O combate à pandemia do COVID-19 e, em especial, o decretamento do estado de emergência, determinaram a adoção de um conjunto de medidas de prevenção, destinadas a conter a transmissão e da doença e que os portugueses em geral têm observado.
Este combate que é de todos, mas que não atinge todos de igual modo, teve como primeiras vítimas milhares de trabalhadores afetados por despedimentos em massa, dissimulados, na sua maior parte, de «caducidade» de contratos a termo certo e incerto e de trabalho temporário antes dos respetivos termos de duração, de simples avisos de não pagamento dos salários vencidos, de cessações de prestações de serviço (falso recibos verdes), e de outras formas contratuais imaginativas destinadas a esconder a relação de trabalho realmente existente entre o trabalhador e a entidade patronal, mostrando que, se a doença não discrimina ricos e pobres, patrões e trabalhadores, os efeitos económicos não se fazem sentir de igual maneira sobre todos. E se o vírus não escolhe a vítima (é um vírus democrático), a desigualdade no uso e na distribuição dos recursos não só permanecem como se acentuam em desfavor dos mais frágeis.
Por outro lado, a criação de um estado de medo, a par do estado de emergência, tem levado à aceitação de discursos talhados para gerar a convicção de que alguns direitos fundamentais dos trabalhadores e de cidadania, ou desapareceram por obra da necessidade de combate à pandemia, ou são um obstáculo e esse combate, como se a democracia e tudo o que lhe é inerente pudesse constituir uma dificuldade, e não uma vantagem, para a mobilização dos portugueses, como se a ausência ou a limitação de direitos constitucionais fundamentais fosse o modelo eleito para a resolver os problemas de um país, quando eles são verdadeiramente graves. A «suspensão da democracia», em estados membros da União Europeia, perante a passividade desta, como na Hungria e na Polónia, nomeadamente, são exemplos que justificam uma permanente atenção e um combate sem hesitações ou contemplações.
Essas ideias, sustentadas pela direita trauliteira e populista, que as associa à aplicação das medidas de combate à pandemia (como o ataque às comemorações ao 25 de abril e ao 1.º de Maio), não têm suporte constitucional e devem ser combatidas com todo o vigor.
«A suspensão ou a restrição de direitos, entendida no sentido literal das normas do estado de emergência, sem cuidar de avaliar a sua extensão, duração e os meios utilizados em concreto, violaria o princípio da proporcionalidade, nas vertentes da adequação e da necessidade, na medida em que excedesse o estritamente necessário para combater a pandemia»
Com efeito, o estado de emergência em que tais medidas se integram encontra-se constitucionalmente previsto no art.º 19.º da Lei Fundamental e, na redação da Lei 44/86, de 30 de setembro (redação atualizada), que o regulamenta, «é declarado quando se verifiquem situações de menor gravidade, nomeadamente quando se verifiquem ou ameacem verificar-se casos de calamidade pública», sendo a suspensão ou restrição de direitos, quer quanto à extensão, quer quanto à duração, limitada «ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade».
Assim, o estado de emergência em vigor, decretado com fundamento em calamidade publica, está limitado quanto à sua extensão, duração e meios utilizados aos que são estritamente necessários ao pronto restabelecimento da normalidade, ou, no dizer do art.º 19.º, n.º 4 da Constituição, «devem respeitar o principio da proporcionalidade e limitar-se (…) ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional». Todas as medidas políticas, legislativas ou práticas, que excederem o objetivo de combate à pandemia, não cumprem os limites constitucionais.
Para além de não vislumbrarmos qualquer anormalidade constitucional para ser restabelecida – o que nos remete para a desnecessidade do decretamento do estado de emergência – a suspensão, em sentido amplo, de direitos das comissões de trabalhadores (CT) e das associações sindicais em matéria de participação na elaboração da legislação do trabalho, do direito de greve, ou dos direitos de reunião e de manifestação, sobretudo pelo modo impreciso e generalista como são definidos os setores abrangidos pela suspensão, suscita alguns reparos e daria lugar, em caso de greve, às mais diferentes interpretações. E as mesmas reservas se colocam quanto «à limitação ou proibição de reuniões ou manifestações», bem se sabendo que estamos a tratar de atividades desenvolvidas, em especial, pelos sindicatos e pelos partidos políticos, excluídos dessas restrições pela Lei 44/86. É caso para dizer que não havia necessidade de pisar estes terrenos, que sendo pantanosos são também de muito duvidosa conformidade com a Constituição, e com a própria Lei que regulamenta o estado de emergência.
Na verdade, as greves não são suscetíveis de serem metidas no mesmo saco. Podem ter – e têm – durações variáveis, abranger todo ou parte do universo dos trabalhadores de uma empresa, de um setor ou subsetor de atividade, destinar-se à totalidade ou parte das atividades desenvolvidas, incidir sobre todo ou parte do tempo de trabalho, ou mesmo restringir-se ao trabalho suplementar em todos ou a parte dos dias da semana ou do mês.
A mesma preocupação servirá para enquadrar às outras «suspensões», «limitações» ou «proibições» relativas aos direitos de participação na elaboração da legislação do trabalho e do direito de reunião ou de manifestação, já que todos esses direitos não poderão ser suspensos ou restringidos desde que observadas as regras definidas pelas autoridades de saúde, necessárias para reduzir o risco de contágio e de combate à pandemia, limitadas ao que for estritamente necessário a esse fim.
A suspensão ou a restrição de direitos, entendida no sentido literal das normas do estado de emergência, sem cuidar de avaliar a sua extensão, duração e os meios utilizados em concreto, violaria o princípio da proporcionalidade, nas vertentes da adequação e da necessidade, na medida em que excedesse o estritamente necessário para combater a pandemia. Outra qualquer leitura das normas suspensivas e/ou proibitivas, previstas no decreto do Presidente da República que decreta o estado de emergência, daria lugar a práticas não conformes com a constituição, em prejuízo do regime democrático e dos direitos das pessoas, trabalhadores ou reformados, que se querem defender e enriquecer.
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