A cimeira de Hanói entre os EUA e a Coreia do Norte (RPDC) não se teria iniciado, criando grande expectativa nas duas Coreias e no resto do mundo, se as questões essenciais de um acordo a assinar não estivessem já acordadas antes entre negociadores de ambos os países que se têm mantido em contacto desde a cimeira de Singapura.
Interpretações
Qualquer interpretação na base de «mal-entendidos e expectativas diferentes» que terão causado o falhanço da cimeira ou de que «a exigência de um ultrapassava a linha vermelha do outro, e o encontro acabou mais cedo do que o esperado» (Público, 1 de Março de 2019). Ou ainda que «poderá ter sido um mal-entendido: se para os EUA a Coreia do Norte tem de desistir unilateralmente de todas as suas armas nucleares e destruir as instalações antes de um alívio das sanções, para a Coreia do Norte trata-se de um acordo mútuo, que implica ainda a retirada da presença militar norte-americana da península da Coreia» (BBC, 27 de Fevereiro de 2019).
Isso não contradiz que as questões a negociar sejam muitas, por vezes interligadas ou de realização sequencial até se estabelecer uma normalização da situação na península coreana e a desnuclearização e reunificação de ambos os países. Há a questão do cerco de forças navais e aéreas dos EUA e também o fim, definitivo ou progressivo, do sistema de armas nucleares na Coreia do Norte. Há o fim, total ou parcial, das sanções dos EUA contra a RPDC e países terceiros que provocam privações na RPDC e nos negócios da Coreia do Sul com ela. Há a atitude resolve-se tudo de uma vez ou vai-se por fases com cedências progressivas de parte a parte.
Mas devemos atender também às divisões na administração norte-americana e no seu próprio governo. Mesmo que sejam interpretados como um «faz de conta», como aconteceu nestes últimos dias, quando o vice-presidente Mike Pence deu a grande cambalhota de passar de grande impulsionador da intervenção militar na Venezuela a coberto de uma sua «ajuda humanitária» para grande acusador de Juan Guaidó como responsável pela derrota da operação.
Foi Mike Pompeo quem tramou a cimeira de Hanói?
No caso das negociações com a RPDC, o papel do Secretário de Estado Mike Pompeo será certamente aprofundado nos próximos tempos.
Porém, algumas considerações sobre o seu pensamento se podem avançar desde já. Em Outubro de 2017, alguns meses após o início das negociações com a Coréia do Norte, Pompeo, então chefe da CIA, insinuou publicamente que Kim Jong-un estava na lista de possíveis assassinatos a realizar pela CIA. «Se Kim Jong-un morrer de repente, não me façam perguntas sobre isso» e «Com todo o respeito, se Kim Jong-un deve desaparecer, atendendo ao que a CIA tem sido, pura e simplesmente não falarei sobre isso» e ainda, a propósito das anteriores declarações «Nós vamos tornar-nos numa agência muito mais cruel»…
Pouco depois o jornalista Michel Chossudovsky1, declarou que «este foi um acto deliberado de provocação, de “diplomacia assassina”. Pompeo deve ser removido do processo de negociação de paz que, eventualmente, requer a revogação do acordo de armistício de 1953 e a assinatura de um acordo de paz com a RPDC e a China».
Pois foi este Mike Pompeo, que se refere casualmente à história de assassinatos políticos da CIA, quem, por amarga ironia, passou a desempenhar um papel central nas negociações de «paz» em conjunto com o seu enviado à Coreia do Norte, Stephen Biegun.
Pyongyang conhecia quem constava nessa lista de assassinatos. Mas Pompeo optou deliberadamente por o tornar público antes das negociações com um líder político que estava na lista de alvos da CIA. Isso equivale a dizer a Kim: «Vamos negociar, mas quero matá-lo».
Não surpreendentemente, no seguimento das negociações EUA-RPDC com Pompeo realizadas em Pyongyang, na sequência da Cimeira de Singapura (12-14 de Junho de 2018), a RPDC acusou a administração Trump de querer impor uma «exigência unilateral em jeito gangster» para a desnuclearização. Esta declaração foi dirigida contra Pompeo, e não diretamente contra Trump, que o tinha encarregado de prosseguir as negociações em nome do presidente.
Em declarações, depois da primeira negociação com Pompeo, a RPDC emitiu uma declaração onde se refere «ainda apreciamos a nossa boa fé no Presidente Trump… Mas o lado norte-americano [Pompeo] surgiu apenas com a sua exigência unilateral em jeito de gangster de desnuclearização total… O lado americano [Pompeo] nunca mencionou a questão de estabelecer um regime de paz no Península coreana, que é essencial para desarmar a tensão e prevenir uma guerra».
O segundo dia da cimeira
No segundo dia da cimeira, em 27 de Fevereiro de 2019, ambos os líderes expressaram seu otimismo «por continuar o grande diálogo». «Eu não estou com pressa», disse Trump ao lado de Kim. «O importante é que façamos o acordo certo». Trump mostrou-se reconhecido por a Coreia do Norte não ter disparado um único míssil balístico nuclear desde o final de 2017. «Para mim, eu aprecio muito que não tivesse havido qualquer teste de foguetes nucleares e mísseis», acrescentou Trump.
Ambos os líderes se mostravam comprometidos em alcançar resultados positivos.
A decisão de «encerrar permanentemente» o complexo nuclear de Yongbyon, um dos principais centros de pesquisa nuclear da RPDC, localizado no oeste do país, e o local de teste de motores de mísseis Tongchang-ri, foi tomada em Setembro passado. Pyongyang também afirmou que a RPDC estava disposta a convidar especialistas internacionais para assistir ao desmantelamento ou até mesmo tomar medidas adicionais de desnuclearização se houver ações correspondentes dos EUA2.
Antes da sessão final, os dois líderes tiveram uma frutífera reunião “one-on-one” de cerca de 45 minutos. Os assessores de Trump temiam a sessão a sós de ambos que podia dar a possibilidade de Trump fazer um acordo com Kim, segundo o Washington Post3. E, depois, deu-se a reviravolta na última sessão com a presença do Secretário de Estado Mike Pompeo e do vice-presidente da RPDC, Kim Yong-chol.
Para Chossudovsky, do lado dos EUA, esse resultado foi planeado em Washington, bem antes da cimeira de Hanói.
Durante a conferência de imprensa, Donald Trump, reforçou que a relação com Kim é «muito forte». «Nós não desistimos de nada», garantiu, revelando-se ansioso por futuras negociações com o líder norte-coreano. «Têm um tremendo potencial, inacreditável», reforçou Donald Trump. Mas ainda não me comprometo com uma terceira cimeira. Mas «ainda não é uma boa altura para assinar alguma coisa». «Não podíamos abdicar de todas as sanções» como o presidente da Coreia do Norte pretendia, adiantou.
Mas no dia seguinte, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Coreia do Norte, Ri Yong Ho, citado pela agência sul-coreana Yonhap, disse que o seu Presidente, Kim Jong-un, apenas pedira aos EUA um alívio parcial das sanções, em troca do encerramento do seu principal complexo nuclear (sublinhado nosso). Até a RTP transmitiu esta parte da declaração do ministro norte-coreano!...
O ministro Ri disse ainda que a Coreia do Norte estava disponível para oferecer, por escrito, uma suspensão permanente dos testes nucleares e intercontinentais de mísseis balísticos, considerando que Donald Trump desperdiçou uma oportunidade de negociação que «pode não se repetir».
Estupefacção na Coreia do Sul
A Coreia do Sul tinha referido que resultados mais concretos desta cimeira teriam sido necessários para a expansão dos intercâmbios e projetos inter-coreanos que foram limitados pelas rígidas sanções globais contra Pyongyang.
Seul acredita que a sua iniciativa de paz – considerando que foi ela quem deu o primeiro passo - poderá ganhar mais força se as relações internacionais aumentarem em vários campos, incluindo nas áreas económicas.
As sanções, no entanto, têm impedido quase todo o comércio com o Norte. E isso era muito importante para a Coreia do Sul que, segundo a agência Yonhap, tendo um superavite comercial há 88 meses consecutivos, viu descer as exportações de Fevereiro do ano passado para este Fevereiro em 11,1% (traduzido na redução desse superavit de 5,9 para 3,1 mil milhões de dólares).
«Isso deve ser muito desconcertante para o governo sul-coreano, que tinha grandes expectativas para a segunda cúpula entre a Coreia do Norte e os EUA», disse Cheong Seong-chang, vice-presidente do Instituto Sejong. «Tornou-se difícil esperar progresso nas relações inter-coreanas por algum tempo.
E referiu que «resta um consolo, o de Trump parece manter a vontade de continuar a negociar com a Coreia do Norte». «O governo sul-coreano deve intensificar as suas consultas com os EUA e a Coreia do Norte para tornar uma terceira cúpula entre os dois países um sucesso».
A Coreia do Sul tem pressionado para expandir a cooperação através da fronteira, acreditando que isso ajudaria a impulsionar a reconciliação e as negociações paralisadas de desnuclearização.
Desde a cimeira inter-coreana de abril do ano passado, ambos os países mantiveram conversações de trabalho para discutir projetos conjuntos em várias áreas, incluindo saúde, silvicultura e comunicações.
Abriram um escritório de ligação na cidade fronteiriça de Kaesong, no Norte, para apoiar a expansão das trocas e contatos entre os dois países. E até lançaram um projeto para ligar os sistemas ferroviários e rodoviários em suas fronteiras.
Nos últimos meses, no entanto, as coisas foram suspensas devido à aparente preocupação de Washington com possíveis violações de sanções no meio de um processo de desnuclearização mais lento do que o esperado na Coreia do Norte.
O fracasso da cúpula de Hanói provavelmente também afetará a iniciativa de Seul de reabrir um parque industrial em Kaesong e retomar um programa de turismo para o Monte Kumgang, na costa leste do Norte, suspensos em 2016 e 2008, respetivamente.
Com um descongelamento nas relações, estes são dois projetos económicos inter-coreanos que provavelmente seriam retomados no caso de alívio de sanções. Com um impasse nas negociações isso poderá fazer arrastar o processo no tempo.
A infrutífera cimeira de Hanói, no entanto, também pode diminuir a perspetiva da primeira visita prometida de Kim a Seul, que era vista como um acontecimento significativo que favoreceria a paz, já que seria a primeira vez que um líder norte-coreano passaria pela fronteira desde a Guerra da Coreia de 1950-1953.
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