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Pouco tempo livre, pais e crianças com pressa

A quem serve centrar o debate nas atitudes individuais das famílias?

Um olhar mais ou menos atento pelas notícias, pelas partilhas das redes sociais, ou pelos títulos de livros dirigidos a pais e educadores, dá-nos nota da preocupação com a forma como crianças e adolescentes sofrem com a falta de tempo livre, o excesso de actividade e estímulos.

A falta de tempo para brincar, o pouco tempo com os amigos e com a família, os dias divididos entre a escola e as poucas horas de descanso são a vida das famílias trabalhadoras com filhos. Não apenas das crianças, mas também dos jovens estudantes e dos avós já reformados; os primeiros envolvidos em longos horários e tarefas escolares e os últimos enredados no papel de cuidadores dando suporte a pais e mães a quem o emprego absorve completamente.

Cerca de 30% dos portugueses admitem, de acordo com os dados do INE, viver a ansiedade diária de conciliarem trabalho e vida pessoal, havendo uma relação direta entre a decisão de ter filhos, ou ter mais filhos, e as condições para trabalhar um número de horas que permita o tempo em família.

Em muitos dos debates sobre o assunto, o papel dos pais, em particular das mães, na gestão do tempo em família, assumem o centro da questão.

Abrimos, por exemplo, o facebook e vemos mais uma partilha da inocente curta-metragem Alike (Daniel Martinez Lara e Rafa Cano Méndez), que alguém explica com a legenda: «Como matamos a criatividade das nossas crianças?».

Premiada com um Goya em 2016 para melhor curta metragem, com milhões de visualizações em toda a Europa, este vídeo de 8 minutos vai-nos contando como o pai ensina as regras a que ele próprio se sujeita, desviando cuidadosamente o ouvido da criança do violinista de rua, conduzindo os seus passos para o emprego e os passos da filha para a escola. Os abraços que a criança dá nos intervalos de uma vida de regras e trabalho tornam-se mais tristes e deixam de colorir o pai e o cinzento da cidade. Quando o músico de rua deixa de aparecer no percurso do costume, o pai inventa um desenlace mais feliz e toca o violino imaginário que faz a cidade sorrir de novo. Tudo é centrado na atitude e nas decisões da personagem que, encontrando uma forma de escape pela criatividade, vence afinal o problema de um trabalho que formata e de uma escola que limita.

Um rápido deslizar de página e os nossos olhos lêem uma blogger, entre as dezenas que escrevem sobre a chamada «parentalidade consciente», que partilha a sua reflexão sobre o sentimento de culpa com a revista Estrelas e Ouriços deste mês (distribuída amplamente nas escolas e jardins de infância):

«Os nossos pais ter-se-iam rido da ideia de planear a ida a casa de um amigo para brincar, com uma hora para começar e outra para acabar o programa, e um lanche substancial pelo meio. Na infância, saíamos para a rua, brincávamos com as crianças que íamos encontrando e voltávamos quando as luzes públicas já estavam acesas. (…) A preocupação com os rótulos, com a comida congelada e com a fast-food não existia. As mães faziam refeições caseiras todos os dias porque não havia pressa. E as que faziam sopa de pacote e abriam latas a toda a hora não se preocupavam com isso.»

«Faz falta falar das condições materiais para que a vida das crianças e adolescentes não se passe entre a escola-corredor estreito para o trabalho sem direitos e a casa-família sobreexplorada e extenuada. Os pais não são vítimas e serão, certamente, os protagonistas desta mudança mas não com alterações pontuais ou escolhas mais felizes em relação à gestão do tempo diário.»

A receita não é nova nas crónicas sobre o assunto, sugere a mudança de atitude e o «sorriso perante os obstáculos», tão em voga nos tempos que correm. Se é preocupante que as crianças se alimentem mal na escola (e pensemos aqui nas centenas de cantinas escolares entregues à gestão privada), se não há tempo ou dinheiro para cozinhar em família, basta movermos a bússola das nossas angústias ou escolhermos outro termo de comparação, seja ele real ou fictício, que o quotidiano fluirá com menos arrelias.

Sobre a falta de tempo livre, ou a sobre-ocupação do tempo livre, são lançados com frequência novos títulos. Um dos últimos, Pais sem pressa, do pedopsiquiatra Pedro Strecht, é associado no blog «Pumpkin-gravidez/ bebés/ família/ escolas/ agenda», ao chamado slow parenting. No blog, dirigido a pais e educadores, podemos ler:

«de uma forma muito simples, este movimento Pais sem Pressa apela a uma desaceleração do ritmo a que vivemos o dia-a-dia em família e a uma consciencialização plena nas escolhas que fazemos para o nosso tempo. Com esta abordagem, procuramos introduzir progressivamente mais tempo de qualidade através da simplificação do dia-a-dia da criança. Aqui o tempo de “não fazer nada” ganha um papel central.»

De acordo com os princípios deste movimento, nascido nos Estados Unidos, a mudança de atitude dos pais é a chave. É necessário aproveitar o tempo livre com os filhos sem actividades estruturadas (em particular com as crianças até aos 5 anos), encontrar espaços para a brincadeira livre, deixar de lado as tecnologias e os brinquedos demasiado sofisticados.

As recomendações dos pediatras não podiam ir mais ao encontro das necessidades sentidas por muitas crianças e jovens portugueses. O interesse dos pais por este livro e o seu sucesso resultam, efectivamente, da análise correta dos problemas. Mas será suficiente esta análise correta sem apontar vias para alterar dinâmicas sociais que fogem ao controlo familiar?

O sentimento de pais e educadores traduz-se bem nas palavras de Pedro Strecht, numa das suas entrevistas sobre o livro:

«(...) cada qual se torna carrasco de si mesmo, surge o peso avassalador de um sentimento de culpa: dentro de uma certa cultura judaico-cristã, parece pecado ter tempo livre, louvar o descanso ou a fuga tanto quando se preza o trabalho, a responsabilidade, o ganho económico. Só que ser capaz de dar este passo de mudança de paradigma implica um longo trabalho emocional e uma capacidade de reflexão e ação em consonância com esse mesmo movimento. Por isso, parece urgente reformular paradigmas de vida diária, integrando-os progressivamente no tempo de existir.»

Este «tempo de existir» de que nos fala não é nada de novo se olharmos para as longas décadas de reivindicação dos célebre «três oitos: oito horas de trabalho, oito de descanso e oito para se fazer o que se quiser». Exigência tão actual quanto os retrocessos que se observam num país em que 80% dos novos empregos são precários e os horários de trabalho se tornam incompatíveis com a possibilidade de gerir de forma saudável a vida familiar.

Quando o debate sobre este problema é centrado na gestão que os pais fazem do tempo em família deixamos que fique por discutir o que encurta esse tempo e o torna tão custoso de gerir. E, desde já, a questão central da redução dos horários de trabalho, do aumento real dos salários e do respeito pelos direitos laborais e sociais dos pais trabalhadores, a maioria das famílias portuguesas.

«Cada qual se torna carrasco de si mesmo, surge o peso avassalador de um sentimento de culpa: dentro de uma certa cultura judaico-cristã, parece pecado ter tempo livre, louvar o descanso ou a fuga tanto quando se preza o trabalho, a responsabilidade, o ganho económico»

Pedro Strecht

Com o foco nas capacidades ou incapacidades dos pais, saem beneficiadas as empresas que continuam a desrespeitar direitos de maternidade e paternidade, como se não tivessem de cumprir a Lei do país onde exploram os recursos e os trabalhadores. São valorizados, porque ficam fora da análise crítica, os que advogam a «escola a tempo inteiro», ou a creche ao sábado, exilando as crianças e adolescentes da vida das freguesias onde habitam, confinando-as ao espaço físico dos edifícios escolares das 8h às 19h.

Desviando a atenção para as escolhas dos pais, compradores de tecnologia e tolerantes com as horas que os filhos dedicam à televisão e ao tablet, são deixados de lado os preços dos espaços de lazer e das actividades culturais. Na verdade, comprar tecnologia e ficar em casa concorre financeiramente com os preços dos espectáculos, dos museus e dos passeios em família. Só com esforço, boa-vontade e alguma consciência uma elite de pais se liberta desta pressão.

Ouvimos falar da uma «opção individual» por um tablet ou um jogo de computador, esquecendo o megalómano marketing a que as famílias e crianças são sujeitas por parte de poderosas multinacionais, mas também o preço de transportes e combustíveis, as condições de acessibilidade aos espaços ao ar livre, a inexistência e má qualidade dos parques infantis em grande parte do território português, ou a extinção dos programas de desporto escolar, os gimnodesportivos privatizados ou a insegurança dos espaços públicos, sem vigilância.

De facto, existe uma noção cada vez maior dos malefícios do sedentarismo e da exposição às novas tecnologias, nem que seja pelo elevado número de jovens e crianças que desenvolvem adição e comportamentos anti-sociais, mas não é sensibilizando famílias já sensibilizadas, e não raras vezes com a carga da culpa, que a situação se pode alterar. Obviamente, só o tempo livre e as condições materiais para a prática de actividades ao ar livre permitem as actividades ao ar livre.

Faz falta falar das condições materiais para que a vida das crianças e adolescentes não se passe entre a escola-corredor estreito para o trabalho sem direitos e a casa-família sobreexplorada e extenuada. Os pais não são vítimas e serão, certamente, os protagonistas desta mudança mas não com alterações pontuais ou escolhas mais felizes em relação à gestão do tempo diário.

É necessário lançar neste debate amplo na sociedade portuguesa, com especialistas que observam de forma profunda a realidade, as formas de alterar as condições que os pais têm para usufruir do «tempo de existir», as tão exigidas 8 horas para fazermos o que quisermos.

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