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Trump é a chave de parafusos que irá apertar toda a sociedade norte-americana aos interesses dos bilionários, com a particularidade de não se saber até onde as suas idiossincrasias coincidem e se sobrepõem aos interesses gerais.

 O triunfo da morte, Pieter Brueghel, O velho, 1952, Museu do Prado, Madrid
«O triunfo da morte», Pieter Bruegel, o Velho, 1952, Museu do Prado, MadridCréditos

Em linha com a voz de comando internacional da comunicação social, que só no final teve algumas breves nuances, por cá, a campanha de Trump era apresentada como um repositório de broncas tiradas, vigorosas afirmações machistas e de vingança, insidiosas vulgaridades a disparar com mira, sobretudo virada para os emigrantes, as mulheres, as políticas de género, sem nunca ou só muito superficialmente referirem a adulação que fazia às classes médias, médias baixas, às classes trabalhadoras fustigadas pelo custo de vida, pela inflação, afinal, o prato forte da sua campanha praticamente ignorado nas coberturas noticiosas.

O contraponto era uma Kamala Harris, de sorrisos rasgados prontos a desaguar em estridentes gargalhadas com que festejava as estrelas mediáticas que desfilavam beijos e abraços nos púlpitos dos seus comícios, apostada na defesa dos direitos das mulheres, procurando escapar entre os pingos da chuva das políticas económicas do governo Biden, em que foi uma cinzenta vice-presidente, terreno fértil para ser adubado pelos populismos de direita, destacando-se no apoio à guerra na Ucrânia, que Trump promete, não se sabe como, acabar em 24 horas, concorrendo com ele no apoio aos nazi-sionistas de Israel, no genocídio que Israel está a perpetrar, que por vezes procurou disfarçar farisaicamente, piscando de quando em quando o olho aos apoiantes da causa palestina enquanto os removia dos seus comícios e arredores. Em traços grossos eram esses os ecos das acções de campanha nas televisões, rádios e jornais, tanto de jornalistas, os que se sentavam nas redacções locais, os inúteis enviados especiais, os inúmeros comentadores.

O tom geral, até ao dia das eleições, mesmo os que referiam uma batalha acirrada, era favorável a Kamala Harris, o que era apoiado pelas sondagens e alguns gurus com currículos sustentados em anteriores previsões. A grande preocupação eram as bombas lançadas por Trump sobre a guerra em curso na Ucrânia, esquecendo-se que foi ele quem lançou as primeiras sanções à Federação Russa depois da anexação da Crimeia, incidindo sobre o petróleo e o gás, que foi o primeiro a ameaçar o Nord Stream 2, cuja explosão teve por consequência os EUA passarem a ser os principais fornecedores da Europa com preços superiores em cerca de 40%, o que está a atirar a Europa para uma recessão generalizada, anunciada por mais que anémicos crescimentos. Para um suposto amigo de Putin é obra, amigos, amigos, negócios à parte. Na Europa ficam tremulantes com a exigência de financiarem a sua defesa em 2% do PIB, exigência que nem é dele, foi feita por Obama, a que fará no futuro próximo logo se verá, sem olharem para as despesas dos EUA com armamento que foram no seu primeiro mandato as maiores de sempre, pelos perigos de enfraquecer a NATO, o que é muito relativo desde que esteja garantido que a grande fatia das suas compras seja feita ao outro lado do Atlântico. 

Nenhum, mesmo nenhum figurante dessas brigadas apontou que Biden/Kamala deram continuidade e aprofundaram o crescente proteccionismo industrial da primeira era Trump, com sanções sobretudo direccionadas às empresas chinesas, mas também às europeias, proteccionismo energético e agrícola extensível a outras partes do mundo, pilhagem de recursos naturais, sobretudo os relacionados com as novas indústrias, financiamento sem travões às grandes empresas de todos os calibres, apoios ao dólar para financiar os crescentes e impagáveis défices da dívida que não pára de crescer.       

«A grande preocupação eram as bombas lançadas por Trump sobre a guerra em curso na Ucrânia, esquecendo-se que foi ele quem lançou as primeiras sanções à Federação Russa depois da anexação da Crimeia, incidindo sobre o petróleo e o gás, que foi o primeiro a ameaçar o Nord Stream 2, cuja explosão teve por consequência os EUA passarem a ser os principais fornecedores da Europa com preços superiores em cerca de 40%, o que está a atirar a Europa para uma recessão generalizada (..).»

Nenhum, mesmo nenhum figurante dessas brigadas assinalava que o que estava em disputa era a continuação por vias diversas da imposição ao universo das oficiadas regras que subvertem os direitos políticos e sociais da humanidade sujeitando-as a um império em decadência, em respiração assistida por um poderoso aparelho militar e por um dólar que começa a ver a sua ditadura seriamente ameaçada. Nenhum, mesmo nenhum figurante dessas brigadas assinalava que a disputa era entre as duas direitas, a democrata e a republicana, que repartem o poder, o que é bem demonstrado quando a Forbes reporta que 83 bilionários apoiaram Kamala Harris e 53 Donald Trump. Milhares de milhões de dólares em doações que deixaram de ter qualquer controle por uma lei de Clinton.

Aliás, é de sublinhar que tanto Clinton como Obama são os principais responsáveis pelo desmantelamento de toda a legislação Roosevelt do New Deal contra os monopólios, contra as concentrações de capital, de separação da banca comercial da de investimento, etc., etc., desbravando os caminhos abertos pela reaganomics e a TINA (There Is No Alternative) de Thatcher, do menos Estado mais mercado, descer os impostos aos mais ricos, reduzir os serviços públicos, subverter as leis laborais, acabar com políticas que tendam para o pleno emprego, limitar as protecções sociais, privatizar tudo retirando do sector público as empresas estratégicas para que o grande capital comande a política, destruir o mais possível as organizações de classe, sindicatos e partidos de esquerda que não perderam os princípios enquanto outros se renderam nas propostas da terceira via, em que a justiça social e a igualdade de oportunidades seriam determinadas por uma suposta prosperidade produzida pelos mercados e uma outra se limita a querer mudar a vida sem mudar de vida. Tudo isso adquiria formas diversas em cada uma das nações que internacionalmente se submetiam à desregulação dos mercados, às taxas de câmbio flexíveis, à especulação financeira.

«Nenhum, mesmo nenhum figurante dessas brigadas assinalava que a disputa era entre as duas direitas, a democrata e a republicana, que repartem o poder, o que é bem demonstrado quando a Forbes reporta que 83 bilionários apoiaram Kamala Harris e 53 Donald Trump.»

Nenhum, mesmo nenhum figurante dessas brigadas isso mencionava porque são os novos fiéis e bons cães de guarda do sistema dominante. Não mencionavam isso, nem que o complexo militar-industrial-económico-tecnológico, as três grandes potências financeiras, os gigantes de Wall Street, BlackRock, Vanguard e State Street, que agora dominam as decisões económico-financeiras da Casa Branca, repartiram os seus apoios e estavam, pela voz dos seus máximos dirigentes, «a trabalhar com ambas as administrações e conversando com ambos os candidatos», embora anotassem estar bastante mais esperançadas nas promessas do republicano em relação às criptomoedas e a um fortalecimento do dólar. Nenhum, mesmo nenhum figurante dessas brigadas especificou que as famílias norte-americanas das classes trabalhadoras, mesmo das classes médias, estão a ser asfixiadas sem serviços públicos, sem segurança social, com tremendas dificuldades de acesso à saúde e à educação. Que ambos os candidatos, os seus partidos, continuam políticas favoráveis às grandes empresas, políticas económicas em que um mais que débil crescimento é travestido pelas regulares explosões do mercado bolsista, enquanto a precariedade social e económica da esmagadora maioria da população é crescente. Muito menos relatavam que o grande objectivo de sempre, tanto de republicanos como de democratas, é convencer os explorados a acreditar e defender o sistema que os oprime.  

Quando Trump tem uma retumbante vitória, contra as expectativas dos figurantes dessas brigadas, rapidamente baralharam as cartas para explicar os seus enganos. Era vê-los a dar flip-flops para rasurarem sem autocrítica nem remorsos todos os equívocos plantados, o que nada deve surpreender porque para essa gente a verdade é uma mercadoria que vendem nas feiras das pós-verdades.

Tudo era explicado por Kamala não ter sido validada nos espectáculos das primárias, imposta pelas urgências de um Biden em acelerada e pública degenerescência, por ter colocado a tónica da campanha nas lutas fracturantes, insistindo nas políticas woke, atirando para um plano muito recuado os problemas dos deploráveis de Hillary Clinton, do lixo de Biden que enfrentam no quotidiano a especulação dos preços, o custo de vida, as elevadas taxas de crédito para aquisição de bens de consumo, as pequenas questões económicas que pesam no bolso, cegas às conquistas da macroeconomia, celebradas por nobeis e não nobeis economistas. Chegam mesmo a ressuscitar a luta de classes, conceito (?) que durante dezenas de anos, sobretudo desde a queda do Muro de Berlim, consideravam ultrapassado, obsoleto, anacrónico, definitivamente atropelado pelas lutas identitárias, de género, racializadas e demais ramificações de uma frondosa árvore que as novas esquerdas modernaças fertilizavam nos cemitérios onde julgavam que as esquerdas consequentes, as que se recusam a dar por eterno o princípio da dominação capitalista, iriam estacionar. Esquerdas que bajulavam e bajulam enquanto sistematicamente ocultam a outra, a esquerda verdadeiramente empenhada nas lutas dos trabalhadores, dos pensionistas, do povo, das pequenas e médias empresas industriais, agrícolas, comerciais, emaranhadas como estão na salvação do capitalismo.

«Muito menos relatavam que o grande objectivo de sempre, tanto de republicanos como de democratas, é convencer os explorados a acreditar e defender o sistema que os oprime.»

Não deixa de ser curioso esse movimento de rotação circunstancial, superficial, pequeno interregno nas cabalas anteriores que rapidamente serão recuperadas, bem ilustrativas do cinismo, da jacobice estrutural da gente dessas brigadas. Alguns atreveram-se mesmo a referir Marx, que nunca ou muitíssimo poucos leram ou leram na Wikipédia, nos resumos da inteligência artificial, o que produz idiotices descabeladas como a de que Thomas Piketty é o novo Marx ou que Trump, «economicamente, é a direita do proteccionismo, das tarefas alfandegárias e da desglobalização (o que, por cá, o Partido Comunista Português chamaria de política patriótica e de esquerda)», com a intenção de atingir o PCP, bradou alarvemente um demo-liberal que tem assento semanal num jornal dito de referência que lhe permite exibir a sua indigência mental.

O que não percebem é que Trump, em desespero, considera insuficientes as políticas proteccionistas impostas pelas ferramentas dos EUA, FMI, BM e OMC, pelo que quer ampliá-las, torná-las mais efectivas, mais eficazes para enfrentar as novas realidades do rebentamento da bolha do «Fim da História» de Fukuyama, dos desatinos de Hayek, Friedman & Companhia, quando os EUA se convenceram que o fim da União Soviética representava que nenhum país ou grupo de países teria hipóteses de escapar à submissão das regras impostas pelo império norte-americano e seu braço armado, a NATO.

«Alguns atreveram-se mesmo a referir Marx, que nunca ou muitíssimo poucos leram ou leram na Wikipédia, nos resumos da inteligência artificial, o que produz idiotices descabeladas como a de que Thomas Piketty é o novo Marx (...).»

Os escombros do Muro de Berlim cimentaram nas elites norte-americanas a convicção que nenhum país ou grupo de países jamais ousaria enfrentar o poder dos EUA. Estávamos em 1991, quando nos dez países mais ricos pelo PIB figuravam quase todos os países do G7, EUA, Japão, Alemanha, nos três primeiros lugares, Itália, França, nos sexto e sétimo, Reino Unido, no décimo, hoje, em 2024, só estão quatro com os EUA, em segundo lugar, ultrapassados pela China, o Japão e a Alemanha em quinto e sexto, ultrapassados pela Índia, terceiro e Rússia, quarto, no último lugar a França. Actualmente, aos países do G7 correspondem 29,6% do PIB mundial, enquanto que aos cinco países originais dos BRICS (China, Índia, Rússia, Brasil e África do Sul),  apesar das suas enormes diferenças e até contradições, correspondem 32,7%, número que sobe para 36,7% juntando os cinco países que entraram no ano passado para essa organização (Irão, Egipto, EAU, Etiópia e Arábia Saudita). Em 1991, o dólar era o papel-moeda hegemónico, a incontestável moeda nas trocas comerciais, hoje, nas transacções entre os países dos BRICS, nem chega aos 25%. Percebe-se as angústias, o furor do MAGA (Make America Great Again), com as brutais fissuras no controlo unilateral que os EUA exerciam sem concorrência no sistema financeiro internacional e nas estruturas, militares e civis, que emergiram no pós-II Guerra Mundial. As armas que os EUA usavam para dominação mundial estão progressivamente a enfrentar reveses de vária ordem, em irreversível queda.

Foi neste contexto que se realizaram eleições num país em que o combate pela conquista do voto é praticamente corporizado em exclusivo por dois partidos que, por vias diversas mas não muito distintas, debatem variantes dos projectos do grande capital. Uma campanha de enganos, de jogos pouco limpos, de discursos populistas uns mais reaccionários que outros, mas todos reaccionários, que terminou por ter um incontestado vencedor, para surpresa generalizada dos que apostavam noutro ganhador deste combate de wrestling. A questão final, o importante é, como diria Humpty Dumpty na Alice no País das Maravilhas, saber quem de facto acaba a mandar, porque é isso que interessa.

Quem manda é Trump, com Senado, Congresso, Supremo Tribunal domesticados. Trump é a chave de parafusos que irá apertar toda a sociedade norte-americana aos interesses dos bilionários, com a particularidade de não se saber até onde as suas idiossincrasias coincidem e se sobrepõem aos interesses gerais, até onde irão as suas vinganças pessoais. Mas Trump é um autocrata, uma personagem maior dos neo-fascistas, é muito mais do que isso, como escreve Manuel Loff, configura uma viragem histórica a nível internacional. 

«Foi neste contexto que se realizaram eleições num país em que o combate pela conquista do voto é praticamente corporizado em exclusivo por dois partidos que, por vias diversas mas não muito distintas, debatem variantes dos projectos do grande capital.»

Uma viragem à direita e extrema-direita, um retorno a um fascismo adaptado aos nossos tempos, mesmo que assente sensivelmente nos mesmos pilares do original com as suas variantes. Fascismo que começou por entreabrir portas logo após a derrota na guerra. Portas que depois foram abertas, agora escancaradas pelos que desde sempre não combatem uma transformação real do sistema capitalista. Inquietante foi e é a participação de algumas esquerdas nesse devir, em que as ilusões do século passado renascem com outras vestes. Uns com a esperança vã de que é possível civilizá-los, só se alarmando quando ao fecharem portas os descobrem a entrar pelas janelas. Outros porque meteram o socialismo nas gavetas fechando-o a sete chaves ou enveredaram pelas assumidas traições das terceiras vias, outros desbussolando-se nos festivais syrizas, podemos & companhia, outros ainda na autofagia de perder os princípios e começar pelos fins, todos desaguando sempre e inevitavelmente em aceitar os pressupostos das políticas neoliberais nos termos de debates das mais sornas mornices às ebulições frustres, no quadro do brutal simulacro de democracia dominante nos últimos decénios, em que quem governa de facto é o mercado e o capital, enquanto os partidos se limitam a ser as máquinas de angariação de votos para acederem ao poder, ao serviço dos grupos económicos que lhes dão apoio variável. A sequência é a conhecida com o ascenso generalizado das direitas e extremas-direitas que estão nos governos ou são suporte de muitos governos, viragem bem manifesta na Comissão Europeia em que até o falcão Borrell é depenado pela falcoa Kallas, tudo debaixo do guarda-chuva eufemístico das direitas iliberais e direitas liberais para nos distrair do primordial, como se direita e democracia não fosse uma oxímoro. 

O mundo muito mudou, mas as similitudes com as crises dos anos 30/40 são bem visíveis, sem se dever esquecer que a Grande Depressão se resolveu com a II Grande Guerra. Hoje, os ventos da guerra são perigosamente soprados em várias fogueiras pelo capitalismo em crise bem visível nas ofensivas do decadente imperialismo dos EUA, que Trump tal como Kamala tão bem corporizam, que é apoiado pela NATO, UE, G7, uma real ameaça ao mundo, aos povos, aos trabalhadores. Para as esquerdas consequentes dois vectores são fundamentais: um é fazer frente ao fascismo nas suas diversas e múltiplas formas, das mais dissimuladas às mais brutais, outro é lutar sem fadiga pela paz, mesmo contra os que, mascarados de pacifistas, a subvertem. Uma luta difícil e complexa enfrentando um sistema corrupto e corrompido, apoiado por uma gigantesca máquina de desinformação. É difícil mas é a condição necessária para se construir uma real alternativa.

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