As estatísticas devem servir para identificar os problemas, por forma a que se possa resolvê-los. Manipular ou impedir a criação de estatísticas prejudica essa resolução.
Vem esta introdução a propósito de declarações recentes da ministra do Trabalho, da Segurança Social e Solidariedade, ex-secretária de Estado do Turismo do ministro Siza Vieira. À agência Lusa, Ana Mendes Godinho declarou, a 27 de Março passado, que os apoios sociais extraordinários por causa da pandemia prestados desde Março de 2020, «abrangem 2,8 milhões de pessoas, num total de 3341 milhões de euros, incluindo isenções e dispensas contributivas». Entre essas medidas, inclui-se aquelas que foram negociadas e aceites pelo Governo no âmbito do Orçamento de Estado para 2021, como o pagamento dos salários por inteiro aos trabalhadores em layoff simplificado (LOS) e a prorrogação do subsídio de desemprego por mais seis meses, abrangendo já 202 mil pessoas, com um custo orçamental de 122 milhões de euros.
Destas declarações, duas ilações devem ser relevadas.
A primeira é que todos estes valores não aparecem nas estatísticas dos indicadores Covid, divulgadas pelo Ministério do Trabalho.
Pior: tudo indica tratar-se de uma compilação errónea do total de pessoas que foram sendo apoiadas desde o início da pandemia, dado que não têm em conta o número das empresas e dos trabalhadores que, desde Março de 2020, foram deixando de estar apoiados. É um número redondo, bem sonante, mas que não diz nada de real sobre o actual nível de apoio social, sobre o seu actual âmbito ou sobre a sua eficácia. Presentemente, estarão mesmo a ser apoiadas 2,8 milhões de pessoas como se faz crer? Como evoluiu esse agregado ao longo do período da pandemia? Quantos estão a ser apoiados hoje? Como se reparte esse apoio pelas diversas medidas? A este tipo de perguntas, não se obteve resposta por parte do Ministério do Trabalho.
Em segundo lugar, estes números nada adiantam ao que já tinha sido dito pela mesma ministra a dia 17 de Março, em comissão especializada do Parlamento (veja-se a declaração de abertura).
«A entrevista foi dada quando se antevia uma guerra política entre o Governo, por um lado, e a oposição e o Presidente da República, por outro, com a aprovação pelo Parlamento, à revelia da vontade do Governo, de mais medidas de apoio social»
Nesse caso, qual a razão para dar uma entrevista repetindo a mesma mensagem? A entrevista foi dada quando se antevia uma guerra política entre o Governo, por um lado, e a oposição e o Presidente da República, por outro, com a aprovação pelo Parlamento, à revelia da vontade do Governo, de mais medidas de apoio social. Antes mesmo de ter sido conhecida a decisão de Marcelo Rebelo de Sousa de as promulgar, Ana Mendes Godinho disse nessa entrevista à Lusa que «não podemos estar permanentemente com medidas avulsas que estão sempre a ser alteradas sob pena de não conseguir executar e chegar às pessoas», e que as medidas aprovadas não podem ser aplicadas devido à regra constitucional que impede o Governo de gastar mais do que o limite de despesa pública previsto no Orçamento de Estado (lei-travão). Ou seja, a entrevista foi dada como instrumento de intervenção política e os números estatísticós foram usados para reforçar a mensagem de que aqueles apoios nem são necessários, já que os apoios do Estado «abrangem 2,8 milhões de pessoas».
A repetição dessa mensagem foi publicitada na página do Facebook da ministra, a 17 e a 27 de Março. As mensagens aplaudem o papel da ministra. Parece, pois, dar-se mais importância à publicidade do que ao rigor partilhado das estatísticas.
Os mesmos números que não podem ser confirmados, voltaram a ser usados, aliás, numa entrevista dada pela ministra, a 29 de Março, à Sic Notícias, no programa «Polígrafo». Nessa altura, Marcelo Rebelo de Sousa já promulgara as medidas da oposição e a ministra afirma então – mais comedida, repetindo as declarações do primeiro-ministro – que a mensagem do PR dera que pensar, que tudo estava a ser estudado, mas que – repetiu – não se pode estar a alterar medidas todos os dias.
Esta deriva com a informação estatística não é, porém, de agora.
Quando a pandemia se iniciou, governo e economistas temeram uma maré de desemprego que transformasse uma recessão em depressão. Apelou-se a que os recursos públicos fossem condicionados à não criação de desemprego. E que o Governo disponibilizasse dados estatísticos, para que se pudesse ir estudando os impactos, de forma a ajudar o Estado na resolução dos problemas.
«se a grelha de informação estatística foi sendo divulgada com regularidade e o seu âmbito se foi alargando, o certo é que a informação tinha sérias lacunas. Não aparecia nas estatísticas o número de casos que deixavam de ser apoiados. Havia apenas o número de pedidos deferidos. Ou seja, as estatísticas empolavam os apoios concedidos e não permitiam conhecer quantas pessoas ou empresas estavam mesmo a ser apoiadas»
No início, as estatísticas mostraram números nunca antes vistos, a partir do acesso a dados diários dos diversos pedidos de apoio. Mas desde logo se percebeu o seu fraco alcance. Por exemplo, se havia dados diários sobre o número das empresas que tinham pedido acesso ao LOS, quantos eram os seus trabalhadores e a sua massa salarial; não eram, porém, facultados elementos essenciais, como o número de trabalhadores efectivamente abrangidos pela medida e os seus salários, nem sobre que tipo de empresas beneficiadas (micro, pequena, média ou grande).
Mais tarde, dados oficiais mostraram que tinham sido as grandes empresas – possivelmente que menos necessitavam – a levar cerca de metade dos apoios públicos. Essa lacuna tornava-se mais grave quando o LOS, ao cortar 33% dos salários dos trabalhadores e ao apoiar as empresas com 84% dos custos salariais, representava, na prática, uma transferência indirecta de rendimento dos trabalhadores para as empresas.
Depois, se a grelha de informação estatística foi sendo divulgada com regularidade e o seu âmbito se foi alargando, o certo é que a informação tinha sérias lacunas. Não aparecia nas estatísticas o número de casos que deixavam de ser apoiados. Havia apenas o número de pedidos deferidos. Ou seja, as estatísticas empolavam os apoios concedidos e não permitiam conhecer quantas pessoas ou empresas estavam mesmo a ser apoiadas.
Mais grave: quando os números da pandemia abrandaram, a economia começou a retomar e, naturalmente, o número de pedidos de apoio decresceu, a ministra do Trabalho decidiu suspender a divulgação das estatísticas desde 16 de Outubro de 2020, a pretexto de que estava a ser repensada a sua forma de divulgação. Mas os meses foram passando e nada aparecia. Teria receado fazer fraca figura como promotora de um reduzido apoio social?
Ao fim de quase quatro meses, após o início da segunda vaga e estando sob pressão, a ministra lá fez ressurgir as estatísticas a 12 de Fevereiro de 2021. Mas mais uma vez sem colmatar as lacunas. Privilegiam-se os valores acumulados de número de beneficiários, omitindo-se os apoios que foram «caindo». Ainda hoje não há estatísticas reais sobre o LOS!
Nas estatísticas sobre o LOS e sobre o Apoio à Retoma Progressiva (ARP), o cidadão é alertado: «A informação respeita ao universo de trabalhadores das entidades empresariais que entregaram documento, não necessariamente ao número total de trabalhadores efetivamente em situação de layoff simplificado». Noutra página das estatísticas, com dados evolutivos mas apenas para o período entre 15 de Janeiro a 22 de Fevereiro, já surgem números dos «trabalhadores efectivamente abrangidos pelo apoio» do LOS. E claro, lá surgem também, a negrito, os números acumulados para esse período: 55 119 empresas e 257 056 trabalhadores. Mas – mais uma vez! – desconhece-se o número dos pedidos de apoio que, por qualquer razão, foram anulados. Ou seja, não se sabe muito sobre o alcance efectivo da medida.
E a informação que não está nas estatísticas vai sendo facultada a quem a ministra a quer divulgar – como jornais de referência – ou pela própria ministra, quando lhe dá jeito, mas sempre de forma agregada, muitas vezes juntando números de várias medidas ou de diferentes versões da mesma medida.
Por exemplo, no Parlamento, a ministra disse: «Temos aqui claramente uma grande procura por parte de medidas seja de LOS, seja de Apoio à Retoma Progressiva: 487 mil trabalhadores, nos dois instrumentos nos dois primeiros meses, 80 mil empresas abrangidas, 468 milhões de euros em mecanismos de apoio ao emprego». Caso se deixe passar as referências tidas como positivas a «uma grande procura» de apoios – será que tudo se passou como a ministra diz? Quando se olha para os dados evolutivos do LOS, observa-se que, depois de um máximo de pedido de apoio a 20 de Janeiro, o número tem vindo a reduzir-se, coisa que a ministra dá mostras de não entender a diferença. E as outras medidas? Quais os valores médios que foram pagos? Não se sabe.
Quando solicitada a detalhar informação, tem um discurso redondo de surdos, repete palavras-chavão, parece que não ouve as perguntas, enche o tempo, promete informação que não chega a enviar, embora o Partido Socialista acabe por recebê-las no Parlamento.
«a informação que não está nas estatísticas vai sendo facultada a quem a ministra a quer divulgar – como jornais de referência – ou pela própria ministra, quando lhe dá jeito, mas sempre de forma agregada, muitas vezes juntando números de várias medidas ou de diferentes versões da mesma medida»
Quando questionada sobre o que se pensa fazer, por exemplo, sobre o desfasamento obrigatórios de horários que as empresas se recusam a aplicar; sobre a tentativa das empresas transferirem custos para os trabalhadores em teletrabalho; sobre os atropelos nos despedimentos colectivos (como na Eurest, com mais de 260 trabalhadores, e na PCF de Felgueiras, com mais de 400); sobre a não renovação de vínculos precários; sobre o subsídio de Natal de 2020 ainda por pagar na grande distribuição; sobre os jovens que trabalham 12 a 16 horas por dia com remunerações miseráveis; sobre tudo isto Ana Mendes Godinho sente-se pouco à vontade. Não é essa a sua preocupação. «O que o Governo vai fazer? O Governo já fez», diz a ministra. E lê um artigo de diploma que não se aplica à pergunta. Passa a ler as estatísticas da Autoridade para as Condições de Trabalho, rematando com um ar de quem cumpriu o seu dever.
Em resumo: quando não se quer resolver problemas, as estatísticas tendem a estorvar o trabalho político. Quando se tem medo de se ser posto em causa, a opção é, geralmente, a de matar as estatísticas. Vários governos o fizeram. Mas o mundo das pessoas com dificuldades, que têm de desbravar o emaranhado burocrático das medidas com nomes dourados, não deixa de existir por causa disso. Mesmo que se tente substituí-lo pelo Facebook.
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