|História

O 25 de Abril nunca existiu?

Vivemos numa história contrafactual, não porque haja muitos passados, mas porque este é um campo de luta em que a direita hegemónica pretende criar uma realidade alternativa.

Créditos / Eduardo Gageiro

O escritor Jorge Luís Borges tem um conto chamado O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, no qual alguém fala na existência de um tempo que não seria uniforme e absoluto. Essa pessoa revela a existência de uma infinita série de tempos: divergentes, convergentes e paralelos que abrangem todas as possibilidades.

«Não existimos na maioria desses tempos; nalguns existe o senhor e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois. Neste, que um acaso favorável me surpreende, o senhor chegou a minha casa; noutro, o senhor ao atravessar o jardim, encontrou-me morto; noutro, digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma».

A ideia de uma história contrafactual, mesmo sem coexistir nos universos paralelos do conto do escritor argentino, baseia-se no conceito de que, quando algo se altera, o desenlace do plano histórico pode ser completamente diferente. «Se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais pequeno, toda a face da Terra teria mudado», é a frase do matemático Blaise Pascal que resume este império de um facto só. A beleza da rainha egípcia tinha condicionado toda a história da região fazendo com que António e César se apaixonassem por ela e que mudassem a sua acção na região.

Este tipo de história pressupõe, por um lado, um livre arbítrio e uma liberdade total para quem faz a história e simultaneamente dá um poder total aos acontecimentos isolados. Algo que ignora que a história é feita pelos humanos mas em condições concretas e estruturais que lhes são herdadas.

«Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam directamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos», escrevia Marx no 18 de Brumário.

A concepção de uma história pregada por acontecimentos únicos que tudo mudam é ridicularizada por outro matemático, Bertrand Russell, que explica as implicações desse tipo de lógica de silogismo de uma frase do tipo «se algo não aconteceu, então…», como formulou Pascal:

«A industrialização deve-se à ciência moderna; a ciência moderna deve-se a Galileu; Galileu deve-se a Copérnico; Copérnico deve-se ao Renascimento; o Renascimento deve-se à queda de Constantinopla, a queda de Constantinopla deve-se à migração dos turcos; a migração dos turcos deve-se à seca na Ásia Central; portanto, a ciência fundamental para encontrar as causas da história é a hidrografia».

«Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam directamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos»

marx, 18 de brumário

A história dos grandes homens fazedores, determinantes dos acontecimentos decisivos, opõe-se à concepção de uma história feita pelas grandes massas e condicionada por realidades sociais, económicas, políticas e culturais.

Embora historiadores marxistas, como E.H. Carr e E.P. Thompson, qualifiquem esta ideia de história contrafactual de mero «jogo de salão» e mesmo de «lixo histórico», ela permite-nos reflectir sobre o resultado histórico que de facto vivemos.

Quando o economista Robert Fogel escreve sobre como seriam os Estados Unidos da América sem caminhos-de-ferro e comboios, mais do que ficcionar a história ele está a demonstrar a importância deste factor no desenvolvimento da história.

Até porque, também, o passado aconteceu de uma forma determinada, mas a forma como ele é percepcionado marca o presente. Coexistem, como defendia Walter Benjamin, vários rios da história, que no dia da vitória dos explorados, até então vencidos da história, vão reabilitar o rio das suas lutas e vidas, e até das suas derrotas que vão aparecer nesse momento futuro sobre uma luz diferente.

O passado está sempre em disputa. Se há de facto uma história contrafactual é esta luta permanente para afirmar diferentes versões daquilo que aconteceu. Isso é óbvio todos os dias. No final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a esmagadora maioria dos europeus da França, Itália e Alemanha atribuía à União Soviética o maior papel na vitória aliada. Em 2015, a maior fatia desses habitantes da Europa Ocidental garantia que tinham sido os EUA os grandes obreiros dessa vitória.

Esta mudança não é indiferente para as lutas e hegemonias do presente. É esta mudança que permite o parlamento do Canadá convidar um «herói ucraniano» que combateu pelo seu país e contra a Rússia, em 1945, para só depois se aperceber que era um antigo elemento das SS que combateu pela Alemanha nazi.

O regresso da extrema-direita neofascista, a afirmação do nacionalismo dos países do leste da Europa faz-se sobre esse diapasão da mudança da nossa ideia de passado e reescrita da Segunda Guerra Mundial. Faz-se no mundo ocidental como se faz em Portugal. A extrema-direita caminha sobre a reescrita da história da ditadura, da sua resistência e sobre o que significou a revolução de 1974.

Esta disputa para condicionar o futuro, produzindo passados alternativos, é absolutamente clara sobre a ditadura e a revolução portuguesa. Há um esforço sistemático e organizado de apagar o papel dos comunistas na luta pela liberdade, de transformar antigos apoiantes do fascismo em democratas e de apagar o 25 de Abril e a revolução, submergindo-a com uma interpretação fantasiosa do PREC e do 25 Novembro.

Se não se conseguir lutar pela democracia e pela verdade histórica, podemos acordar num Portugal em que parece que o 25 de Abril de 1974 nunca aconteceu.    

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