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O «Estado pária» que continua a ser recebido de tapete vermelho

O relatório produzido pela CIA defende a tese de que o jornalista Jamal Khashoggi foi assassinado a mando do líder saudita, mas a amizade que une os dois regimes mostra-se inquebrantável.

Joe Biden
Créditos CJ Gunther / EPA

A retórica eleitoral de Joe Biden, agora presidente dos Estados Unidos da América (EUA), sobre a política internacional americana, assentava num misto de rejeição das práticas e decisões do seu antecessor, Donald Trump, e de um reforço na defesa dos direitos humanos. Neste âmbito, e em plena campanha, dispôs-se a acusar e criticar um dos estados que melhores relações mantinha com Trump, a Arábia Saudita.

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ONU aceita «ajuda humanitária» de quem comete crimes de guerra

A Arábia Saudita lançou, em Março de 2015, uma grande campanha militar de agressão contra o Iémen. Ofereceu agora 50 milhões de euros para reparar «a pior crise humanitária do mundo», que ela própria causou.

Equipa médica operando no Iémen. Foto de arquivo.
Créditos / MSF

O Programa Alimentar Mundial (PAM) anunciou ontem ter recebido 50 milhões de euros da KSrelief - King Salman Humanitarian Aid and Relief Centre - organização de caridade fundada e gerida pela mesma monarquia saudita que há seis anos vem comentendo crimes de guerra contra a população Iemenita.

A agressão saudita, que já matou mais de 130 mil pessoas e provocou milhões de deslocados, bombardeou intencionalmente alvos civis, como mercados e campos de refugiados, assim como hospitais geridos por organizações de solidariedade como os Médicos sem Fronteiras.

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Sauditas usaram mais de 3000 bombas de fragmentação no Iémen

A coligação liderada pelos sauditas recorreu a bombas de fragmentação de fabrico diverso ao longo da guerra de agressão contra o Iémen, desde 2015, provocando centenas de vítimas civis.

Crianças numa zona bombardeada no Iémen
Créditos / Sputnik News

«As informações e os dados que temos mostram que foram utilizados oito tipos de bombas de fragmentação, de fabrico norte-americano, britânico e brasileiro, durante a guerra no Iémen», revelou Ali Sofra, director-geral do Centro Executivo de Desminagem do Iémen, informaram este domingo os canais de notícias al-Maloumeh e al-Masirah.

O responsável precisou que a Arábia Saudita e os seus aliados lançaram 3179 bombas de fragmentação no Iémen desde o início da campanha de agressão, em Março de 2015, e que as vítimas civis, na sua maioria mulheres e crianças, são mais de mil. Muitas delas perderam a vida quando se encontravam em campos agrícolas e áreas de pasto.

«A monarquia árabe utilizou esse armamento, cujos efeitos são intrinsecamente indiscriminados, nos ataques aéreos que levou a cabo nas províncias de Saada, Saná, Hajjah, Hudayda, Jawf, Amran, Taizz, Dhamar e Mahwit», disse ainda Sofra, citado pela HispanTV.

Em Junho do ano passado, o Ministério iemenita dos Direitos Humanos alertou para os riscos que este tipo de armamento colocava à população civil, uma vez que é pouco preciso, abrange extensas áreas e constitui um perigo mortal para os civis mesmo depois de terminado o conflito. O Ministério acusou então a coligação liderada pela Arábia saudita de ter usado milhares de bombas de fragmentação em áreas residenciais, provocando inúmeras vítimas mortais.


A Organização das Nações Unidas (ONU) condenou a utilização destas munições no Iémen, considerando que se trata de «um crime de guerra». Em 2010 entrou em vigor a Convenção contra as Bombas de Fragmentação, que havia sido assinada dois anos antes por mais de uma centena de países.

Num tweet publicado esta segunda-feira, Ali Sofra criticou as organizações internacionais e de direitos humanos por evitarem falar sobre a existência de ataques aéreos e a utilização de bombas de fragmentação no Iémen. «Quaisquer vítimas de bombas de fragmentação no Iémen não são referidas nos seus relatórios anuais humanitários e de direitos humanos», escreveu, citado pela PressTV.

EUA «congelam» venda e Itália deixa de vender armamento aos sauditas

Joe Biden, o presidente recentemente empossado dos EUA, um dos grandes fornecedores de armamento à coligação liderada pelos sauditas e um dos principais envolvidos no Ocidente, juntamente com o Reino Unido, na guerra de agressão ao Iémen, anunciou na quarta-feira da semana passada o congelamento da venda de armas à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos, cujo volume de negócio tinha incrementado fortemente sob os auspícios de Donald Trump.

Na sexta-feira, a Itália – um de vários países ocidentais envolvidos na venda de armas à Arábia Saudita e que muito lucram com a guerra de agressão ao Iémen – anunciou o fim da exportação de armamento à Arábia Saudita e e aos Emirados Árabes Unidos.

Luigi Di Maio afirmou que se tratava de um «acto necessário», de uma «clara mensagem de paz do nosso país» e que, para a Itália, o «respeito pelos direitos humanos é um compromisso inquebrável». Se for para valer, mais vale tarde que nunca. A guerra e o martírio do povo iemenita começaram há seis anos.

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Alguns destes ataques recorreram ao uso de bombas de fragmentação, fabricadas pelos Estados Unidos, que foram alvo, em 2008, de uma convenção internacional contra o seu uso, ratificado por Portugal, mas linearmente rejeitado tanto pela Arábia Saudita como pelos EUA, que continuam a utilizá-las como parte do seu esforço de guerra

A mesma ONU que denunciou os vários crimes de guerra cometidas na agressão ao Iémen, vem agora saudar, através do PAM, os parcos apoios atríbuidos pelos sauditas, em resposta às «necessidades urgentes de alimentação no Iémen» — como reconhece o comunidade do PAM - e dos quais são os principais responsáveis..

Os EUA e o Reino Unido têm contribuído, debaixo de uma maré de críticas, para o assalto saudita, não só através da venda de armamento bélico mas também com o apoio logístico, político e de quadros técnicos na manutenção do bloqueio marítimo, terrestre e aéreo ao país. O fornecimento de relatórios de inteligência tem sido fundamental para o agravar do conflito.

Desde 2015 que cerca de 20 milhões de pessoas no Iémen necessitam de apoio humanitário, mais de 16 milhões sofrem de insegurança alimentar e cinco milhões está em risco de morrer à fome.

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Para além de a considerar um «Estado pária», Biden considerou ainda um desastre o envolvimento saudita na guerra no Iémen (onde contou com o apoio logístico, material e humano dos EUA) e ameaçou, por fim, acabar com os negócios multimilionários de vendas de armas que foram reforçados no mandato do seu opositor.

Várias publicações internacionais referiam-se a este caso como sendo paradigmático de uma alteração significativa da acção estadounidense na região: «O desprezo de Biden pelos sauditas é um forte aviso depois do abraço de Trump», escrevia a Bloomberg, em Agosto; «A Arábia Saudita preferia uma vitória de Trump, os seus medos com uma presidência de Biden são bem-fundados», declarava a CNN, em Novembro; «O pior pesadelo da Arábia Saudita», assegurava a revista Foreign Policy.

Em declarações proferidas a 2 de Outubro de 2020, o próprio candidato assumiu que era tempo de pôr fim à guerra no Iémen e que os EUA não podiam continuar a apoiar o regime saudita e deixar «os direitos humanos à porta para vender armas ou comprar petróleo».

Uma nova administração em que se mantém tudo igual

Seis meses volvidos sobre a confirmação de Joe Biden como 46.º presidente dos EUA, o príncipe Khalid Bin Salman, irmão do actual príncipe regente saudita, encontrou-se em Washington com algumas das mais importantes figuras de Estado norte-americanas, entre as quais o secretário de Estado e o secretário da Defesa.

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Tempestade Khashoggi abate-se sobre o mundo

No caso do assassínio do jornalista-espião Jamal Khashoggi o Ocidente é de novo vítima do oportunismo da estratégia de dois pesos e duas medidas e da falta de princípios diplomáticos e humanitários.

Polícias forenses turcos no consulado da Arábia Saudita em Istambul, investigando as circunstâncias da morte de Jamal Khashoggi. Istambul, Turquia, Outubro de 2018.
CréditosFonte: El Independiente/EFE

O cadáver do jornalista-espião Jamal Khashoggi pode ainda não ter aparecido oficialmente, mas há muitos esqueletos a sair dos armários dos Estados Unidos e dos seus principais aliados ocidentais em matéria de direitos humanos, cumplicidades e relações com a Arábia Saudita, país que é propriedade privada de uma família cuja conduta não desdenha o recurso a práticas criminosas.

Sendo o assassínio de Khashoggi apenas mais um na longa lista de atrocidades que inclui chacinas contemporâneas como a que decorre no Iémen, as suas repercussões, porém, podem gerar uma situação diferente. Alguns sinais indiciam que o Ocidente poderá sentir-se obrigado, pela primeira vez, a bater de frente com o seu tradicional aliado. Mas estará preparado para se aguentar com a resposta dos beduínos do deserto, para quem «todo o insulto deve ser vingado»?

Petróleo a 200 dólares por barril, fim da exclusividade do dólar nas transacções petrolíferas, aproximação ao Irão, apoio ao Hamas e ao Hezbollah, compra de armas à China e à Rússia, cedência de uma base militar a Moscovo em região saudita próxima dos territórios da Síria, Israel, Líbano e Iraque – o recado de Riade já foi transmitido por Turki al-Dhakil, conselheiro do príncipe Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro, ministro da Defesa e homem forte da Arábia Saudita. Estas medidas e algumas outras do mesmo género serão as respostas a eventuais sanções norte-americanas e dos principais países ocidentais ditadas pelo assassínio de Khashoggi, agente da CIA, «residente norte-americano», braço direito do principal opositor de Mohammed bin Salman, Walid bin Talal – um dos homens mais ricos do mundo, embaixador secreto da Arábia Saudita em Israel.

Mohammed bin Salman, espécie de regente do reino perante a doença do rei Salman, com 82 anos, poderá ser, é certo, vítima da sua ganância galopante. Com pouco mais de 30 anos e depois de ter eliminado toda a concorrência na corrida ao trono, tornou-se um caso exemplar de alguém que pretende ganhar muito em pouco tempo. Isso pode sair-lhe caro na sequência de um episódio fabricado essencialmente no âmbito de serviços secretos e onde as traições cruzadas não serão de desprezar.

Ganancioso e sem limites

Mal ascendeu à posição de herdeiro do trono, Mohammed bin Salman pretendeu ter acesso às inexploradas reservas de hidrocarbonetos do deserto Rub-al-Khali, em território sob o domínio do Iémen; como este país se opôs às suas pretensões provocou a guerra que ainda hoje se arrasta, condenando sete milhões de pessoas à fome, provocando 15 mil mortos e 24 mil feridos em 1300 dias.

Em 4 de Novembro de 2017, Mohammed bin Salman aproveitou uma alegada tentativa de golpe palaciano para prender e torturar cerca de 1300 príncipes e altos quadros do regime, aproveitando para extorquir pelo menos metade das fortunas a cada um. E foi assim que 800 mil milhões de dólares entraram nos seus cofres pessoais, que não nos do rei – que se confundem com os do Estado.

De caminho, o herdeiro do trono decapitou, na verdadeira acepção da palavra, a oposição xiita ao executar o seu dirigente máximo, Nimr Bakr al-Nimri. E mandou arrasar com tanques de guerra numerosas aldeias e comunidades xiitas na região de Qatif, como foi o caso de Mussawara e Chukeiwat.

Um episódio mal contado

O assassínio de Jamal Khashoggi, ao cabo desta sequência de crimes durante a qual os Estados Unidos e os seus aliados permaneceram mudos e quedos, aparece como uma história ainda muito mal contada.

«Porém, nem a CIA – com quem Khashoggi trabalhava – nem o MIT advertiram o jornalista-espião dos riscos que corria. [...] De acordo com as revelações do Washington Post, Khashoggi foi mesmo dissuadido, por «uma pessoa da sua inteira confiança», de procurar a legalização dos seus documentos no consulado de Washington, e aconselhado antes a procurar o de Istambul. Quem o fez, apontou-lhe o caminho da morte»

Khashoggi sabia muitos segredos cujo receio de divulgação era suficiente para tirar o sono ao poder saudita. Não existem dúvidas de que Bin Salman o mandou silenciar, aproveitando também para lançar uma nova purga interna atingindo Walid bin Talal, um rival com peso mundial. Daí que a confissão atribuída a Khashoggi sob tortura, segundo a qual estava em preparação um golpe para afastar o príncipe herdeiro, fosse uma maneira de atingir definitivamente esse adversário.

O crime foi obra dos serviços secretos sauditas e a sua preparação era do conhecimento de outros serviços de espionagem.

A CIA sabia de tudo, segundo revelações do Washington Post; e os serviços secretos turcos, MIT, também; por isso montaram previamente escutas no consulado saudita em Istambul, onde tudo aconteceu.

Porém, nem a CIA – com quem Khashoggi trabalhava – nem o MIT advertiram o jornalista-espião dos riscos que corria. Isto é, deixaram-no ser assassinado, provavelmente para que os governos turco e norte-americano tirem proveito da situação. De acordo com as revelações do Washington Post, Khashoggi foi mesmo dissuadido, por «uma pessoa da sua inteira confiança», de procurar a legalização dos seus documentos no consulado de Washington, e aconselhado antes a procurar o de Istambul. Quem o fez, apontou-lhe o caminho da morte.

Nunca antes visto

O assassínio de Jamal Khashoggi adquire assim uma dimensão mundial jamais observada em relação a qualquer dos muitos crimes que preenchem o quotidiano da Arábia Saudita.

França, Reino Unido e Alemanha prometem sanções comerciais – longe de incluir, porém, a venda de armas com as quais o regime saudita flagela o Iémen, ameaça fazer o mesmo com o Koweit, e arrasa aldeias xiitas.

As ameaças dos Estados Unidos também não passam ainda de propaganda da qual faz eco a comunicação social. Não é de crer que os impérios armamentistas norte-americanos admitam que seja posta em causa, por exemplo, a última encomenda de armas feita pelo príncipe Mohammed bin Salman, e que ascende a 110 mil milhões de dólares.

Numa primeira fase, Trump deu «credibilidade» às versões sauditas sobre o «desaparecimento» de Khashoggi; depois, achou «lógicas» as explicações sobre a suposta «rixa» com «bandidos comuns» da qual teria resultado a morte do jornalista. Aguarda-se, entretanto, que a visita de uma equipa da CIA ao local do crime contribua para uma posição norte-americana mais credível perante a opinião pública – muito sensibilizada internacionalmente pelo assassínio.

Uma sensibilização que não deixa de ser caso virgem perante os continuados crimes do regime saudita.

Nunca os Estados Unidos e as principais potências da NATO e da União Europeia manifestaram qualquer inquietação pelo contributo do Riade para a criação de grupos terroristas islâmicos, desde os mujahidin afegãos, em meados dos anos setenta, seguindo-se bin Laden e a al-Qaida e seus sucedâneos, até ao Estado Islâmico e suas sequelas.

Jamais os Estados Unidos e seus aliados procuraram aprofundar as «coincidências» existentes entre o poder saudita e os atentados de 11 de Setembro de 2001 em Nova York.

O apoio terrorista patrocinado pela Arábia Saudita às operações de destruição de países como a Líbia, o Iraque ou a Síria nunca foi condenado – pelo contrário, foi aproveitado – pelos aliados ocidentais de Riade.

Não consta que alguma voz oficial dos Estados Unidos, da NATO e União Europeia tenha condenado a invasão saudita do Bahrein para fazer abortar a «primavera árabe».

Tolerância colaborante que se repete com a sangrenta agressão contra o Iémen, cujo fim não está à vista.

O assassínio sistemático de dirigentes da oposição saudita, ou mesmo de membros da família real «dissidentes» não é assunto que chame a atenção dos escrupulosos dirigentes europeus e norte-americanos.

Muito menos será motivo de inquietação o massacre de populações xiitas do reino whaabita, cujo monarca é uma emanação directa de Deus.

O Tratado de Quincy

Porém, a repugnante morte de Khashoggi, um crime entre muitos, uma vítima entre centenas de milhares, alterou a rotina complacente.

Acontece que quando Mohammed bin Salman eliminou a concorrência e se proclamou futuro rei observou-se na Europa e nos Estados Unidos uma onda de entusiasmo: o homem era um liberal, deixava as mulheres conduzir automóveis, promovia concertos, na verdade estávamos perante uma pedrada no charco, em Riade despontava um quase-democrata.

E nenhum dos seus actos criminosos mereceu reparos até ao assassínio de Khashoggi.

De repente, e apenas por causa do que aconteceu em Istambul, passámos a estar em presença de alguém que se limita a traduzir a essência do regime saudita – um comportamento «medieval».

Além do carácter invulgar da reacção internacional a este crime saudita, há outros aspectos, quase esquecidos, que contribuem para a sua singularidade.

Temos vindo a assistir a uma concentração das responsabilidades pelo assassínio de Khashoggi na pessoa de Mohammed Bin Salman, ilibando-se assim não apenas o rei Salman como o próprio regime.

Desta maneira, a situação torna-se exterior ao conteúdo do Tratado de Quincy, celebrado em 1945 entre o presidente norte-americano Franklin Roosevelt e o monarca saudita, mais recentemente confirmado por George W. Bush. Em duas palavras, o acordo estabelece que os Estados Unidos têm acesso aos hidrocarbonetos da região em troca da protecção militar ao reino da Arábia Saudita. Este, por seu turno, compromete-se a viabilizar a existência de um Estado judaico na Palestina.

De acordo com o tratado, os Estados Unidos devem proteger militarmente o Estado saudita, representado pelo rei. Esta interpretação exclui, portanto, o príncipe herdeiro; assim sendo, Bin Salman poderá ser removido e substituído por alguém menos truculento e ganancioso, alguém que possa contribuir para concretizar o mais recente projecto da Administração Trump: reactivar a economia norte-americana fazendo reingressar no país parte dos investimentos em hidrocarbonetos, ou seja, através de generoso reforço dos investimentos sauditas. Mohammed bin Salman poderia não ser o homem ideal para essa estratégia, apesar das fabulosas encomendas de armamento já feitas.

«Benjamin Netanyahu e Bin Salman são unha com carne. O primeiro-ministro israelita conta com o dirigente saudita para continuar a assegurar a inoperância da Autoridade Palestiniana, [...] Conhecendo-se a ligação umbilical entre os Estados Unidos e Israel, sobretudo entre Netanyahu e Trump, percebe-se que Mohammed bin Salman poderá não ser tão descartável como parece»

A situação joga-se agora no fio da navalha: ou Bin Salman é derrubado através de mais um golpe palaciano e faz-se «justiça» por Khashoggi – isto é, o poder saudita ficará em mãos mais previsíveis para os «revoltados» com o assassínio do jornalista-espião; ou ele resiste e a dimensão das ameaças já proferidas poderá ser uma tempestade sobre a economia mundial. Fechar as torneiras do petróleo até aos sete milhões e meio de barris por dia, catapultando-o para os 200 dólares por barril, é uma perspectiva assustadora para grande parte das nações mundiais.

A posição de Mohammed bin Salman, entretanto, poderá não ser tão periclitante como parece, porque tem um aliado poderosíssimo: Israel. Que não deixará de se movimentar neste contexto.

Benjamin Netanyahu e Bin Salman são unha com carne. O primeiro-ministro israelita conta com o dirigente saudita para continuar a assegurar a inoperância da Autoridade Palestiniana, mesmo perante a transferência de embaixadas para Jerusalém e a continuação da colonização; e, sobretudo, para manter viva a pressão bélica sobre o Irão. Bin Salman, por seu lado, assegura um alto nível de ameaça contra o Irão e continuará a contar com Israel para a guerra contra o Iémen. Telavive e Riade têm um quartel-general conjunto na Somalilândia, neste momento quase exclusivamente dedicado às operações militares em território iemenita.

Dentro do silêncio oficial israelita têm-se ouvido algumas vozes oficiosas saudando o desaparecimento de Khashoggi, alguém que «era amigo da al-Qaida e da Irmandade Muçulmana» – o que sendo verdade para o jornalista espião também não deixa de o ser para o regime sionista, tendo em conta o caso sírio.

Conhecendo-se a ligação umbilical entre os Estados Unidos e Israel, sobretudo entre Netanyahu e Trump, percebe-se que Mohammed bin Salman poderá não ser tão descartável como parece.

O nó está apertado. E a chantagem de Riade tem conteúdo explosivo. Mais uma vez o Ocidente é vítima do oportunismo da estratégia de dois pesos e duas medidas, da falta de princípios diplomáticos e humanitários.

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A visita foi muito criticada por associações pela paz no Médio Oriente, especialmente a Democracia para o Mundo Árabe Já (DAWN), organização fundada pelo próprio Khashoggi, que em comunicado reconheceu que Biden tinha feito muito bem em prometer o fim da venda de armamento e de responsabilizar os assassinos do jornalista, durante a eleição, mas que «não só a sua administração se recusa a sancionar o príncipe herdeiro – arquitecto do assassinato – como continua a venda de armas, que descreve como sendo "defensivas"».

Em resposta às várias acusações que lhe foram dirigidas, depois do relatório da CIA cujas conclusões eram inequívocas sobre o envolvimento do príncipe herdeiro, Joe Biden afirmou ter «responsabilizado todas as pessoas naquela organização mas não o príncipe, poque nunca os EUA castigaram e ostracizaram um chefe de Estado de um país aliado».

A Arábia Saudita é frequentemente referida como um parceiro estratégico dos EUA, não como aliado, já que não existe qualquer tratado estabelecido entre os dois países, não sendo sequer considerado um Estado aliado pela NATO. Estas declarações implicam uma total reversão daquelas que eram as promessas eleitorais de Joe Biden na última campanha, estabelecendo-o como um presidente de continuidade.

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