|direitos dos trabalhadores

Garantir direitos aos trabalhadores em teletrabalho

O Parlamento debate a regulamentação deste regime. Há questões que dividem os partidos, como a do pagamento de despesas e subsídios. A CGTP-IN já alertou que este regime não pode ser generalizado.

CréditosJanos Kummer / coldathome.today/ EnAct

Há projectos em discussão de PS, PSD, BE, PCP, CDS-PP, PAN, PEV e da deputada não inscrita Cristina Rodrigues, mas nem todos os partidos se posicionam, de forma clara, na defesa de salvaguarda dos direitos dos trabalhadores. É o que resulta de opções diferentes em matérias como a garantia de não discriminação destes trabalhadores, a comparticipação das suas despesas e custo com equipamentos e o direito a subsídios e seguro.

Quanto ao pagamento de um valor fixo pelas despesas apenas PCP, PAN, PEV e a deputada Cristina Rodrigues o definem. Os comunistas, os ecologistas e o PAN sugerem o pagamento de perto de 11 euros por dia e Cristina Rodrigues propõe um valor mensal de pouco mais de 40 euros. Por seu turno, o BE não define valores concretos, mas enumera as despesas que o empregador deve pagar.

|

Teletrabalho e estratégia de embaratecimento dos custos do trabalho

É fundamental desmontar o discurso patronal e governamental em como o grande ganhador do teletrabalho são os próprios trabalhadores.

Créditos / trabalhador.pt

Não é segredo que o teletrabalho constitui uma forma de prestação do trabalho mais onerosa, a diversos níveis, para o trabalhador, comparativamente a muitas outras já com assento na lei e que obrigam ao pagamento de complementos retributivos diversos, mas, ainda assim, quase sempre insuficientes. Não obstante, a resistência no que respeita à compensação do trabalhador pelos custos acrescidos que o teletrabalho representa tem sido ainda mais férrea.

A resistência patronal à assunção das responsabilidades pelo pagamento de certas prestações retributivas do trabalho não é nova. Tal atitude é bem expressa nos bancos de horas, nos regimes de adaptabilidade, entre outros, que visam contornar o pagamento de trabalho suplementar, trabalho suplementar esse inúmeras vezes prestado sem qualquer tipo de retribuição. Inclusive, toda a discussão em torno do direito à desconexão, depois de cumprido o horário de trabalho, enferma de intenções – mesmo que sub-reptícias – semelhantes.

O Projecto-lei recentemente apresentado pelo CDS-PP a propósito é bem disso revelador: o trabalhador em situação de teletrabalho tem direito a desconectar, com excepção das situações em que, por motivos de urgência e força maior, justifiquem o seu contacto pela entidade patronal. É razão para dizer que, como prova a realidade, sempre que o Código do Trabalho deixa esse tipo de critérios na ambiguidade, todas as tarefas se transformam em urgentes e impreteríveis para a sobrevivência da empresa. Como estabelece diversa contratação colectiva, existem regimes de disponibilidade para garantir que o trabalhador está contactável em caso de urgência.

Normalmente, estas ofensivas, aparentemente ingénuas, não assumidas frontalmente e caracterizadas pela ambiguidade, escondem as verdadeiras intenções dos seus autores, intenções que são mais tarde reveladas pela prática concreta, a qual resulta geralmente, em embaratecimento da mão-de-obra e aumento da mais valia extraída a partir do trabalho prestado.

O teletrabalho não é diferente e a prática confirma-o.

A falácia do aumento da produtividade

Nos EUA, por exemplo, está disponível on-line uma calculadora para ajudar os patrões a calcularem as poupanças/ganhos com o teletrabalho, na qual as empresas colocam dados como o número de trabalhadores, tempo de trabalho, salários, rendas, absentismo e subsídios de transporte, e no final obtêm os ganhos económicos que resultam da afectação de um determinado número de trabalhadores ao seu domicílio.

As poupanças/ganhos são classificadas como sendo as seguintes:

- Empresariais: Produtividade (62,1%); Continuidade – ausência de paragens na produção; poupança com custos de manutenção de instalações; Custos imobiliários (17,1%); subsídios de transporte; absentismo (11%);

- Ambientais/comunitárias: poupança de combustíveis; desgaste dos veículos; poupanças com acidentes de viação;

- Pessoais: poupança em tempo de viagem (11,4 dias de trabalho/ano); poupanças com transportes (2 a 4 mil dólares/ano).

A aplicação deixa de fora poupanças patronais importantes como as energéticas, porque, como se percebe, são essas que, quando contempladas, anulariam automaticamente as vantagens que a calculadora identifica para o trabalhador. E o que a calculadora pretende, está bom de ver, é promover o teletrabalho. Por outro lado, a calculadora coloca o absentismo – todo o absentismo – em cima da responsabilidade do trabalhador, mesmo que se tratem de licenças, dispensas ou créditos de horas com protecção legal. O teletrabalho é visto como uma forma de anulação de tudo isso, na medida em que, se trabalhar menos horas num período, compensa mais no outro.

«O teletrabalho representa, sobretudo, o embaratecimento do valor/hora pago ao trabalhador»

Em suma, o teletrabalho é vendido como altamente vantajoso para todos, para o trabalhador, empresas e comunidade.

Contudo, o que sucede é que a poupança/ganho ao nível empresarial é colocada em cima dos trabalhadores, sendo que passa a ser o trabalhador a suportar o desgaste com os equipamentos (inclusive da infra-estrutura); o desgaste na sua habitação; a energia; a água, para além de aspectos como o facto de, em teletrabalho, a tendência ser para se trabalhar mais tempo e com um ritmo superior.

Os ganhos de produtividade, que para os patrões são medidos em unidades produzidas por unidade de custo, mantendo-se o salário e a produção (nem precisa de aumentar) e baixando os custos operacionais, está bom de ver que aumentam: menos investimento gera o mesmo (o maior) resultado. Estes ganhos aumentam para o patrão, não para os trabalhadores. E aumentam na razão directa e proporcional da transferência dos custos para os trabalhadores. Ou seja, o que para o patrão é mais produtividade, para o trabalhador é mais sobrecarga e redução salarial, por via indirecta. Para custos operacionais menores, as empresas passam a obter o mesmo resultado ou, por vezes, até mais. Mesmo que desça um pouco a produção efectiva por parte do trabalhador, os ganhos são suficientes para absorver esse impacto.

«O que aumenta é o lucro, não a produtividade do trabalho. Apenas aumenta a produtividade do capital investido»

Daí que não possamos, efectivamente, falar em aumento da produtividade, mas sim do lucro; o aumento da relação Investimento/produção é conseguido à custa, não de um maior investimento em factores de produção que façam subir exponencialmente a produção por unidade investida, mas, ao contrário, à custa da redução indirecta da remuneração efectiva, líquida, dos trabalhadores, que beneficia os patrões. Estes não poupam, apenas transferem para o trabalhador os custos de produção. Estes custos, nem desaparecem, nem sequer contribuem para um aumento da produção. Apenas são deslocados para o trabalhador, agravando a sua exploração, tornando o seu trabalho mais barato.

Este aproveitamento patronal que constitui, na prática, uma redução do princípio da irredutibilidade de retribuição, bem como uma forma de enriquecimento sem causa, ou ilícito, em que o patrão retira um benefício à custa do trabalhador e não através de uma gestão mais eficiente dos recursos, ao contrário do que já ouvimos dizer, inclusive a membros do elenco governamental, não encontra na lei em vigor uma resposta que permita, por um lado, proteger o trabalhador desse locupletamento a suas expensas1 e, por outro, que compense ou funcione como dissuasor desse enriquecimento oportunista, à custa de maiores despesas efectuadas pelo trabalhador. Apenas se prevê a possibilidade de regulação dessa matéria num acordo individual.

Acresce que, como também já ouvimos a representantes patronais, mesmo assumindo a maior onerosidade que o teletrabalho representa para o trabalhador, a justificação que encontram para não o compensar reside na desculpa de que o trabalhador também poupa com as deslocações. O que não é, de todo, verdade: primeiro porque em muitas empresas os trabalhadores têm direito a subsídios de transporte, logo retirados quando são colocados em regime de teletrabalho; segundo, porque mesmo que não tenham direito a subsídio, qualquer poupança que o trabalhador consiga nas suas despesas pessoais, para com o trabalho (refeições, deslocações…), não constitui algo que seja da conta da entidade patronal. É algo que apenas a ele diz respeito, não podendo ser utilizado pela entidade patronal como justificativo para a subtracção ou negação do pagamento de determinadas prestações retributivas. Ao contrário do que sucede com as poupanças patronais com a retribuição dos trabalhadores, as poupanças que os trabalhadores, por vezes, logram conseguir (por exemplo, passar a utilizar um meio de deslocação mais barato) não se repercutem como encargos adicionais para a entidade patronal. Logo, se a entidade patronal não é afectada pela poupança que o trabalhador logra atingir, por que razão haveria de se intrometer na mesma, ou utilizá-la como justificação para o que quer que fosse? Já o mesmo não sucede com o teletrabalho, cuja poupança patronal é reflectida directamente como um encargo adicional que pesa no rendimento do trabalhador.

«O que justifica a compensação do trabalhador é o facto de a poupança patronal ser directamente relacionada com o crescimento dos seus custos – uma espécie de nexo de imputação que constitui a causa adequada dessa poupança»

Aliás, sendo, o contrato de trabalho um negócio jurídico bilateral sinalagmático, produtor de direitos e obrigações recíprocos, sendo precisamente essa reciprocidade entre obrigações que constitui o nexo a que designamos, juridicamente, de «sinalagma contratual», não lhe é alheia a obrigatoriedade de pagamento de uma compensação, como dever recíproco de retribuição pelo fornecimento, por parte do trabalhador, da sua força de trabalho, a qual, em teletrabalho, deve incluir o dever de retribuição pela colocação à disposição para exploração pela entidade patronal da sua própria habitação. Ao não se estabelecer esta justa conexão, amanhã poder-se-á abrir a porta a uma outra pretensão que é a de o trabalhador, por não ter em casa condições, ter de recorrer a espaços de coworking, sendo ele a pagar, ainda por cima, a renda. E nesse dia estará cumprida a transferência definitiva do dever de fornecer as instalações de trabalho, do empregador, para o trabalhador. Nesse dia, do trabalhador para o «colaborador» será apenas um pequeno passo.

«Na qualidade de responsável e por conta de quem o trabalhador presta a actividade, é o empregador que tem o dever de fornecer as necessárias condições materiais»

Uma forma de organização mais onerosa para o trabalhador

Não resultam duvidas de que o teletrabalho é uma forma de organização flexível que é mais onerosa para o trabalhador. Esta maior onerosidade não se deve apenas à transferência de custos energéticos, com instalações, consumíveis, abastecimentos, manutenção de instalações, comunicações ou estruturas e equipamentos de apoio ao trabalhador.

Se, em função da transferência, para o trabalhador, de um conjunto de custos operacionais com determinados factores de produção, já se verifica uma situação de enriquecimento sem causa por parte da entidade patronal, a maior onerosidade do teletrabalho não se limita à verificação deste dano ou aproveitamento económico.

«Os custos do teletrabalho não são apenas pecuniários, são também económicos, físicos, sociais, mentais, etc.»

O teletrabalho é mais oneroso porque implica o condicionamento e sobrecarga de variadas dimensões físicas, mentais e sociais do trabalhador, à imagem do que sucede com o trabalho suplementar, o trabalho nocturno, a isenção de horário, a disponibilidade permanente, a deslocação geográfica ou o trabalho por turnos.

Se, por exemplo, no trabalho por turnos, a maior onerosidade é apreciada em função da maior sobrecarga psíquica, das maiores dificuldades de inserção na vida social, na maior exigência física ou nas dificuldades acrescidas de conciliação entre o trabalho e a vida pessoal, e que justificam o subsídio de turno, no caso do teletrabalho, o trabalhador é sujeito a uma sobrecarga nas seguintes dimensões:

Sobrecarga do seu direito à reserva de intimidade da vida privada, uma vez que o espaço de trabalho é invadido pelo trabalho, por tarefas e por equipamentos que vão intrometer-se na intimidade, não apenas do próprio trabalhador, mas de todos os membros do seu agregado;

Perturbação do direito à tranquilidade e inviolabilidade do seu espaço doméstico, uma vez que a actividade laboral passa a conviver com a actividade doméstica, condicionando-a, limitando-a e perturbando as rotinas íntimas de todos os que vivem nesse lar;

Sujeição do agregado familiar à vigilância, acompanhamento e monitorização do trabalho pela entidade patronal;

Isolamento, afastamento e desconexão do trabalhador em relação às dinâmicas sociais e pessoais ligadas ao espaço físico de trabalho, dificultando o acesso à informação, ao escrutínio e comparação das condições de trabalho, ao reconhecimento e à socialização com outros trabalhadores, organizações representativas e quadros sindicais.

«Os custos do teletrabalho não incidem apenas sobre o trabalhador, mas sobre todo os que com ele vivem»

Esta maior sobrecarga, económica, pecuniária, social, pessoal e familiar, que não incide apenas sobre o próprio, mas sobre todos os outros que com ele convivem, não se conhecendo ainda a verdadeira influência – antevendo-se muito negativa – da invasão e intromissão do trabalho no relacionamento familiar e no desenvolvimento mental e social, de todos e cada um, dos membros da família, deve ser objecto de aprofundada reflexão e estudo, nas dimensões que estão para além do trabalho e deve, no mínimo, conferir o direito a uma prestação compensatória que opere um ressarcimento do trabalhador e que equilibre a maior onerosidade que o teletrabalho representa com a poupança que tal representa para o lado das empresas.

Só operando esta compensação se evitará uma situação de «enriquecimento sem causa», uma vez que a lei obriga, nesses casos, aquele que enriqueceu a restituir o fruto desse enriquecimento. Adicionalmente, esta característica do teletrabalho constitui também um factor de tratamento desigual entre trabalhadores presenciais e trabalhadores a distância a partir do seu domicílio.

Mas podemos ir mais longe, a prestação compensatória não pode cingir-se ao objecto do enriquecimento patronal, pois tal obrigaria a entrar numa duvidosa contabilidade de despesas versus poupanças. A prestação compensatória deve ressarcir o trabalhador pela maior onerosidade social e pessoal que o teletrabalho representa. Ou seja, a entidade que explora o teletrabalho, tem de pagar por ele, numa lógica de compensação de toda essa carga que o teletrabalho representa para o trabalhador. A sua retribuição tem de aumentar efectivamente e não apenas operar-se uma reposição de custos meramente pecuniários efectuados. Caso contrário, o trabalhador continuaria a perder nessa equação.

É fundamental desmontar o discurso patronal e governamental em como o grande ganhador do teletrabalho são os próprios trabalhadores.

Sejamos realistas e sérios: se os trabalhadores fossem os grandes ganhadores, não existiria o teletrabalho!

Tipo de Artigo: 
Opinião
Imagem Principal: 
Mostrar / Esconder Lead: 
Mostrar
Mostrar / Esconder Imagem: 
Mostrar
Mostrar / Esconder Vídeo: 
Esconder
Mostrar / Esconder Estado do Artigo: 
Mostrar
Mostrar/ Esconder Autor: 
Esconder
Mostrar / Esconder Data de Publicação: 
Esconder
Mostrar / Esconder Data de Actualização: 
Esconder
Estilo de Artigo: 
Normal

Tópico

Contribui para uma boa ideia

Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.

O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.

Contribui aqui

PS e PSD não definem valor fixo relativo ao pagamento de despesas, e pretendem que estes valores sejam fixados por acordo entre as partes, o que significa deixar os trabalhadores à mercê das imposições patronais.

Entre as questões onde há maior consenso é no facto de se tornar este regime de trabalho como voluntário, devendo sempre ser objecto de acordo escrito entre as partes. Assim como a regulamentação de matérias como a defesa da privacidade dos trabalhadores e o direito a desligar.

No que toca a questões como subsídio de refeição e seguro, os partidos à esquerda, o PAN e Cristina Rodrigues propõem que o trabalhador em teletrabalho tenha acesso «em moldes idênticos aos dos trabalhadores presenciais», assim como aos restantes complementos remuneratórios. Já o PS e o PSD deixam a questão em aberto para que possa ser discutida entre as partes, deixando também aqui margem aos patrões para fazer valer o seu peso negocial.

Noutra dimensão, o PAN vai mais longe e propõe «uma nova modalidade de trabalho à distância, designada como regime de trabalho flexível», que se concretiza «mediante um simples acordo das partes (sem os formalismos contratuais da modalidade de teletrabalho)», deixando a porta aberta a abusos pelas entidades patronais, porque fica fora do chapéu da regulamentação do teletrabalho.

|

O teletrabalho e os riscos psicossociais

A partir do momento da prestação da actividade em regime de teletrabalho, a actividade laboral, acompanhada do poder de direcção da entidade patronal, passa a fazer parte do ambiente familiar.

CréditosPxhere / CC0 1.0

Um pouco por todo o lado e em resultado da necessidade de confinamento da nossa actividade pessoal ao espaço habitacional, o teletrabalho tem ressurgido como uma panaceia para diversos males, entre eles, o da dificuldade de conciliação entre a vida profissional e o trabalho.

Todos pudemos constatar, ao longo dos anos, que o teletrabalho era apresentado como a solução para quem, por exemplo, em virtude de ter de tomar conta de filhos, via diminuída a sua capacidade de integração dos afazeres profissionais no quadro das suas responsabilidades parentais.

Bem verdade é que, para quem vive a distância considerável do local de trabalho, poder trabalhar a partir de casa lhe faz ganhar um tempo precioso perdido em transportes e seria irrealista pensar que tal ganho não é susceptível de se reflectir na capacidade de conciliação entre a vida pessoal e o trabalho de cada um.

Mas, será que quem vê o teletrabalho apenas por este prisma, já reflectiu na invasão que este modo de organização laboral pode significar na esfera privada individual, familiar e social de quem trabalha?

Confinar o trabalho a um espaço físico pode ser positivo

A verdade é que, o trabalho, quando prestado num espaço físico determinado, propriedade da entidade patronal, ajuda o trabalhador a confinar a actividade laboral a um espaço físico concreto, o que, por si só, pode constituir um factor positivo para a conciliação entre a vida privada e trabalho.

O facto de o trabalhador poder localizar, mental e fisicamente, o trabalho, a um espaço determinado, pode ajudá-lo a compartimentar a sua vida profissional, na sua vida pessoal, social e familiar. Na medida em que seja capaz de fazer essa desconexão mental, para o trabalhador, torna-se mais fácil de fazer a separação.

«O afastamento do trabalhador para a sua casa, por motivo de teletrabalho […] não liberta o trabalhador dos factores de risco como a discriminação entre trabalhadores, a injustiça no tratamento de situações similares, a subvalorização do desempenho individual, a prepotência com que é exercido o poder de direcção»

Essa separação, a fazer-se, não apenas pode reflectir-se positivamente na forma como o trabalhador gere os riscos psicossociais a que está sujeito, durante o tempo de trabalho, como também se reflectirá positivamente na não sujeição dos que com ele vivem, às consequências que tais riscos têm para o próprio trabalhador.

Também devemos ter em conta que, se o trabalhador se afastar do seu espaço físico de trabalho, sob controlo da entidade patronal, também se pode estar a libertar de alguns dos riscos psicossociais que lhe estão associados. Mas, e quanto aos riscos que permanecem e que, ao contrário, são transportados para o seu lar?

Transportar o trabalho para o espaço doméstico, pode agravar a exposição aos riscos psicossociais

O afastamento do trabalhador para a sua casa, por motivo de teletrabalho, pode libertá-lo ou diminuir a sua exposição aos riscos psicossociais inerentes ás relações no local de trabalho. Contudo, não liberta o trabalhador dos factores de risco como a discriminação entre trabalhadores, a injustiça no tratamento de situações similares, a subvalorização do desempenho individual, a prepotência com que é exercido o poder de direcção…

«é possível a uma entidade patronal sujeitar um trabalhador isolado a uma carga cada vez maior de trabalho, associada a uma retribuição cada vez menor e dissociada do esforço suplementar, sem que ele perceba, sem que ele tenha os mesmos parâmetros de comparação que antes utilizava e que lhe permitiam saber se estava a ser discriminado ou não»

A estes factores tradicionais, podemos ainda adicionar o isolamento, a solidão, a escassez de contacto humano para discussão, a menor suscetibilidade na troca de experiências, a perda de poder reivindicativo e, em função desse desligamento, a sujeição a condições de trabalho que ele não pode comparar e controlar. Em ultima análise, é possível a uma entidade patronal sujeitar um trabalhador isolado a uma carga cada vez maior de trabalho, associada a uma retribuição cada vez menor e dissociada do esforço suplementar, sem que ele perceba, sem que ele tenha os mesmos parâmetros de comparação que antes utilizava e que lhe permitiam saber se estava a ser discriminado ou não. Em situação de teletrabalho, é bem possível que todo esse encadeamento de experiências, que ajudam o trabalhador a moldar a sua relação com o trabalho e com a entidade patronal, sejam profundamente afectados em seu desfavor. Todos sabemos que um trabalhador isolado é um trabalhador mais vulnerável à sobre-exploração.

Mas, se o que referimos anteriormente apenas se reflecte, numa primeira fase, no próprio trabalhador e na sua esfera individual, também é um facto, muito pouco reflectido e estudado, por sinal, que passar a prestar a actividade em regime de teletrabalho significa, antes de tudo, levar o trabalho fisicamente para dentro de casa.

O teletrabalho como invasor do espaço doméstico

Assim, um aspecto muito importante a considerar consiste na intrusão e invasão do trabalho – e de tudo o que ele comporta – no ambiente familiar e pessoal do trabalhador. Ao levar o trabalho para casa, este deixa de estar confinado a um espaço físico concreto, apenas indirecta e mentalmente presente na vida caseira do trabalhador.

A partir do momento da prestação da actividade em regime de teletrabalho, a actividade laboral, acompanhada do poder de direcção da entidade patronal, passa a fazer parte do ambiente familiar, aumentando consideravelmente o nível de intromissão e perturbação que o trabalho pode representar na vida de um determinado agregado familiar. Já não é só o trabalhador que é sujeito diretamente aos riscos psicossociais presentes na relação de trabalho, pode ser toda a família.

«Quanto vale esta intromissão e violação da nossa privacidade, intimidade e liberdade? Será que a troca entre «mais tempo ganho pela não deslocação» e o «trazer a relação e trabalho para dentro de casa» é efectivamente benéfica para o equilíbrio entre vida familiar, pessoal e o trabalho?»

Associados a todos os factores de risco psicossocial, normalmente presentes nas relações de trabalho, devemos adicionar outros como a pressão para o cumprimento das tarefas, a pressão decorrente da necessidade de criação e delimitação de um espaço físico apto para o trabalho, a imposição, em casa, de condições de trabalho, etc. São estes e outros condicionalismos que são introduzidos num espaço que deveria ser só do trabalhador e dos seus.

Tudo estaria melhor se coubesse ao trabalhador a liberdade da decisão. Mas não, a tendência observada e bem presente na actual situação de calamidade – e já antes no estado de emergência – é que esse poder é dado à entidade patronal, na medida em que, ao torná-lo obrigatório para o trabalhador, quando as tarefas o comportem, é aquela que se dá o poder de decisão de invadir, ou não, através do trabalho, o lar de um trabalhador. Aliás, mesmo numa situação normal, em que a decisão é lavrada «por acordo», devemos questionar em que medida um trabalhador é livre para, efectivamente, não aceitar esse «acordo».

Até agora o recurso às tecnologias tem sido utilizado para aumentar a exploração

Era importante que, antes de se abraçarem estas tendências, aparentemente modernas e sofisticadas, como tantas outras que mais não têm servido do que para aumentar os níveis de exploração, transportando para o trabalhador custos de produção que antes estavam a cargo das empresas, se procedesse ao estudo do processo disruptivo, a nível individual, familiar e social, que o teletrabalho pode implicar numa determinada família, com especial incidência nos casos em que os trabalhadores têm isenção de horário de trabalho ou um qualquer regime de disponibilidade.

Mas há um exemplo que já podemos antecipar, o facto de, por causa do teletrabalho, o trabalhador poder passar a ter de suportar maiores consumos de electricidade, água, internet, consumíveis, entre outros. A assunção – permitida na lei –, por parte do trabalhador, destes custos de produção, não apenas lhe baixa, objectivamente, a remuneração, como reduz o orçamento familiar.

Este é apenas um reflexo direto, contudo, podemos ir muito além. Por exemplo, ao introduzir o trabalho em casa, todo um conjunto de regras de funcionamento são introduzidas nessa residência, afectando a forma como as crianças ou quem com ele vive e coabita, partilham o mesmo espaço. O poder de direcção da entidade patronal deixa de se confinar às instalações da empresa e ao sujeito da relação de trabalho, para se impor a todos os que o rodeiam, no seio familiar.

A empresa passa a estar presente na vida de todos com muito mais ênfase. Quanto vale esta intromissão e violação da nossa privacidade, intimidade e liberdade? Será que a troca entre «mais tempo ganho pela não deslocação» e o «trazer a relação e trabalho para dentro de casa» é efectivamente benéfica para o equilíbrio entre vida familiar, pessoal e o trabalho? Temos muitas dúvidas. E para o equilíbrio psicossocial do trabalhador?

O teletrabalho transporta o poder patronal para a casa do trabalhador

Há um factor que não é despiciendo e não pode ser deixado ao acaso: o poder patronal, quando exercido no contexto do trabalho a partir da residência, significa poder patronal em casa do trabalhador, na sua intimidade. Quanto maior esse poder, na conformação da relação de trabalho às necessidades da empresa, maior a invasão dessa autoridade na vida do trabalhador e daqueles que com ele convivem.

Para além disso, os conflitos, as pressões, as contradições que o trabalhador antes vivia em espaço laboral determinado, passa agora a vivê-las em casa, à vista de todos e, como seres sociais que somos, pensar que esses factores psicossociais não intervêm na construção das personalidades dos que vivem com o trabalhador é algo de muito pouco realista.

Será que o teletrabalho contribui de facto para uma maior libertação do trabalho? Não, se as leis laborais continuarem a ser o que são, se os sindicatos continuarem a ficar à porta das empresas, se os trabalhadores continuarem a ser perseguidos por pensarem e forma diferente, se o período normal de trabalho não for reduzido, etc. Neste quadro, o teletrabalho, prestado a partir de casa, só pode significar mais exploração e maior sujeição do trabalhador – e da sua família – ao trabalho.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)

Tipo de Artigo: 
Opinião
Imagem Principal: 
Mostrar / Esconder Lead: 
Mostrar
Mostrar / Esconder Imagem: 
Mostrar
Mostrar / Esconder Vídeo: 
Esconder
Mostrar / Esconder Estado do Artigo: 
Mostrar
Mostrar/ Esconder Autor: 
Esconder
Mostrar / Esconder Data de Publicação: 
Esconder
Mostrar / Esconder Data de Actualização: 
Esconder
Estilo de Artigo: 
Normal

Tópico

Contribui para uma boa ideia

Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.

O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.

Contribui aqui

Recorde-se que a CGTP-IN já se posicionou em diversas ocasiões sobre esta matéria e, recentemente, a sua dirigente Ana Pires referiu que a lei deve clarificar que «os trabalhadores em teletrabalho não podem ser prejudicados nos seus direitos, nem ficar com custos acrescidos». O princípio, para a central sindical, é o de que o teletrabalho não deve ser generalizado e deve ser sempre regulado através de acordo escrito, tendo como base o princípio da reversibilidade.

A sindicalista aponta como desvantagens para estes trabalhadores questões como o isolamento e a individualização das suas relações laborais e refere que a central está preocupada com a garantia do exercício dos direitos sindicais, pois deve ficar consagrado o direito a deslocação do trabalhador a reuniões sindicais.

Outra matéria sensível é a da defesa da intimidade da vida privada do trabalhador pois, segundo a CGTP-IN, nem a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) nem outras instituições podem entrar na casa do trabalhador sem a sua autorização.

Em sentido contrário, do lado dos patrões, o presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), João Vieira Lopes, defende que os trabalhadores em teletrabalho não podem ser «equiparados» àqueles que estão em regime presencial, assim como pensa que «não se justifica» que continuem exigíveis, durante o teletrabalho, «subsídios como os de refeição, deslocação ou penosidade».

É esperado que os projectos baixem, sem votação, à comissão, prosseguindo o trabalho legislativo na fase da especialidade.

Tópico

Contribui para uma boa ideia

Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.

O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.

Contribui aqui