlamento, condenou a criação desse museu, com os votos favoráveis da esquerda e a abstenção do PSD e do CDS.

De acordo com o voto de condenação (escrito pelo grupo parlamentar do PCP):

Ainda que autodenominado de «centro interpretativo» e criado sob o pretexto de um projeto académico, mas com um espólio baseado em objetos pessoais do ditador, tal instalação, desprovida de elementos de denúncia real da natureza da ditadura fascista que durante quase meio século oprimiu o povo português, liquidou as mais elementares liberdades, condenou o nosso país ao atraso e à miséria, reprimiu, torturou e assassinou, mais não seria, a ser concretizada, do que um local de romaria de antigos saudosistas da ditadura e de novos apoiantes de uma extrema-direita que se pretende assumir cada vez mais como ameaça à democracia.

A questão do espólio baseado em objetos pessoais não é de somenos importância. Tal como não é a forma como o discurso do museu vai ser construído. Como seriam mostrados esses objetos? E como seriam vistos e entendidos? Não é arriscado dizer que serviriam para humanizar Salazar, para o tornar mais próximo. Para que servem, então, esses objetos pessoais do ditador à História do que foi o Estado Novo?

E porque a questão de onde se pensa fazer este centro não é inócua, considero importante relembrar os argumentos do historiador Miguel Cardina, no artigo do jornal Público, de 5 de setembro de 2019: «(...) fazer um centro interpretativo no Vimieiro não é igual a fazê-lo num outro local qualquer.» Ou ainda, como argumenta Cardina, este centro estaria inserido num «complexo memorial»: «Teremos em redor os espaços onde Salazar se fez moço, a casa de Salazar e da sua família, os seus objetos domésticos, a campa rasa destinada a atestar essa imagem de um político que soube representar-se como antipolítico, um humilde servidor da nação que só com ela se casou. Esta imagem, que Salazar e as elites propagandísticas do regime cuidadosamente criaram, é ainda hoje preservada em setores consideráveis da população.»

Por tudo isto e por muito mais, não é este o lugar, esta Escola-Cantina, para um museu ou para um centro interpretativo sobre o regime estadonovista. Queremos espaços que se abram ao diálogo crítico e que articulem passados e ideias de futuro.


A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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