|Legislação laboral

Oportunidade e descaramento

2020 foi um ano de sofrimento. Mas quem não parece sofrer, por muito que os portugueses sejam castigados, são as grandes empresas de retalho. Essas, no primeiro semestre do ano, especularam com os preços.

Concentração nacional de trabalhadores de empresas de distribuição em frente à sede da presidente da APED - Pingo Doce/Jerónimo Martins, em Lisboa, 28 de Setembro de 2017
CréditosRodrigo Antunes / Agência LUSA

Foi em julho do ano passado. Parece ter sido há muito mais tempo, mas foi em julho de 2019 que depois um longo período de discussão o governo viu aprovadas as suas propostas de alteração à legislação laboral. Anunciadas com grande pompa e circunstância com o objetivo «de combater a precariedade, reduzir os níveis de segmentação do mercado de trabalho e promover um maior dinamismo da negociação coletiva», as alterações ao código do trabalho do ano passado rapidamente falharam no teste do combate à precariedade.

Os jovens à procura do primeiro emprego e os desempregados de longa duração ficaram sujeitos a um período experimental de 180 dias; as empresas passaram a poder «legalmente» ter «rotatividade excessiva» de trabalhadores mediante pagamento de uma taxinha; introduziu-se a possibilidade do «banco de horas» mediante aprovação em referendo na empresa, acabando-se com a sua dependência relativamente à contratação coletiva; manteve-se a caducidade das convenções coletivas de trabalho continuando a obliterar o princípio do direito ao tratamento mais favorável.

As alterações do governo foram aprovadas com os votos a favor do PS e as abstenções do PSD e do CDS-PP.

«Anunciadas com grande pompa e circunstância com o objetivo «de combater a precariedade, reduzir os níveis de segmentação do mercado de trabalho e promover um maior dinamismo da negociação coletiva», as alterações ao código do trabalho do ano passado rapidamente falharam no teste do combate à precariedade»

O que tiveram em comum estas alterações foi o facto de nenhuma delas ter em consideração um princípio arreigado da nossa revolução, e com o qual todos os trabalhadores estão de acordo, é que na relação de trabalho não existe igualdade, não existe uma situação de equilíbrio de forças. E é por isso que a nossa Constituição, mesmo com todos os cortes e retalhos, mandos e desmandos de anos, mantém proteção ao trabalhador e institui formas de negociação entre entidades patronais e organizações coletivas de trabalhadores – os sindicatos.

É por este motivo que a implementação de «banco de horas», até às alterações laborais do ano passado, batia na trave, porque não estava prevista na maior parte dos contratos coletivos de trabalho, pelo menos nos da CGTP-IN. A maior parte da contratação coletiva institui, isso sim, o limite a horas extraordinárias e o seu pagamento superior à hora de trabalho normal. É que, assim não sendo, fica mais barato ao patrão pagar mais uma, duas, três ou mais horas, aos dois, quatro ou 20 trabalhadores da casa, do que contratar novos funcionários. E agora, com um banco de horas «legal» que institui como limite as 150 horas anuais, sem pagamento do trabalho suplementar, os patrões esfregam as mãos de contentes pois tiveram carta branca para explorar mais um bocadinho, para roubar aos trabalhadores mais umas horinhas, sem pagar mais por isso.

A artimanha em aplicar mais tempo experimental a trabalhadores à procura do primeiro emprego ou desempregados de longa duração só revela que governo e ministros estão, ou estiveram, tomados por uma lógica própria dos trapaceiros profissionais que se aproveitam dos mais desprotegidos e vulneráveis. Se se trata de jovens ou desempregados, é deixar as empresas usufruírem do seu trabalho durante seis meses e mandá-los embora. Logo serão contratados por outros e teoricamente podem até viver assim durante anos. É uma maravilha, as empresas nunca chegam realmente a contratar e nunca falta mão-de-obra.

Manteve-se a caducidade da contratação coletiva essencialmente devido a esse mesmo espírito de intrujice que vem dizer para os holofotes que os contratos coletivos são muito restritivos e que precisamos de um «mercado de trabalho» mais moderno, rápido e flexível, que seja capaz de responder às novas necessidades de modernização e «re-béu-béu, pardais ao ninho».

Entretanto o mundo girou, a vida continuou, e eis que 2020 se transforma no ano de quase todas as desgraças. Há uma nova doença, há dificuldades em responder, há falta de trabalhadores qualificados (por exemplo nas equipas intensivistas), há fragilidades nas estruturas de apoio social, como os lares e residências para os mais idosos. Os turistas não aparecem, os hotéis começam a queixar-se, os restaurantes quase não trabalham, o pequeno comércio de rua sofre profundamente.

Quem foram os primeiros a ser despedidos? Sem apoio no desemprego? Pois claro: os jovens e os desempregados na longa caminhada do deserto do período experimental.

Empresas fecharam, empresas despediram, os trabalhadores da saúde fizeram horas intermináveis sem direito a descanso, as pessoas foram despedidas, ficaram sem salário, ficaram sem a consulta, sem a escola, sem o serviço. Sofreram. 2020 foi um ano de sofrimento.

Mas quem não parece sofrer, por muito que todos os portugueses sejam castigados, são as grandes empresas de retalho. Essas, no primeiro semestre do ano, especularam com os preços dos bens alimentares, mas também do álcool e das máscaras. Se a máscara valia vinte cêntimos passou a custar 2 euros, e assim se verificou com muitos dos produtos vendidos nessas grandes cadeias que são os Pingo Doce, os Continente, etc.

E como o ano se foi fazendo de crise, logo os senhores da grande distribuição e venda a retalho arranjaram maneira de pagar menos aos seus trabalhadores. Àqueles que nunca pararam de trabalhar, que trabalharam sábados, domingos e feriados, que não fizeram a sua pausa, que não puderam ir à casa de banho e que, pasme-se, ganham o salário mínimo nacional.

«com um banco de horas «legal» que institui como limite as 150 horas anuais, sem pagamento do trabalho suplementar, os patrões esfregam as mãos de contentes pois tiveram carta branca para explorar mais um bocadinho, para roubar aos trabalhadores mais umas horinhas, sem pagar mais por isso»

No ano em que as palavras mais ouvidas terão sido por certo «confinar», «desconfinar», «medo», «doença», «covid», «máscara», em que todos estivemos muito ocupados com a emergência nacional de resposta a uma pandemia de escala mundial, os senhores do Pingo Doce e do Continente, mas também da FNAC, da GalpGeste, a Plural Cooperativa Farmacêutica, do Grupo Monte D’Alva, e muitas outras, não tiveram como prioridade contribuir para evitar a deterioração da qualidade de vida dos portugueses, mas sim garantir que tiram de cada um dos seus trabalhadores mais 150 horas de trabalho anual de borla. E toca de realizar referendos por todo o lado, como permite e manda a legislação do nosso primeiro ministro António Costa, da nossa ministra do Trabalho, da Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, e restante governo, mas também do PSD e do CDS, que «deixaram» a lei seguir no parlamento como há muito também já desejavam.

Pagamento de horas extraordinárias? Trabalho suplementar pago? São coisas que aqueles que estão agora a começar a trabalhar não vão conhecer para já. O que vão conhecer bem é o capataz de serviço a dizer-lhes, escassos 30 minutos antes da hora de saída, que hoje vão dar mais uma horinha. Ou duas. Ou mais. O que vão saber de cor e salteado é o patrão a dizer-lhes que não, hoje não podem usar as horas, amanhã não podem usar as horas, talvez na próxima semana ou na outra, ou quando lhe der mais jeito.

Para que se registe, os senhores empresários não estavam muito seguros de si. Para garantir as votações do seu agrado, nos sítios em que o conseguiram, pressionaram, impediram os sindicatos de estarem presentes para fiscalizarem os ditos, falaram individualmente com cada trabalhador, votaram por trabalhadores ausentes, fizeram tudo por tudo para garantir as horinhas de borla. Tudo isto, repita-se, dentro da «lei», ainda que num tempo e num país em emergência social.

Pior que esta demonstração sem vergonha do que realmente interessa a estes senhores «respeitáveis», grandes empresários que «realmente contribuem» para fazer avançar a economia, e que, no entanto, passaram o ano a pedinchar subsídios e a dizer aos outros para ir trabalhar, só mesmo as circunstâncias deste natal.

«Pagamento de horas extraordinárias? Trabalho suplementar pago? São coisas que aqueles que estão agora a começar a trabalhar não vão conhecer para já. O que vão conhecer bem é o capataz de serviço a dizer-lhes, escassos 30 minutos antes da hora de saída, que hoje vão dar mais uma horinha. Ou duas. Ou mais»

É um natal sem aqueles que vivem nos lares, aqueles a quem durante um ano inteiro nunca foi perguntado o que queriam, o que sentiam, o que precisavam e o que decidiam. Aqueles a quem o governo podia garantir o importante aconchego mental de uma refeição em família, num ano em que, se alguma vez saíram do lar, foi por engano. O governo podia. Podia sim, bastava investir, garantir testes rápidos e normais, equipas de acompanhamento e ajuda. Em vez de 10 dias de quarentena obrigatória no quarto, depois do natal em família, os residentes em lares apenas precisavam de ficar um ou dois dias, a menos que se viesse a verificar que estavam infetados. Mas o governo do capital é sempre pelo mais barato. Contrata médicos, enfermeiros, assistentes operacionais, mas pelo menor tempo possível, e paga-lhes o menos possível. Faz contratos de três e seis meses, no meio de um furacão que ainda ninguém percebeu até quando é que dura. Encaminha para os privados situações a que devíamos dar resposta no SNS, e manda-nos ficar em casa ao fim de semana e ir para as filas intermináveis dos supermercados até às 13 horas da tarde, promovendo os ajuntamentos. Não protege eficazmente ninguém, mas protege os grupos privados de saúde que precisavam de tirar alguma coisa disto, os hipermercados que também «sofreram muito» e outros que tais. Os juramentos de fidelidade são coisas complicadas e difíceis de quebrar. E se ainda há dúvidas, que não haja: este governo mais pressionado ou não, melhor ou pior que outros, com mais ou menos competência nisto ou naquilo, fez um juramento de fidelidade aos grandes e poderosos.

Os meus votos de boas festas neste final de 2020, são para que uma chuva de luta cresça dos homens da terra e se abata sobre «os senhores à força e mandadores sem lei». Que tenha tal fúria, que obrigue «os mordomos do universo todo» a esconderem-se nos quartos das criadas (que o deixarão de ser) e a ficarem por lá até que não lembrem do mundo antigo que construíram.

Lutemos!


A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)

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