|Defesa Nacional

Lei de Programação Militar e Soberania

Impõe-se ajuizar sobre um futuro das Forças Armadas cuja Lei de Programação Militar proporcione a satisfação das suas necessidades para o exercício da Soberania sobre o território nacional.

CréditosFonte: Marinha Poruguesa (Facebook)

No âmbito da discussão em torno da revisão da Lei de Programação Militar (LPM) é incontornável relevar as múltiplas declarações de atuais e ex-responsáveis militares e políticos sobre o caso de Tancos e o que elas permitem inferir sobre a situação das nossas Forças Armadas (FA) e do Exército (EX) em particular.

Não é impossível separar as águas, cada coisa no seu lugar. Mas impõe-se ajuizar sobre o futuro das FA e refletir sobre onde nos encontramos, para onde a LPM nos projeta e o que sugerem as declarações1 de vários responsáveis militares, hoje fora da efetividade de serviço e que cessaram funções de responsabilidade no EX.

Seria infindável o compilar de argumentos discursivos que encaram e justificam a transformação das FA a reboque da modernidade do seu reequipamento. Já aqui se escreveu que "[...]umas FA onde domine a sofisticação tecnológica sem cuidar da contingência ditará da sua incapacitação[...]". Acresce que em primeiro lugar, uma Lei estruturante do Estado (até porque requer maioria qualificada para aprovação plena)2 não deveria suscitar interrogações sobre a sua adequação aos comandos constitucionais. No caso da presente LPM assim não acontece.

Se tivermos presente "que o fundamental numas FA ao serviço de um Estado Soberano reside nos seus homens e mulheres formados(as), desde a sua juventude, num contexto de conteúdos curriculares que privilegiem o culto e preservação de um saudável Sentimento de patriotismo", a audição dos diferentes depoentes na Comissão de Inquérito da Assembleia da República ao caso Tancos evidenciam as dificuldades com que se confronta o alcançar do saudável funcionamento das FA e do EX em particular. Dificuldades também decorrentes da incapacidade do Governo em recrutar e reter a juventude nas suas fileiras3. Realidade que, em rota de agravamento vinda de trás, de todos é conhecida e foi retratada no texto aqui publicado a propósito da sessão que, em 2018, a Comissão Parlamentar de Defesa promoveu na Assembleia da República. A este propósito, assinala-se a assertividade das declarações do deputado Jorge Machado ao questionar4 "o valor global da LPM face aos efetivos existentes e que previsivelmente continuarão a ser inferiores aos números aprovados".

Investir em material sem cuidar de, concomitantemente (de preferência a montante da aquisição de tal material), prover as FA do pessoal que a manutenção e operação desse material exigirão, só comporta prejuízo para o País e constitui administração danosa.

Compreende-se que o ministro da Defesa, recentemente chegado ao Governo, herde do seu antecessor a política do Governo do PS que manteve a sintonia com a do Governo PSD/CDS que lhe antecedeu. Compreensão que pode ser sustentada pelas declarações de Matos Correia (PSD) referenciadas pela comunicação social5. Sintonia de políticas certamente resultante do não querer acentuar a "urticária" do ex-Presidente da República à solução politica a que a muito custo deu seguimento. A Defesa ficou fora dos acordos de apoio ao atual Governo e o anterior ministro da Defesa não quis ou não teve a arte e o engenho de calibrar a politica de Defesa em domínios que não beliscariam a participação das FA em missões exteriores, as chamadas Forças Nacionais Destacadas, pelo contrário até nos aproximariam das condições em que nessas missões participam militares oriundos de outros países da NATO.

Em termos Constitucionais é incontornável que a LPM tem de ser avaliada pelo contributo que dará à satisfação das necessidades das FA para o exercício da Soberania sobre o território nacional.

Defrontando-se as FA com uma escassez crescente de pessoal, estando o País limitado em vários domínios do exercício da soberania sobre a vastidão do Espaço Estratégico de Interesse e sendo hoje publicamente reconhecido que o empenhamento nacional em missões externas acarreta riscos elevados6 e já publicamente reconhecidos ("era essencial dispormos permanentemente de helicópteros") ao nível do risco de vidas humanas dos nossos combatentes, verifica-se que a atual LPM relega tais realidades para não-prioritárias ou passa mesmo ao lado delas.

Que o futuro não coloque a exigência de ajuizar sobre quem assim procedeu. O investimento na proteção da força, ao nível tecnologicamente possível, tem de ser condição imperativa e precedente ao empenhamento da mesma.

Somos pois levados a concluir que esta revisão da LPM continua a secundarizar o investimento na construção de um sistema de forças capaz de assegurar a soberania no todo nacional e, no essencial, continua na rota da submissão aos interesses da nossa participação em missões externas, com a agravante de não investir em mitigar riscos e suprir vulnerabilidades daí decorrentes que comportam risco de vida acrescido para os nossos militares.

Importa assinalar que, na era do uso do espaço, só por distração, e com perda de oportunidade real de inovação, se pode compreender a ausência de um programa orientado para a aquisição de capacidade de vigilância e deteção, em todo o volume do vasto espaço estratégico de interesse, que assegure, com oportunidade – impor-se-á em tempo real – a obtenção, disponibilidade e integração de informação obtida por satélite (independentemente da dimensão dos satélites).

Sendo positivo o esforço no que releva da nossa capacidade em meios de patrulhamento e presença na vasta zona marítima de interesse nacional, continuamos aí muito limitados, como limitadíssimos nos encontramos na resposta em termos de forças terrestres – equipamento do combatente, dimensão, mobilidade e celeridade de intervenção em qualquer ponto do território nacional. Dirão alguns, mas a ameaça não existe e pode com propriedade replicar-se que, se e quando dela nos apercebermos não será a tempo de a ela adequadamente respondermos.

As capacidades, mesmo se iminentemente defensivas como manda a Constituição, não se constroem ao estalar dos dedos e no ponto de partida em que nos encontramos exigirão o esforço de uma geração e novas lideranças, imunes ao preconceito e portadoras de um pensamento patriótico inovador.

Esforço que deveria ser facilitado pelas estruturas de ensino militar como fora7 de reflexão e elaboração de pensamento e doutrina, mas temos de reconhecer que tais estruturas, ao invés de serem facilitadoras e estimuladoras, são castradoras e constituem um constrangimento difícil de ultrapassar atento o seu enfeudamento à doutrina da NATO e à propaganda neoliberal-belicista.

Como escreveu o ex-CEME Gen Martins Barrento, para «Unidades Politicas com Elevado Espírito de Defesa e Reduzida Capacidade Tecnológica» o pilar de construção da capacidade de defesa autónoma admite o recurso a formas não convencionais de fazer a guerra. Estas formas de fazer a guerra são características das ações de resistência e revolta contra o invasor protagonizadas por um Povo em armas (com maior ou menor enquadramento do seu exército regular).

Que respostas permitirá dar a execução da próxima LPM às seguintes interrogações:

Passaremos a ter FA capazes de fazer o enquadramento e integração das populações em ações de resistência?

A construção da capacidade militar necessária ao exercício autónomo da Soberania sobre o nosso território teve prioridade sobre as necessidades de financiamento para o empenhamento externo das nossas FA?

Em rigor, não podemos responder afirmativamente.

No último ano do Governo que, retoricamente, se propôs rasgar novos horizontes, a Defesa continua prisioneira dos arquétipos da propaganda belicista e subsiste a existência de uma política que secundariza e desconsidera mesmo a capacidade de autonomamente cuidar da defesa do solo pátrio e dos recursos que devemos preservar para assegurar um legado que suporte a vida das gerações vindouras.

Dois terços do investimento da proposta da LPM dão continuidade aos programas que vêm de trás e a inovação ficará circunscrita à problemática da Ciberdefesa num registo que pouco acrescentará para além de permitir a algumas empresas faturar explorando o binómio ignorância-receio (mais uma vez pela ausência de uma condição militar para os tempos de hoje e pela insuficiência de quantitativo de homens e qualificações afins).

Nos recônditos da nossa história saibamos identificar e projetar as FA deste tempo em consonância com  as exigências de construção de umas FA de um Portugal Soberano e que em prioridade devem ter

- Dimensionamento e implantação territorial em sintonia com a realidade demográfica, geográfica e económico-industrial do País;

- Implantação territorial do sistema de forças subordinada a critérios de cooperação e complementaridade entre os três ramos;

- Investimento em capacidades e infra estruturas que reconheçam prioridade à construção de um sistema de forças capaz de exercer a Soberania no todo nacional, responder às necessidades de enquadramento e integração das populações em ações de resistência e assegurar a vigilância e intervenção oportuna no nosso espaço aéreo, naval e terrestre.

Enganem-se aqueles que pensam e concebem as nossas FA como um meme de superpotência.

  • 1. Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso de Tancos.
  • 2. No caso os votos do PS – 85, eventualmente 86 se o deputado que solicitou saída do grupo parlamentar com eles votar – serão insuficientes, são necessários mais 31 a 32 votos. Recorde-se que o BE já declarou votar contra pelo que os votos a favor têm de vir, ou do PSD ou dos restantes dois partidos, CDS e PCP, o que é altamente improvável mas não de todo inverosímil se atendermos a que pela primeira vez o PCP se absteve na votação na generalidade.
  • 3. Declarações do Ten-General José Calçada na Comissão Parlamentar de Inquérito – Tancos entre minuto 10 e 12 e ao minuto 16, sobre insuficiências de pessoal no Exército – a maioria das unidades a 30% ou menos, um regimento devia ter 600 homens e hoje terá 90 ou menos. Sobre as dificuldades de recrutamento e retenção escute-se entre o minuto 60 a 70 (em 2019 o Exército deveria incorporar cerca de 10 mil Praças e terá ficado abaixo dos 8 mil).
  • 4. Minuto 179 das Declarações do Gen. Carlos Jerónimo na Comissão Parlamentar de Inquérito - Tancos.
  • 5. José Matos Correia (PSD) "[...]sublinhou que a proposta de LPM deste Governo "reconhece implicitamente" o acerto das decisões tomadas pelo anterior executivo PSD/CDS – pois "dois terços" da LPM são para dar continuidade a programas então aprovados mas onde o PS se absteve aquando da votação da LPM em vigor".
  • 6. Declarações do Gen. Carlos Jerónimo na Comissão Parlamentar de Inquérito - Tancos ao  minuto 175… sobre a presença na RCA e a falta de helicópteros para evacuação médico sanitária… ao referir o que se poderia ter feito em Tancos com esse dinheiro de cancelamento de programas.
  • 7. N.R.: trata-se do plural do latim forum.

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