A «repugnância» do primeiro-ministro da República Portuguesa com o comportamento do ministro das Finanças da Holanda é legítima, saudável, até catártica. Ao mesmo tempo, porém, é estranha e surpreendente. Porque o chefe do governo português não pode ignorar que a atitude de Woepke Hoekstra não é um caso isolado, uma birra pessoal: reflecte exactamente o espírito e a prática da União Europeia, dos quais Portugal vai tendo a sua dose de experiência própria. E quando António Costa afirma dramaticamente que «ou a União Europeia faz o que tem a fazer ou acabará» isso não passa de um banal e inócuo sound bite: sabe perfeitamente que a União Europeia não fará o que, no seu entender de ocasião, «tem a fazer» – salvar pessoas da tragédia do COVID-19 – e muito menos irá acabar por causa disso.
A posição do ministro das Finanças da Holanda, neste caso em relação à situação em Espanha, está perfeitamente sintonizada com as medidas económicas, financeiras e políticas contra os cidadãos tomadas pela União Europeia, por exemplo à sombra da crise iniciada em 2008-2009 e que continuam válidas – passando a fazer parte do acervo genético da instituição. O que as troikas e outras criaturas fizeram, designadamente contra os gregos e os portugueses, os comportamentos coloniais de Bruxelas em relação a vários países, as normas aprovadas salvando elites e sacrificando pessoas encaixam perfeitamente na mentalidade reproduzida pelo empedernido Hoekstra.
«Na Holanda os pacientes mais idosos ficarão a receber tratamento em casa, considerando-se que, dadas as poucas hipóteses de sobrevivência, será mais humano deixá-los nos seus lares»
Mark Rutte, primeiro-ministro holandês
O qual, aliás, mais não fez do que afinar o discurso pelo do seu primeiro-ministro, Mark Rutte, quando declarou: «Na Holanda os pacientes mais idosos ficarão a receber tratamento em casa, considerando-se que, dadas as poucas hipóteses de sobrevivência, será mais humano deixá-los nos seus lares».
Poder-lhe-íamos chamar «selecção natural», como aliás são obrigados a fazer, em desespero, profissionais de saúde italianos e espanhóis quando têm que decidir quais os pacientes a quem aplicam ou não aplicam os equipamentos de sobrevivência – uma vez que os existentes não chegam para todos os infectados pela pandemia.
Isto acontece na Europa que se considera desenvolvida e civilizada. Mas onde as instituições europeias, moldadas pelo regime neoliberal único e global, se têm dedicado a destruir os serviços públicos de saúde em nome do combate ao défice e da prevalência absoluta do euro – nem que seja através de apurados métodos de tortura social.
Wopke Hoekstra não é a excepção, é a regra. É repugnante? Sem dúvida! Mas é assim que funciona a Europa que dizem «dos cidadãos» e não passa de um gigantesco conglomerado económico e monetário que tem o lucro como objectivo e, por isso, as pessoas não passam de meios para o atingir.
Se dúvidas houvesse sobre o que é o Eurogrupo e como procede – sem quaisquer parâmetros humanos – basta ouvir as gravações das reuniões onde se programou o sacrifício dos gregos, captadas pelo ex-ministro Yanis Varoufakis. Está lá tudo expresso e explícito, sendo que a vocação punitiva não é de um ministro das Finanças holandês, de um alemão, de um austríaco, finlandês, lituano ou belga – é de todos. É a austeridade como sistema. Por isso, entregar a procura de uma pretensa solução contra os efeitos do COVID-19 a uma entidade austeritária como essa, chefiada por um obcecado do défice, só poderá dar os resultados a que estamos habituados, e que não se propõem salvar pessoas.
Hecatombe na saúde
A realidade dos dias de hoje, marcada por uma catástrofe de âmbito global, confirma que o neoliberalismo é potencialmente genocida. Transformar a saúde e a segurança social do ser humano em negócios orientados pelo lucro máximo viola abertamente o direito à vida de milhões e milhões de pessoas.
O Papa Francisco reconhece que assim é, ao chamar a atenção para a necessidade de por «as pessoas em primeiro lugar»: «(…) todos sabemos que defender as pessoas supõe gastos económicos; seria triste se a opção escolhida fosse a contrária, o que levaria à morte de muita gente, um genocídio viral».
Acontece que a opção é mesmo «a contrária»; há muito que vem sendo a «opção contrária» à que consta dos vazios discursos sobre os direitos humanos proferidos pelos dirigentes globalistas.
«A realidade dos dias de hoje, marcada por uma catástrofe de âmbito global, confirma que o neoliberalismo é potencialmente genocida. Transformar a saúde e a segurança social do ser humano em negócios orientados pelo lucro máximo viola abertamente o direito à vida de milhões e milhões de pessoas.»
Já percebemos que o desprezo pela vida está latente nas palavras do primeiro-ministro holandês e do seu ministro das Finanças. Porém, elas não são mais do que expressões de uma mentalidade que há muito deixou de ter contemplações com o ser humano, idoso ou não, quando este se atravessa no meio das estradas dos lucros.
A pandemia gerada pelo novo coronavírus expõe talvez essa realidade como nunca; e põe a descoberto a cobardia do regime dominante contra os mais frágeis da sociedade.
Mark Rutte declarou que, «devido às suas poucas hipóteses de sobrevivência», os mais idosos deverão ficar a morrer em casa, opinião cruel que nem a sua apressada proposta de constituição de um fundo europeu para cobrir as despesas médicas em Itália e Espanha vem agora mitigar.
O seu conceito, aliás, nada mais é do que a reedição da tese de um ministro japonês das Finanças, Taro Aso, que em 2013 defendeu que «os cuidados de saúde com os mais idosos significam custos desnecessários».
Algo que uma ex-enfermeira chefe do Serviço Nacional de Saúde britânico, June Andrews, interpretou à sua maneira: a pandemia de coronavírus «pode ajudar a resolver o problema das camas bloqueadas nos hospitais».
O tema é glosado de mil e uma maneiras nos dias que correm, sobretudo quando se põem em confronto as estratégias de confinamento e quarentena com as que apostam na normalidade social ou então no regresso rápido ao trabalho, como defendem Trump, Bolsonaro ou a Dinamarca.
«Abaixo dos 40 anos, quando se é infectado por essa gripezinha, só menos de zero vírgula qualquer coisa dá em óbito», assegura o presidente do Brasil enquanto continua a promover contactos com multidões e apoia caravanas de automóveis exigindo a reabertura do comércio. O presidente do Banco do Brasil, Rubem Novais, segue-lhe as pisadas: «é melhor que a maior parte da população seja infectada o quanto antes para que a economia volte a funcionar normalmente; deixem essa gente trabalhar» – apelou numa entrevista à Globo.
Num momento em que o presidente dos Estados Unidos defende cada vez com maior veemência o regresso ao trabalho nas regiões do país onde tem havido confinamento, uma das bíblias do regime neoliberal, o Wall Street Journal, publicou em 19 de Março um editorial não assinado sobrepondo os problemas económicos decorrentes da paralisação de actividades aos da tragédia humanitária. «Os custos desta paralisação», escreve, «aumentam de hora a hora e não queremos dizer gastos federais mas antes um tsunami de destruição económica que fará com que dezenas de milhões percam os seus empregos, pois o comércio e a produção simplesmente cessaram; muitas grandes empresas podem suportar algumas semanas sem receitas, mas isso não é verdade para milhões de pequenas e médias empresas».
O recado às massas está dado: o desemprego ou o trabalho em risco de vida para salvar o neoliberalismo.
Daí ao layoff…
Postas as coisas nestes termos não surpreende que, com ou sem quarentena, esteja estabelecida como dogma a ligação entre o COVID-19 e o desemprego, mesmo que seja matizado com a nuance de layoff, esse método de pôr os trabalhadores e, ao mesmo tempo, contribuintes a sustentar as empresas através do Estado como maneira supostamente única de tentarem garantir os seus empregos após a pandemia.
Na mentalidade neoliberal, hard ou soft, não existe outra maneira de perspectivar a economia durante e após a pandemia que não seja sacrificando os trabalhadores e pondo o Estado a sustentar as empresas, isto é, o patronato.
Não há como crises genéricas ou pandemias para o Estado passar de maldito a salvador do «tecido empresarial», obviamente privado.
«Na mentalidade neoliberal, hard ou soft, não existe outra maneira de perspectivar a economia durante e após a pandemia que não seja sacrificando os trabalhadores e pondo o Estado a sustentar as empresas, isto é, o patronato. Não há como crises genéricas ou pandemias para o Estado passar de maldito a salvador do "tecido empresarial", obviamente privado»
O que se adivinha no ar do tempo, através das movimentações dos expoentes neoliberais, com destaque para a União Europeia irmanada a Trump, é a necessidade de salvar o capitalismo do COVID-19, de produzir riqueza privada com recursos públicos; e para isso haverá que exigir mais sacrifícios humanos daqueles que, idosos ou não, escapem à peste do novo coronavírus.
Não sabemos, é claro, quantos dos trabalhadores que estão a ser enviados de enxurrada para o layoff regressarão aos seus empregos porque, como já se adivinhava, o vírus tem as costas largas; e também ignoramos quantas das medidas autoritárias e de excepção que estão a ser adoptadas através do planeta serão removidas depois de o inimigo viral ser abatido. Tem vindo a perceber-se que, numa espécie de regresso às origens, à sua estreia ortodoxa sob as garras de Pinochet, o neoliberalismo encontra no autoritarismo o seu ambiente de excelência.
Pelo caminho que as coisas levam, e recordando experiências recentes, se os cidadãos não se organizarem para fazer frente ao que aí vem na sequência do que aqui está não faltarão mais neoliberalismo, mais autoritarismo, mais sacrifícios e austeridade para a generalidade da população – que não para as elites – menos direitos sociais e humanos e, claro, menos liberdades e ainda muito menos democracia.
Repugnante é, em si mesmo, o neoliberalismo; e, como percebemos pela prática e através dos seus próprios tenores, tem vocação genocida. Não porque o ministro das Finanças holandês o tenha admitido numa frase que agora – apenas da boca para fora – ele considera «infeliz». Mas porque é a ordem natural das coisas.
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