I.
Há 110 anos atrás, no dia 29 de Junho de 1911, falecia em Lisboa um dos grandes precursores da organização da classe trabalhadora e da difusão de ideias socialistas em Portugal: Eudóxio Azedo Gneco.
Tinha nascido em 1849, no Ribatejo, em Samora Correia. Estudou escultura e tornou-se um operário qualificado. Trabalhou na Casa da Moeda, onde terá chegado a ser responsável pela oficina de produção de selos postais.
Fez parte da Maçonaria durante alguns anos, na sua juventude. E foi nessa fase que se envolveu nas lutas laborais. Como outros operários portugueses da sua geração, empolgou-se com a Comuna de Paris, em 1871. E nesse ano aderiu à secção portuguesa da Associação Internacional dos Trabalhadores. Era a primeira Internacional, que tinha em Karl Marx um dos seus dirigentes.
Tornou-se depois um elemento activo nos primeiros protótipos de uma central sindical em Portugal, a Associação Fraternidade Operária (fundada em 1872) e a Associação dos Trabalhadores na região Portuguesa (surgida em 1873).
Foi depois um dos fundadores do Partido Socialista Português (em 1875) e da Confederação Nacional das Associações de Classe (em 1894).
A bem dizer, espalhou o seu esforço militante pelas várias vertentes do movimento operário: política, sindical, cooperativa e mutualista. Além da imprensa e das celebrações do 1.º de Maio.
II.
A nível ideológico, Gneco esteve no centro das polémicas que à época confrontaram a classe trabalhadora. Conheceu derrotas e calúnias, teve os seus acertos e os seus erros, mas manteve-se fiel às suas ideias até ao final da vida. Contra anarquistas, defendeu a participação política dos trabalhadores. Contra republicanos, defendeu a autonomia de classe do movimento operário. Mas não conseguiu evitar que anarquistas e republicanos conquistassem grande influência entre a classe trabalhadora e no movimento sindical.
No seu tempo, Gneco foi certamente um dos militantes operários que em Portugal mais se aproximaram das ideias de Karl Marx, como diria Bento Gonçalves (em Palavras Necessárias).
Gneco foi aliás um dos raros portugueses que se corresponderam com Friederich Engels. E o orador principal na homenagem fúnebre que em Lisboa foi dedicada a Marx (numa iniciativa da Associação dos Trabalhadores na Região Portuguesa), quando este morreu, em 1883.
Delegado ao congresso de 1896 da 2.ª Internacional, que se realizou em Londres, Gneco integrou aí a corrente marxista, nomeadamente quando esta decidiu separar-se e excluir a corrente anarquista.
III.
Ainda no tempo de Gneco, começou a desenvolver-se em Portugal uma importante manifestação cultural da classe trabalhadora, sobretudo em Lisboa: o fado operário.
Quando certos intelectuais «bem pensantes» desprezavam o fado como uma coisa decadente, marginal e sem valor artístico, simples trabalhadores ousaram ser mais do que meros acessórios das máquinas e ferramentas. Tocaram guitarra, cantaram e escreveram letras. Falaram de amores e desamores, sim. Mas também no fado denunciaram a exploração capitalista e expressaram ideais de uma sociedade mais justa e livre. Deram à época um importante contributo para valorização do Fado, no caminho que o levou a ser reconhecido como património da humanidade.
Por ter florescido no tempo da 1.ª República, este fado operário já tem sido rotulado como fado republicano. Mas a identidade de classe dos seus cultores era bem vincada, bem como o conteúdo de muitas letras e contexto de muitos espectáculos.
Um dos nomes que estiveram na vanguarda do fado operário foi o caixeiro e tipógrafo Avelino de Sousa, mais tarde funcionário da Torre do Tombo. Foi um cantador, poeta e dramaturgo.
Quando Gneco morreu, em 1911, foi ao fado e à poesia que Avelino de Sousa recorreu para lhe prestar homenagem. Publicou então dois poemas dedicados a Gneco. Constituem hoje dois documentos históricos não apenas de uma biografia individual mas de uma classe social, a classe trabalhadora.
Num tom afectivo e com os sentidos figurados próprios da poesia, Avelino de Sousa recorda o papel de Azedo Gneco no movimento operário: «em quarenta anos foi o cérebro maior nas lutas sociais em todo o Portugal» e um «audaz continuador» de Marx. Mas revela bem a preocupação de defender Gneco dos ataques que este havia sofrido sobretudo por parte de republicanos, com a acusação de que teria estado ao serviço da monarquia. Uma acusação que o regime republicano ainda haveria de repetir contra sindicalistas revolucionários, para justificar o seu pendor repressivo contra lutas de trabalhadores.
Com os mesmos fins, e um nível de repressão muito agravado, viria mais tarde o fascismo a desenvolver outras calúnias, como «terroristas» e «agentes de Moscovo»...
IV.
Eis o primeiro poema de Avelino de Sousa, num tom de letra de fado, publicado no jornal República Social, órgão do antigo Partido Socialista Português:
Azedo Gnecco
Há luto no povo operário
Há mágoa, tristeza e dor!
Pelo Mestre, que morreu
incansável lutador!
Tange a lira em funeral
numa homenagem fremente
ao austero combatente
da Ideia Social!
A apoteose final
ao revolucionário,
provou bem que o proletariado
sentiu da Dor fundo eco!
E pela morte de Gneco
há luto no povo operário.
A calúnia o envolveu
e a insídia torpe e má...
Mas a História esmagará
a calúnia que o mordeu!
Se Azedo Gneco morreu
vive em nós o seu valor
que ao povo trabalhador
dá enérgicos pruridos!
No seio dos oprimidos
há mágoa, tristeza e dor!
Sereno como Jesus,
rosto altivo, augusto e forte,
Ele vive após a Morte
porque o Génio é vida e Luz!
Foi pesada a sua cruz
no calvário em que viveu...
Mas, com vigor combateu
pela Justiça, pela Verdade!
E vive em nós a Saudade
pelo Mestre que morreu!
Nem Iglésias, nem Jaurès,
cuja obra é magistral,
contra o torvo Capital
lutaram com tanta fé!
Mesmo quando só, até,
lutou com estrénuo vigor!
Porém, sempre vencedor,
insensível ao desgosto...
Morreu firme no seu posto
incansável lutador!
V.
O segundo poema de Avelino de Sousa foi publicado n'A Voz do Operário:
Gneco
“...sê tão pura como a água, tão casta como o gelo,
e não hás de te livrar da calúnia” (Hamlet – Shakespeare)
Socialistas, silêncio! O Mestre faleceu.
Fechou-se para ele, a porta desta vida!
Foi morto enquanto vivo, e agora, que morreu,
começa ele a viver! - Contando o que sofreu,
a História falará singela e comovida!
…......................................................
Curvai-vos, Burguesia... e escancarai a boca
enorme de chacal imundo que me assombra!
As garras afiai, e, numa fúria louca,
rasgai-lhe o corpo inerme!... Oh! Calai a voz rouca...
O mestre já morreu... e já não vos faz sombra!
Caluniado e ferido e vilipendiado,
cuspiram-lhe na honra, a ele, a alma-mater
da causa proletária, em cujo apostolado
gastou talento e vida! E foi recompensado
com feroz ingratidão manchando-lhe o carácter!
Chamaram-lhe impostor, vendido, autoritário!
Chamaram-lhe ladrão! Mas ele, que era nobre,
rasgou o pergaminho e fez-se proletário!
Gastou sua fortuna em prol do operário...
vindo a morrer enfermo e extremamente pobre!
Ainda depois de morto, há quem desça ao insulto,
explorando a Mentira, alimentando o escândalo!...
- Mas que importa o latir irracional e estulto?!
Quem vale alguma coisa e merece algum culto
jamais pode escapar às pedradas dum vândalo!
Albuquerque e Pombal foram anavalhados,
sofrendo da calúnia o pustulento vómito...
Alcunhados ladrões, morreram desonrados!
- A morte deu-lhes vida! E séculos passados,
consagraram-lhe o génio altivo, audaz, indómito!
Assim sucede a Gneco. A insídia raquítica
de zoilos e truões que, na atmosfera núvida
do consta aterrador, vivem fazendo crítica,
esses palhaços vis, rufiões da política,
atiraram-lhe o nome ao lodaçal da dúvida!
Mas quem pode impedir que o esperma fecundante
procrie e geste e viva até à concepção?!...
- Pois Gneco é o criador! A sua obra brilhante,
seu grandíloquo verbo, eloquente e vibrante,
a ideia fecundou no ventre da razão!
Tenaz como Lutero! Audaz como Calvino,
pregou e construiu qual Nazareno-Artista!
Sofreu! Lutou! Venceu contra o dogma cretino.
E quantas vezes só, o estóico paladino
ergueu alto o pendão do Ideal Socialista!
Maior do que Jaurès, ele era o pensador
austero e dedicado à causa social!
De Marx e Malon audaz continuador,
em quarenta anos foi o cérebro maior
nas lutas sociais em todo o Portugal!
Morreu! E, todavia, uma enorme saudade,
num nimbo de oiro e luz a pairar no Empíreo,
envolve essa gigantea intelectualidade,
abrindo ao evangelista a imortalidade,
e, cingindo-lhe a fronte, a coroa do martírio!
No Gólgota da infâmia, oh! Mártir justiceiro,
foste sacrificado aos mais negros intuitos...
Sangrou-te o coração, oh! Espírito altaneiro,
foi grande a tua cruz? - Embora, grande obreiro!
- O Cristo, foi um só! Mas... Judas, é que há muitos!
…...............................................................................
Gigante, dorme em paz! A peçonhenta cobra
da calúnia infamante a transudar desdém,
jamais pode apagar o brilho à tua obra!
E junto de Fontana, o teu nome recobra
a glória a que tem jus, apóstolo do bem!
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