A greve marcada para amanhã é a primeira paralisação nacional do sector no Brasil. Sem direito a quarentena e sujeitos à precariedade, os distribuidores de comida ao domicílio exigem melhores condições de trabalho e a suspensão de «bloqueios arbitrários realizados frequentemente» por empresas como Rappi, Ifood, Loggi e Uber Eats.
Um estafeta que se identifica como Mineiro e é um dos organizadores da greve esclarece que, além da interrupção imediata dos bloqueios sem justificações, os trabalhadores reivindicam ainda o aumento do pagamento das corridas, o aumento da taxa mínima de dois reais (32 cêntimos) por quilómetro percorrido, medidas de protecção contra roubos e acidentes, e apoios ao nível dos materiais e da alimentação.
«Nem todos os dias temos o que comer. […] Nem todos os dias temos dinheiro para sair de casa. Por vezes deixamos de comer para abastecer», declara ao Brasil de Fato o distribuidor da zona Sul de São Paulo, que há três anos trabalha com aplicações electrónicas de empresas.
«Nem todos os dias temos o que comer. […] Nem todos os dias temos dinheiro para sair de casa. Por vezes deixamos de comer para abastecer»
Uma estudo recente feito pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) revelou que a pandemia de coronavírus tornou o trabalho destes profissionais ainda mais precário.
Com o aumento dos pedidos, os distribuidores passaram a trabalhar mais horas, mas isso também implicou maiores custos com equipamentos e materiais de prevenção para evitar a contaminação pela Covid-19. Neste contexto, Mineiro congratula-se com a estimativa de que 98% dos estafetas adiram à paralisação desta quarta-feira.
Ainda assim, sublinha que o apoio da população é essencial. «O pessoal tem de aderir porque, ao não fazer o pedido, eles ajudam-nos», afirma.
Nas redes sociais, os estafetas estão a usar a etiqueta #ApoieoBrequeDosApps para orientar a população sobre a forma de se solidarizar com a luta dos trabalhadores.
Melhores condições de trabalho, «porque temos condições péssimas»
«A alimentação é a coisa que mais dói, ter de trabalhar com fome carregando comida nas costas», afirma Paulo Lima, conhecido como Galo, um motociclista que trabalhava para várias empresas e que, desde Março último, tenta unir e organizar o sector para reivindicar melhores condições de trabalho. «Porque temos condições péssimas. Bloqueios injustos, dívidas injustas, não temos casa de banho, nem alimentação», denuncia.
«Actualmente, no contexto da pandemia, um estafeta factura entre 200 e 300 reais (entre 32 e 49 euros) por semana, o que é menos que o salário mínimo»
Este estafeta ficou conhecido, em Março deste ano, quando um vídeo em que denunciava as más condições destes trabalhadores se tornou viral. Chegou a ser capa de uma revista. «Depois disso, caiu tudo, fui bloqueado em todos as aplicações», conta, explicando que as empresas adoptam um método designado como «bloqueio branco» quando querem afastar trabalhadores por motivos que não podem justificar tecnicamente. «O cadastro fica activo, você fica online, mas não recebe nenhum pedido», refere.
Galo afirma que as empresas devem reconhecer o vínculo laboral com os distribuidores e exige-lhes que paguem as refeições, um plano de saúde, salário garantido. Actualmente, no contexto da pandemia, um estafeta factura entre 200 e 300 reais (entre 32 e 49 euros) por semana, o que é menos que o salário mínimo, porque – explica – é preciso «pagar a prestação da moto, a manutenção, há sempre um pneu que fura, e outras dívidas». E alerta: «E se pegamos coronavírus na rua, quem paga o tratamento e o tempo parado?». É que o seguro de vida, previsto e pago pelas empresas, não garante o tratamento em caso de contaminação por coronavírus.
Precarização ilegal
As empresas que vendem o serviço de entrega ao domicílio continuam a usar mecanismos para afastar a possibilidade de celebração de contratos com os distribuidores, revela o Brasil de Fato. Em declarações ao portal brasileiro, o advogado Ronaldo Pagotto destaca que essas empresas «tentam forjar uma relação de "empresa para empresa", evitando, assim, a admissão de uma relação de subordinação dos motoristas». Frisou, no entanto, que isso «não é o que se vê na prática», pois «os motociclistas são obrigados a cumprir horários e um padrão de qualidade no trabalho».
Para o advogado, o modelo de contratação das empresas de entrega é ilegal. «O problema é que ela está ganhando cada vez mais uma blindagem da legislação. Aí, o patronato, no dia-a-dia, cuida de fazer a outra parte, para garantir que isso não fique evidente. O patronato, por exemplo, usa nas mensagens [das aplicações para os distribuidores] "pode fazer quando quiser". O que é mentira», denuncia.
Quando refere «blindagem da legislação», Pagotto recorda a aprovação da Reforma Trabalhista e da Lei 13.429, de Março de 2017, sancionada pelo então presidente Michel Temer, que autoriza a externalização [terceirização] no país sul-americano.
«A precarização do trabalho do empregado. Isso é o que importa para nós; já era muito comum, agora ficou mais. Com a legislação do Michel Temer, isso passou a ganhar ares de legalidade, tornando-se mais difícil de comprovar uma terceirização fraudulenta», explica.
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