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|mobilidade e transportes

Uma vida periférica

São gerações e gerações a viver uma vida periférica, são famílias inteiras a fazer um esforço para que os seus filhos possam ter as ferramentas para superar as desigualdades e injustiças, possam ter uma oportunidade para uma vida melhor.

Créditos / noticiasaominuto.com

Por algum motivo que está para lá do alcance das mentes mais sofisticadas da Europa, há pessoas que no seu tempo de lazer pretendem deslocar-se sem recurso ao transporte individual. Esta audácia de acharem que têm direito a ir ao cinema, ao teatro, a concertos, à praia, a museus, a bares e a festas levará muito boa gente a considerar tal pretensão um capricho ou um luxo. Será certamente um luxo, porque, para tudo isto e muito mais, aqueles que moram na periferia das cidades veem a sua mobilidade limitada pelas prioridades na política de transportes das classes dominantes.

Uma das formas fundamentais de avaliação política é a observação do acesso a bens e serviços essenciais. Seja em que parte do país for, a mobilidade é um dos indicadores mais relevantes para o bem-estar e para o desenvolvimento social, cultural e económico das populações. Os constrangimentos à mobilidade, na deslocação para o trabalho e para o lazer, criam desigualdades abissais, fragilizam a democracia, provocam impactes ambientais incalculáveis e uma forte degradação da saúde e da qualidade de vida de todos nós.

«A política da manta curta, que tapa de um lado destapando de outro, cria muitas vezes a ilusão de que os problemas estão a ser resolvidos. Mas para as zonas periféricas mais desprezadas essa ilusão não só não convence, como se faz sentir diariamente na qualidade de vida, no cansaço e na falta de horizonte.»

Bastava uma simples avaliação das necessidades de transportes para a deslocação pendular casa-trabalho para percebermos que nas grandes áreas metropolitanas a oferta de transportes continua a ser insuficiente. Apesar da conquista do passe intermodal, na Área Metropolitana de Lisboa, e da passagem dos transportes para o domínio público, o fluxo diário de pessoas manifesta-se muito superior à oferta existente – cada vez maior face à deslocação para fora dos centros urbanos, provocada pela crise da habitação. Mesmo com a demonstração dessa realidade em cada plataforma de comboio, metro, barco ou autocarro, as necessidades de quem trabalha são desconsideradas. A política da manta curta, que tapa de um lado destapando de outro, cria muitas vezes a ilusão de que os problemas estão a ser resolvidos. Mas para as zonas periféricas mais desprezadas essa ilusão não só não convence, como se faz sentir diariamente na qualidade de vida, no cansaço e na falta de horizonte.

A política de transportes é, por si, demonstrativa de toda a política para estas zonas que compõem as áreas metropolitanas e de onde sai uma parte significativa daqueles que asseguram os serviços mais básicos para o funcionamento da vida social, cultural e económica das cidades. O desprezo e o abandono não são notícia, são prática antiga.

Quem passar, hoje, pela periferia da cidade de Lisboa terá oportunidade de ver os efeitos físicos da desindustrialização: prédios devolutos, mato a transbordar para a estrada, lixo, ferrugem e ruínas. Mas os seus efeitos sociais, mais escondidos da fugaz passagem, são, também eles, ruinosos e provocam uma sensação de distância em relação a bens e serviços, como se de uma condenação se tratasse: a perda do comércio, do associativismo e de equipamentos de cultura e lazer.

A indústria produtiva deu lugar à logística e ao retalho. Em qualquer cidade da periferia, a grande distribuição tomou conta dos solos e intensificou a pressão rodoviária com o trânsito de veículos pesados. As estradas nacionais não facilitam a mobilidade e mesmo as vias rápidas e autoestradas são sobrecarregadas pela utilização excessiva do transporte individual. A oferta de transportes públicos continua a ser escassa e, como bem lembrou um amigo há dias, na periferia da capital temos recolher obrigatório.

Da margem sul à linha da Azambuja, sem esquecer a linha de Sintra, as populações são, como sempre foram, reféns do transporte individual para aceder a um conjunto de bens e serviços porque os horários dos transportes não dão resposta a todos aqueles que circulam entre a meia-noite e as seis da manhã. Seja para trabalhar por turnos, para estudar, para o lazer ou para o acesso à cultura, usar transportes públicos implica sempre limitação na mobilidade, no tempo e no espaço. Quem perde o último comboio terá de esperar mais cinco horas para poder regressar a casa ou então terá de despender de um dia de salário para apanhar outro tipo de transporte. Quem circula ao fim-de-semana tem muito menos alternativas, tanto no transporte ferroviário como no rodoviário ou no fluvial, sobretudo entre concelhos vizinhos sem ser Lisboa. Esta é uma realidade invisível para quem ainda tem hipótese de viver no núcleo das grandes cidades.

«Estas pequenas e medíocres ambições resultam, pois, em políticas validadas por estudos de instituições neoliberais e contrastam com as necessidades reais das populações. Mas, mais do que isso, são conceções políticas que nos retêm, que agravam desigualdades e que nos mantêm à margem da emancipação e do desenvolvimento.»

Para quem vive dentro dos grandes centros urbanos, a mobilidade é sinónimo de autonomia em diferentes dimensões da vida. Ela significa escolha, opção, alternativa, com mais ou menos imperfeições. Mas até mesmo em Lisboa a cobertura dos transportes continua a não chegar a muitas zonas da cidade. O exemplo mais flagrante destas opções é a linha circular do metro. Para quem vive na periferia, a realidade é ainda mais dura e a vida é vivida com limitações e constrangimentos aos quais não podemos escapar.

A somar a esta insuficiência de resposta à mobilidade está também uma política de desinvestimento em equipamentos, programação e acesso à cultura e ao lazer; está a falta de imaginação para transformar o espaço público num lugar de sociedade; e está a desvalorização do movimento associativo condicionado, ao mesmo tempo, pela chantagem da dependência político-partidária.

Há poucas coisas que reflitam mais uma opção de classe do que a política para a mobilidade. Através dela vemos a conceção de quem nos governa sobre a nossa vida. Vemos, sobretudo, uma política feita por uma classe política elitista, por governantes deslumbrados com «a escala» e com o turismo, empenhados numa carreira assente na sobrevivência no aparelho de Estado, como se os cargos políticos fossem uma carreira profissional e a obediência ao neoliberalismo a inevitabilidade necessária para essa sobrevivência.

Estas pequenas e medíocres ambições resultam, pois, em políticas validadas por estudos de instituições neoliberais e contrastam com as necessidades reais das populações. Mas, mais do que isso, são conceções políticas que nos retêm, que agravam desigualdades e que nos mantêm à margem da emancipação e do desenvolvimento. São gerações e gerações a viver uma vida periférica, são famílias inteiras a fazer um esforço para que os seus filhos possam ter as ferramentas necessárias para superar essas desigualdades e injustiças, para que possam ter uma oportunidade para uma vida melhor.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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