«Se queres ser cego, sê-lo-ás»
José Saramago
Apresentada como «ponto alto» da presidência portuguesa da União Europeia (UE), reúne hoje e amanhã, no Porto, a chamada cimeira social. Diz a organização que o evento vai procurar obter consenso entre governos, parceiros sociais e sociedade civil (?) sobre a agenda social europeia para a década, com «metas ambiciosas» a atingir em 2030.
Poder-se-ia encarar tal declaração de intenções com alguma benevolência, não se desse o caso de a realidade não só desmentir qualquer possibilidade de concretizar as metas anunciadas como, ao invés, se desenhar um ainda maior aproveitamento dos novos saltos da revolução científica e técnica para o capital económico e financeiro aumentar a exploração do trabalho e a maximização do lucro. Falamos da realidade passada e da presente, em Portugal e na UE, e os factos são irrefutáveis.
«Quem não se lembra das cimeiras anteriores a apregoarem o pleno emprego, a erradicação da pobreza e a formação profissional contínua para todos os trabalhadores, entre outras promessas de um idílico modelo social?»
Nas últimas décadas multiplicaram-se os ataques à soberania dos Estados, transferindo as competências que cabem a cada um dos países para a esfera supranacional. Foram vários os Tratados aprovados com via aberta para aprofundar o federalismo, assim como foram impostos diversos mecanismos atentatórios da soberania dos países, como o Tratados Orçamental, os Pactos de Estabilidade e Crescimento e outros Programas, ditos de resgate financeiro que, no caso de Portugal, assumiram ainda não há muito tempo um verdadeiro pacto de agressão por parte da troika estrangeira contra os trabalhadores, o povo e o país.
Diziam ser objectivos destes mecanismos apoiar o crescimento e a competitividade, reduzir a dívida pública e garantir a estabilidade do sector financeiro, criar empregos, acabar com a pobreza e a exclusão social. Mas tudo se passou ao contrário.
No âmbito da presidência portuguesa da UE, o Governo defende mais integração de sectores como o da Saúde, ou aplicação da directiva sobre salário mínimo, mas não explica as limitações e contrapartidas. Na voz de Augusto Santos Silva ficou hoje expressa, na Conferência dos Presidentes da COSAC (Conferência dos Órgãos Especializados em Assuntos da União dos Parlamentos da União Europeia), que decorre na Assembleia da República, a intenção de «pôr em prática» a integração de diversas matérias. O ministro dos Negócios Estrangeiros defendeu, entre várias questões, uma «verdadeira UE para a Saúde», assim como a necessidade de levar por diante questões como a directiva do salário mínimo ou a coordenação dos sistemas de segurança social. Ora, a recente experiência portuguesa no âmbito do combate à pandemia tem revelado que tem sido o Serviço Nacional de Saúde o elemento central na defesa da saúde dos portugueses. Aliás, o actual contexto revelou que as insuficiências constatadas decorrem de décadas de desinvestimento no sector, impondo-se o reforço financeiros e de meios humanos, técnicos e logísticos. As pretensões anunciadas pelo representante do Executivo em matéria social colidem com a capacidade soberana dos Estados-membros para a definição de instrumentos de resposta às desigualdades económicas e sociais, à pobreza e à exclusão. Por um lado, as orientações que partem de um centro de decisão em Bruxelas não têm em conta necessárias políticas complementares, como sejam medidas de inclusão ou de criação de emprego tendo em conta as necessidades produtivas do País. Por outro, omite-se que foram as políticas desenhadas pela UE, trazidas ao País pela mão da troika, que geraram mais exploração, precariedade, desemprego e pobreza. Também no plano do salário mínimo nacional, a intenção colide com a Constituição, que determina que as políticas salariais são da competência da Assembleia da República. O salário mínimo nacional é um factor de valorização do trabalho consagrado no seguimento da Revolução de Abril, como ferramenta para a elevação geral dos salários e do nível de vida. No entanto, a directiva da UE sobre salário mínimo impõe critérios (como sejam o poder de compra existente, o nível geral de salários brutos ou a evolução da produtividade no trabalho), que pervertem uma política de elevação salariais. Em Portugal é cada vez maior o número de trabalhadores que auferem o salário mínimo, ao mesmo tempo que o salário médio está muito próximo do mínimo. Ora, perante esta realidade, a aplicação de critérios que fazem depender o aumento dos salários da evolução e da distribuição dos mesmos, conduziria numa manutenção geral salários baixos e não à sua elevação. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Nacional|
A ilusão de mais União Europeia para mais direitos
Contribui para uma boa ideia
Em 35 anos de integração europeia, Portugal viu reduzido para cerca de metade o peso dos sectores produtivos na economia, levando milhares de empresas à falência. Com o dinheiro dos contribuintes foram financiados programas de privatizações, entregando ao desbarato sectores estratégicos (banca, transportes, energia, comunicações), mas foram também drenados recursos públicos para os grupos económicos e financeiros, a par do desinvestimento nos serviços públicos e nas funções sociais dos Estados. O sector financeiro canalizou milhões de recursos públicos para actividades especulativas, contrárias ao interesse colectivo, e encontra-se ainda hoje altamente vulnerável. A dívida pública já ultrapassa 137% do PIB (somada ao endividamento das famílias e empresas, tinha disparado no final do ano para 268,8%).
De um lado, mais acumulação e concentração de riqueza. Do outro, mais exploração, desespero e pobreza
Neste quadro, de cada vez maior concentração e centralização do capital e da riqueza produzida, são brutais as consequências que no plano social foram impostas aos trabalhadores: aumento do desemprego e da precariedade, agravamento da pobreza e das desigualdades, baixos salários e uma mais desigual repartição do rendimento.
Na UE, 92 milhões de pessoas estão em situação de pobreza e de exclusão social (21%), das quais 18 milhões são crianças e adolescentes até aos 17 anos e 4 milhões são pessoas sem-abrigo. No desemprego estão 16 milhões de trabalhadores.
«Na UE, 92 milhões de pessoas estão em situação de pobreza e de exclusão social (21%), das quais 18 milhões são crianças e adolescentes até aos 17 anos e 4 milhões são pessoas sem-abrigo. No desemprego estão 16 milhões de trabalhadores»
Quanto a Portugal, a pobreza também tem natureza estrutural, com um quinto da população nessa situação. O número de desempregados ultrapassa os 340 mil, mas somados aos trabalhadores inactivos disponíveis para trabalhar e em situação de subemprego, mais que duplicou, atingindo os 700 mil. Cerca de 50% dos desempregados são pobres, mesmo após as transferências sociais, o que revela a insuficiência da protecção social no desemprego. Na população empregada, a pobreza já atinge 11%, a confirmar que os baixíssimos salários são uma das principais causas da pobreza laboral.
Os jovens trabalhadores são as maiores vítimas do desemprego, da precariedade, dos baixos salários, da negação da contratação colectiva e dos direitos laborais e sociais: 7 em cada 10 não têm um vínculo efectivo e 55% dos postos de trabalho criados são ocupados por trabalhadores com contratos não permanentes. Além de estar generalizado o pagamento do salário mínimo aos trabalhadores jovens, são cada vez mais os casos em que, por serem forçados a trabalhar a tempo parcial, levam para casa um salário abaixo do limiar de pobreza.
Uma «cimeira» que aponta para novas formas de desregulamentar, precarizar e embaratecer o trabalho
Como se vê, a história das cimeiras sociais da UE, é a história de sucessivos embustes, em que o produto vem acompanhado de luzidios adereços, seja o chamado modelo social europeu, seja a Carta dos direitos fundamentais, para melhor vender a ideia e depois cobrar sem contemplações.
«a pandemia da Covid-19 também está a servir de argumento para o capital reforçar as ameaças de cortes nos salários e nas reformas, de redução de direitos laborais e sociais, de menos Estado na saúde e na protecção social. A Covid-19 não é causa dos problemas que afligem a humanidade, mas os seus tremendos impactos tornaram ainda evidente as profundas e insanáveis contradições do capitalismo e da crise estrutural com que este se debate»
Quem não se lembra das cimeiras anteriores a apregoarem o pleno emprego, a erradicação da pobreza e a formação profissional contínua para todos os trabalhadores, entre outras promessas de um idílico modelo social? Sabendo que é contraproducente insistir em objectivos nos quais já ninguém acredita, a comissão europeia, aponta agora três metas principais, a atingir em 2030 (!!!), consubstanciadas numa taxa de emprego de 78% na União Europeia, na participação anual em formação para 60% dos adultos e redução do número de pessoas em risco de exclusão social ou de pobreza em 15 milhões de pessoas, entre as quais 5 milhões de crianças.
Um quinto da população portuguesa é pobre e a maior parte das pessoas em situação de pobreza trabalha, segundo o estudo «Pobreza em Portugal – Trajectos e Quotidianos». O estudo promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e coordenado por Fernando Diogo, professor de Sociologia na Universidade dos Açores, resulta da observação dos últimos dados disponíveis do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR), relativos a 2018, aliada à realização de uma análise qualitativa baseada em «91 entrevistas aprofundadas por todo o País». Segundo o coordenador da equipa de 11 pessoas, essa metodologia inédita permitiu representar a «diversidade da pobreza em Portugal», para perceber «como é que a pobreza se organiza» e porque «as pessoas em situação de pobreza não são todas iguais». A denúncia, feita pela CGTP-IN, tem por base dados do INE relativos ao Inquérito às Condições de Vida e de Rendimento. A esta situação «preocupante» não são alheios os baixos salários e a precariedade. «O aumento do número de trabalhadores em situação de pobreza laboral, aos quais se junta o aumento percentual deste flagelo entre os desempregados, remete para a urgência da alteração das normas gravosas da legislação laboral, o aumento geral dos salários e das pensões e o alargamento da protecção social no desemprego», sublinha a CGTP-IN numa nota de imprensa emitida esta sexta-feira. Os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre o Inquérito às Condições de Vida e de Rendimento, «com base no qual é calculada a taxa de pobreza, reflectem desde logo que cerca de 500 mil trabalhadores empobrecem a trabalhar», afirma-se no documento. Apesar de se ter verificado uma descida percentual, a pobreza laboral atinge mais de 497 mil trabalhadores, tendo aumentado o número daqueles que empobrecem a trabalhar «face ao ano anterior» e «sendo que o aumento em relação a 2013 é superior a 23 mil». A central sindical sublinha que esta situação, «que se reflecte tanto nos homens como nas mulheres, não pode ser dissociada de condições de trabalho em que impera a precariedade dos vínculos e os baixos salários». Quanto ao rendimento médio disponível das famílias, «avaliado a preços de 2016», foi ainda inferior ao que se registou em 2004, o que – afirma a Inter – «mostra o impacto das medidas de empobrecimento da população e exploração dos trabalhadores, situação agravada com a política de direita, a circulação do euro e o memorando da troika». Ainda assim, verificou-se uma «redução do número de pobres no nosso país», um dado que a CCTP-IN valoriza como positivo, mas encarando com particular preocupação «a situação dos que dependem da venda da sua força de trabalho para sobreviver». Nesse contexto, a central sindical considera fundamental «romper com a política de direita» que fez recuar o País, bem como apostar na valorização do trabalho e dos trabalhadores. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. Esta situação não pode, porém, ser dissociada de condições de trabalho em que impera a precariedade dos vínculos e os baixos salários. Em declarações à Lusa, Fernando Diogo salientou que o estudo identificou «quatro perfis de pobreza em Portugal, que são uma novidade: os reformados (27,5%), os precários (26,6%), os desempregados (13%) e os trabalhadores (32,9%)». A análise conclui, assim, que um terço dos pobres são trabalhadores. Juntando-lhes os trabalhadores com vínculos precários, percebe-se que mais de metade das pessoas em situação de pobreza trabalha, o que significa que ter um emprego não é suficiente para sair de uma situação de pobreza. Para Fernando Diogo, «foi uma surpresa» constatar que muitas das pessoas estavam efectivas nas empresas há vários anos. «Há uma parte dos pobres que são efectivos nos seus postos de trabalho, muitos há mais de dez e alguns há mais de 20 anos. Claro que com ordenados baixos, que têm de dividir o seu ordenado com a família, com uma família numerosa», enfatizou. Em dois terços dos países para os quais existem dados oficiais, os salários baixaram ou, pelo menos, aumentaram mais lentamente nos primeiros seis meses do ano devido à gestão da epidemia, conclui a OIT. O relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), hoje divugado, refere também que, num futuro próximo, a crise poderá exercer uma forte pressão no sentido da baixa dos salários, e adianta que os salários das mulheres e dos trabalhadores com baixas remunerações foram desproporcionadamente afectados pela crise. A OIT sublinha que, embora os salários médios num terço dos países que forneceram dados parecessem aumentar, tal resultava em grande parte do facto de um número substancial de trabalhadores com salários mais baixos terem perdido os empregos e, por conseguinte, enviesarem a média, uma vez que já não estavam incluídos nos dados estatísticos relativos às remunerações das pessoas empregadas. Nos países onde foram tomadas fortes medidas para preservar o emprego, os efeitos da crise foram sentidos principalmente ao nível da baixa dos salários e menos nas perdas massivas de emprego, indica a OIT. O Relatório Global sobre os salários 2020/21 revela que nem todos os trabalhadores foram afectados do mesmo modo pela crise, indicando que o impacto sobre as mulheres tem sido mais grave do que nos homens. Estimativas baseadas numa amostra de 28 países europeus permitem concluir que, sem as subvenções aos salários, as mulheres teriam perdido 8,1% dos salários no segundo trimestre de 2020, em comparação com 5,4% para os homens. A crise também afectou severamente os trabalhadores com salários mais baixos, adianta o relatório, sublinhando que os que exercem profissões menos qualificadas perderam mais horas de trabalho do que os que exercem funções de gestão e os profissionais com empregos qualificados mais bem remunerados. Sem as subvenções temporárias, metade dos trabalhadores com remunerações mais baixas teriam perdido cerca de 17,3% dos salários. Sem as subvenções, a redução do montante médio dos salários perdidos em todos os grupos teria sido de 6,5%, já que as subvenções aos salários permitiram compensar 40% deste montante. «O crescimento da desigualdade criada pela crise da Covid-19 ameaça deixar para trás de si um legado de pobreza e instabilidade social e económica que seria devastador», afirmou o director-geral da OIT, Guy Ryder. «Se vamos construir um futuro melhor, temos também de lidar com algumas questões incómodas sobre a razão pela qual os empregos com elevado valor social, como os da prestação de cuidados e do ensino, estão muitas vezes ligados a baixos salários», afirmou Ryder. Com agência Lusa Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. Os resultados apresentados mostram também que em 2018 quase metade dos desempregados em Portugal estava em situação de pobreza, o que significa que são o grupo onde a taxa é mais elevada e tem vindo a aumentar. Apesar das oscilações na variação da taxa de pobreza ao longo do período observado, entre 2003 e 2019, «o valor está sempre próximo de um quinto do total da população» e os últimos indicadores, de 2018, são de 17,2%, o equivalente a 1,7 milhões de pessoas. A taxa de pobreza infantil «é persistentemente mais elevada do que a taxa global», frisou o coordenador do estudo, que alerta para duas tipologias de famílias com taxas de pobreza acima da média global: famílias monoparentais ou onde existem dois adultos com três ou mais crianças. Saiu recentemente o estudo da Nova SBE, «Portugal, Balanço Social 2020», sobre os efeitos da pandemia. Falamos com economistas, sindicalistas e políticos sobre as formas de combater a crise. Cheila tem 33 anos, trabalhou como bartender em vários bares. Desde o fim do Verão passado que está em casa. «A pandemia obrigou a fechar tudo. O abre não abre, as restrições de funcionamento por motivos de saúde levaram quase todo o sector às cordas. Muitos provavelmente não vão conseguir abrir depois deste segundo confinamento». Os apoios do Estado incidiram sobretudo no lay-off e os outros são muito limitados. Paulo é proprietário de um bar em Lisboa que explora com o seu filho e encontra-se na mesma situação, «por todo e por junto os apoios que me deram, quase num ano, não ultrapassaram os 200 euros.» Em casa, Cheila vai esperando que a pandemia passe para voltar a trabalhar. «Não desisti de ter um espaço meu e de trabalhar, mas para já estou a gastar as economias que amealhei para sobreviver», diz. Stefan é instrutor de artes marciais na Pontinha. O confinamento obrigou-o repetidamente a encerrar provisoriamente o ginásio em que dá treinos e teve o efeito de um tsunami na sua vida. «Este abre e fecha ao longo do ano e os receios de contágio levaram as pessoas a desistir de treinar e a descontinuar os pagamentos. Não há apoios para nós que continuamos a ter que sustentar a família e pagar as rendas. E este é um tipo de actividade que, por muitas aulas zoom que possamos fazer, não nos permite funcionar e ganhar devidamente». Cheila, Paulo e Stefan são três exemplos das muitas pessoas que perderam rendimentos no ano de 2020. Os economistas e cientistas sociais têm a nítida percepção que a crise parou muita gente e que há um crescimento significativo das desigualdades, mas ainda não há dados fidedignos que façam o retrato desta tempestade. Na semana passada, a Universidade Nova lançou o estudo «Portugal, Balanço Social 2020» em que se trabalham e analisam muitos dos dados e estudos parcelares que saíram sobre o crescimento da pobreza e das desigualdades no nosso País, com o intuito de «traçar um retrato socioeconómico das famílias portuguesas, com ênfase nas situações de privação e, quando possível, no acesso às respostas sociais existentes em Portugal». A professora da Nova SBE Susana Peralta é uma das coordenadoras do estudo. «O relatório, que se chama “Portugal, Balanço Social 2020”, tem uma caracterização bastante cuidada da situação em Portugal. Fizemos esse trabalho com as limitações existentes, porque só é possível fazer uma caracterização dessas passado um ou dois anos, que é quando aparecem os dados representativos daquele período. Nós analisamos os dados do INE que nos permitem fazer uma caracterização representativa e cuidada daquilo que é a situação das famílias em 2019. Mas depois fomos à procura de todas as fontes de informação possíveis, com que tentámos fazer um possível retrato de 2020», assinala Susana Peralta ao AbrilAbril. O estudo demonstra os impactos da pandemia a vários níveis. O efeito que teve a nível da saúde, «em Abril de 2020 foram apenas realizadas 182 cirurgias, face a 13 000 em Abril de 2019», e que essas restrições no campo da saúde não foram iguais para todos. «A pandemia afectou particularmente a saúde (…) dos mais pobres, dos menos escolarizados e dos desempregados». Segundo o relatório, os efeitos da pandemia agravaram também os problemas de desigualdade no ensino, «com o encerramento das escolas, as aulas presenciais foram substituídas pelo ensino à distância. Esta substituição afectou de uma forma mais negativa os alunos das famílias mais pobres», esclarece o documento, que explica que no ano lectivo de 2017/2018, «apenas 62% dos alunos com apoio dos Serviços da Acção Social Escolar (SASE) tinham computador e 52% tinham acesso à internet, o que compara a uma taxa de 71% de acesso à internet e computadores para os alunos sem SASE.» Do ponto de vista do emprego, verificou-se que «as condições no mercado de trabalho alteraram-se profundamente em resposta à pandemia. Dependendo dos sectores, as medidas de confinamento fizeram aumentar a prevalência do teletrabalho, ou levaram ao encerramento das empresas», afirma o documento, contabilizando que «no final de Abril de 2020, o número de trabalhadores em lay-off simplificado era de 1,2 milhões, o que compara com cerca de 70 mil no final de Março». Susana Peralta sublinha ao outro dado importante: «os sectores mais afectados pela crise são aqueles que as pessoas não puderam fazer a migração para o teletrabalho e têm comparativamente os salários mais baixos». Um resultado que confere com outro dado presente nas conclusões do relatório: «estudos não representativos mostram que as pessoas que se identificam com os mais pobres são as que reportam maior perda de rendimento». O título de uma recente entrevista de Susana Peralta ao jornal i, em que supostamente defenderia que era preciso taxar «a burguesia do teletrabalho», levantou uma tempestade nas redes sociais. A economista nega a simplificação, mas reafirma que são precisos recursos para combater o crescimento da pobreza e das desigualdades, e que cabe ao Estado a escolha política de onde ir buscar esse dinheiro. «Eu nunca disse que é para cobrarem apenas às pessoas que estão em teletrabalho. Aquela fórmula da “burguesia do teletrabalho” é uma imagem e pretende transmitir que houve uma determinada “tecnologia” de escapar a esta crise. Tal como a crise anterior tinha a fuga do biscate e do pequeno trabalho, e da emigração; nesta crise, o teletrabalho foi a escapatória», argumenta, acrescentando que «isso protege mais as pessoas com maior rendimento e com maior nível digital. E não faz nenhum sentido que essas pessoas não possam contribuir mais para as que perderam quase tudo». Para a economista, a escolha política não pode prescindir de taxar a totalidade dos rendimentos. Não nega a necessidade de conseguir que o capital pague a sua parte, mas relembra que há uma urgência em conseguir já os recursos necessários para combater os efeitos da crise. «Estamos neste momento numa situação de emergência social, e perante isto há duas formas de agir: ou o Governo se endivida e depois pensa, com tempo, num potencial imposto sobre a riqueza para poder ir buscar recursos aos mais ricos, que não têm estado a contribuir a sua justa parte. Ou usamos agora a máquina que temos para ir buscar dinheiro, que é a máquina dos impostos sobre o rendimento. E aí inclui-se o trabalho e capital, em sede de IRS e também de IRC», explica. É essa reforma sempre adiada de taxar devidamente o capital, que o professor auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais João Rodrigues afirma, ao AbrilAbril, ser cada vez mais necessária. Para isso é preciso conhecimento social e acção política. «O problema da esquerda é que conhece razoavelmente a pobreza, mas muito mal a riqueza para saber como são as formas mais eficientes de a taxar», ironiza. O investigador do CES sublinha a necessidade de uma política justa que possa minimizar os efeitos da crise pandémica. «Vivemos numa sociedade brutalmente desigual, em que há ricos a aforrar e a ver os seus activos valorizarem à boleia da política monetária europeia, que não tem tido direcção orçamental no sentido de aumentar o investimento público e, no fundo, acaba sobretudo por valorizar os activos financeiros. Tudo isto fazendo com que as desigualdades de riqueza estejam a crescer», afirma, juntando que para além de tudo isso, os sucessivos governos têm sido alérgicos a taxar a riqueza e o capital. «O PCP e o BE insistem e bem que é necessário o englobamento de todos os rendimentos, em pé de igualdade, para efeitos de IRS. Para além disso, é preciso pensar na criação de outras formas de impostos que possam onerar aqueles que têm muito património», defende o economista de Coimbra. O deputado comunista Bruno Dias está de acordo: «temos de ter um sistema fiscal que consiga ajudar a redistribuir a riqueza. Neste momento, os estudos internacionais demonstram que há um forte crescimento das desigualdades e da pobreza. Mesmo que só daqui a alguns anos seja possível quantificar o impacto da pandemia na pobreza e desigualdades em Portugal, é indesmentível que ela se tem acentuado». O deputado sublinha, ao AbrilAbril, propostas feitas pelo PCP para atalhar alguns aspectos mais gravosos desta crise, como a falência de muitas micro, pequenas e médias empresas e a defesa dos rendimentos de quem trabalha. Realça ter-se conseguido que, ao contrário do que aconteceu no primeiro confinamento, o lay-off seja igual ao salário do trabalhador, e a importância de garantir que os apoios cheguem atempadamente às pequenas empresas. «Uma coisa é disponibilizar e assegurar uma verba significativa para as micro e pequenas e médias empresas e outra coisa é mostrar o dinheiro e de facto ele chegar a essas empresas. Os apoios são comunicados com pompa e circunstância, mas depois verificou-se que as verbas não chegavam às empresas por dificuldades tremendas de acesso às linhas de apoio e por um conjunto muito grande e crescente de exigências burocráticas. Nós conseguimos aprovar uma medida de não discriminação para as micro, pequenas e médias empresas que permite que mais gente possa ter acesso a esses apoios, infelizmente ainda persistem muitos bloqueios para que se apoiem devidamente as pessoas», alerta. Por seu lado, a dirigente da CGTP-IN Andrea Araújo sublinha, em declarações ao AbrilAbril, a incidência da crise pandémica nas condições de vida de quem trabalhar e a necessidade de haver uma política que aumente os apoios sociais, e que se concentre, sobretudo, na defesa dos postos de trabalho. «As consequências, desta crise, para os trabalhadores e para as suas famílias ainda não estão totalmente calculadas. Mas, por aquilo que conhecemos, podemos dizer que as remunerações de muitos trabalhadores reduziram-se no ano 2020. De acordo com o relatório sobre salários da OIT, Portugal foi, dos 28 países europeus estudados, daqueles em que ocorreram as maiores perdas salariais no segundo trimestre de 2020». Para a sindicalista, a resposta governamental falhou nas prioridades: «desde o início que houve uma clara desproporção entre as medidas anunciadas para as empresas e as medidas tomadas para apoiar os trabalhadores e as famílias, com a agravante de se ter verificado, no que diz respeito às grandes empresas, um grande favorecimento em relação às micro e pequenas empresas. A CGTP-IN defendeu que era preciso actuar para preservar os postos de trabalho. O Governo deveria ter proibido todos os despedimentos e não o fez, o que levou a que nos primeiros meses fossem despedidos milhares de trabalhadores que se viram a braços com uma situação muito complicada, até porque mais de metade desses trabalhadores nem sequer tinha direito a prestações e apoios sociais. Tinha sido fundamental que o Estado exigisse às empresas que está a apoiar que não fizesse despedimentos». Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. A análise confirmou ainda a «natureza estrutural» do fenómeno, mantendo-se uma parte expressiva da população nessa situação ao longo de anos e existindo um «processo de reprodução intergeracional da pobreza», identificando-se pessoas que «cresceram num contexto mais ou menos de privação, condicionando, à partida, as suas oportunidades na vida». A entrada precoce no mundo do trabalho e o abandono dos estudos são alguns dos factores. Fernando Diogo menciona ainda os «três D da pobreza: desemprego, doença e divórcio», factores que produzem essa situação, impedem que as pessoas saiam dela e a podem intensificar. A taxa de pobreza corresponde à percentagem de indivíduos com rendimento inferior a 60% do rendimento mediano observado no País num determinado ano e situava-se, em 2018, nos 501,2 euros mensais. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Trabalho|
Maioria das pessoas em situação de pobreza trabalha
Trabalho|
Em Portugal, 500 mil trabalhadores empobrecem a trabalhar
Contribui para uma boa ideia
Trabalho|
Salários baixam com o contexto pandémico
Contribui para uma boa ideia
Nacional|
Quando a pandemia ataca sobretudo quem trabalha
Uma crise que produz desigualdades
Buscar dinheiro a quem o tem
É preciso defender quem trabalha
Contribui para uma boa ideia
Contribui para uma boa ideia
A primeira ilação a retirar é que perante números tão dramáticos de desemprego e pobreza, é a própria comissão europeia que acaba por confessar o fracasso das suas políticas sociais, mostrando uma realidade alarmante, a qual não pode esconder. Contudo, não deixa de insistir na publicidade enganosa, pois não só aquelas metas estão a léguas de poder resolver os problemas, como nem sequer poderão ser concretizadas, dada a natureza e funcionamento da União Europeia, instrumento de domínio e integração do capital, ao serviço dos grandes grupos económicos e financeiros das potências europeias.
De facto, aí está o novo embuste com a comissão a anunciar a criação de numerosos empregos por via de medidas associadas às políticas de transição «verde» e «digital».
Ora, basta ver a situação deplorável em que milhares de trabalhadores a laborar nas plataformas digitais ou em teletrabalho já hoje se encontram, ou olhar para os milhares de despedimentos em instalações industriais encerradas à boleia da «transição verde», como mostram os casos recentes da refinaria do Porto e da central termoeléctrica de Sines, para perceber como se apresenta negro o futuro do trabalho na UE.
Não é preciso ser bruxo para saber que as medidas anunciadas não têm outra finalidade que não seja intensificar a exploração, alargando e normalizando as formas de desregulamentação do trabalho, da desregulação dos horários, da facilitação dos despedimentos e da precariedade, da liquidação da contratação colectiva, da flexibilização salarial e da eliminação de direitos laborais, sociais e sindicais.
«o que está em marcha é a tentativa de impor critérios que conduziriam não a estabelecer um único salário mínimo europeu, nivelado por cima, mas antes um nivelamento por baixo que, no caso de Portugal, face à resistência patronal e às pressões da comissão, levaria o Governo a colocar em causa o justo aumento do Salário Mínimo Nacional (SMN)»
Acresce que a pandemia da Covid-19 também está a servir de argumento para o capital reforçar as ameaças de cortes nos salários e nas reformas, de redução de direitos laborais e sociais, de menos Estado na saúde e na protecção social. A Covid-19 não é causa dos problemas que afligem a humanidade, mas os seus tremendos impactos tornaram ainda evidente as profundas e insanáveis contradições do capitalismo e da crise estrutural com que este se debate, com expressão em diversos planos, nomeadamente económico, social, político, cultural e ambiental.
O embuste da cimeira social também está patente na intenção de apresentar como coisa boa a fixação de um salário mínimo em toda a UE. Mas o que está em marcha é a tentativa de impor critérios que conduziriam não a estabelecer um único salário mínimo europeu, nivelado por cima, mas antes um nivelamento por baixo que, no caso de Portugal, face à resistência patronal e às pressões da comissão, levaria o Governo a colocar em causa o justo aumento do Salário Mínimo Nacional (SMN).
Nivelar por baixo os direitos laborais e sociais é o objectivo que as cimeiras sociais têm perseguido e que a Carta dos direitos fundamentais incorpora. Ao contrário do que os arautos do federalismo apregoam, os direitos e condições de trabalho nos países da UE não foram dádivas do capital, nem obra da UE, mas sim conquistas alcançadas com muita luta e sofrimento dos trabalhadores ao longo dos tempos.
«Ao contrário do que os arautos do federalismo apregoam, os direitos e condições de trabalho nos países da UE não foram dádivas do capital, nem obra da UE, mas sim conquistas alcançadas com muita luta e sofrimento dos trabalhadores ao longo dos tempos»
Em Portugal, foi a Revolução de Abril que possibilitou a conquista de um alargado acervo de direitos laborais e melhores condições sociais, obtidos muito antes da integração na então Comunidade Económica Europeia (CEE). Depois da adesão nada de bom veio da UE, pelo contrário, tem sido através da luta nas empresas e locais de trabalho que os trabalhadores se batem pelas suas reivindicações, pela defesa dos direitos e contra as imposições da UE, de que a chamada «rigidez da legislação laboral», a flexigurança e o pacto de agressão da troika, são expressões dessa ingerência estrangeira.
É forçoso lembrar que a flexigurança, embora derrotada, abriu a porta à introdução de alterações legislativas relativas à flexibilização dos horários, aos bancos de horas, às intermitências e aos tempos de disponibilidade, entre outras malfeitorias, todas elas destinadas a aumentar uma parte do horário de trabalho não remunerado.
Quase 60% da população activa está a sofrer uma redução de rendimentos devido à perda de emprego ou à diminuição do trabalho, como consequência da pandemia, e as mulheres são mais afectadas. De acordo com um inquérito da Deco – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor, a vaga de desemprego causada pela crise relacionada com a pandemia de Covid-19 tem atingido três vezes mais mulheres do que homens, com 13% e 4% respectivamente. «Uma em cada dez famílias viu, pelo menos, um dos elementos perder o trabalho» e, «até ao momento, 4% dos agregados têm os dois membros do casal sem actividade profissional», pode ler-se nas conclusões. O estudo mostra que 35% dos trabalhadores mantêm o seu horário de trabalho, 30% estão temporariamente inactivos, por exemplo, em lay-off (suspensão do contrato), enquanto 19% viram o seu horário reduzir-se, 9% perderam o emprego e 7% dos inquiridos revelam que estão a trabalhar mais horas. Dos que continuam a trabalhar, três em cada dez fazem-no sempre a partir de casa, em teletrabalho, e cerca de um quinto (19%) labora parcialmente nestas condições – por exemplo, algumas empresas têm equipas rotativas em teletrabalho. Por seu lado, mais de metade (51%) dos que trabalham não estão em regime de teletrabalho. «A maioria dos teletrabalhadores diz que a nova forma de trabalhar não altera, ou até melhora, os níveis de actividade, bem como o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal», conclui a Deco. Contudo, 38% dos inquiridos em teletrabalho indica que a sua concentração diminuiu e 37% consideram-se menos eficientes, com a situação a piorar nos casos em que há crianças e jovens em casa. O inquérito da Deco, realizado entre 17 e 20 de Abril através de um questionário online com 1008 respostas, segue-se a um outro, publicado em meados de Março, que concluía que o prejuízo total das famílias já rondava naquela altura os 1,4 mil milhões de euros. Com agência Lusa Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Trabalho|
Mais de metade dos trabalhadores está a sofrer cortes nos rendimentos
Contribui para uma boa ideia
Do mesmo modo, o pacto de agressão impôs a redução de salários e rendimentos de trabalhadores e pensionistas, eliminou dias de férias e feriados, reduziu o valor a pagar pela prestação de trabalho extraordinário e em dia feriado, diminuiu o valor das indemnizações a pagar pela cessação do contrato e por despedimento, etc.
Só naquele pacote de medidas, conta-se por mais de 3 mil milhões de euros o montante que foi transferido directamente do factor trabalho para o capital, em consequência da desvalorização dos salários, da redução de rendimentos e do aumento dos tempos de trabalho. E, mais uma vez, foi a luta dos trabalhadores, contra a oposição das instâncias da UE, que levou à reposição de salários e rendimentos e que obrigou o Governo a legislar para devolver os direitos roubados.
Pôr a ciência e a tecnologia ao serviço da Humanidade
A existência de milhões de trabalhadores e suas famílias a viverem miseravelmente – apesar da produtividade e da produção de riqueza não cessarem de crescer continuadamente desde a revolução industrial – é uma evidência tão presente que alguns autores identificam esta era como a «civilização das desigualdades».
É uma exigência que os avanços tecnológicos sejam postos ao serviço do desenvolvimento e do progresso social, permitindo aumentar a produção nacional, criar empregos de qualidade, com direitos e boas condições de trabalho, acabar com a pobreza e as desigualdades, aumentar os salários, diminuir os horários de trabalho, assegurar os direitos à saúde, à educação e à segurança social.
É por tudo isto que a CGTP-IN realiza amanhã, no Porto, uma Manifestação Nacional.
É tempo de afirmar a Soberania Nacional, lutar por uma Europa dos trabalhadores e dos povos!
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui