Vi recentemente o filme O Mauritano, dirigido por Kevin Macdonald, e protagonizado por Tahar Rahim, Jodie Foster e Benedict Cumberbatch.
O filme retrata os acontecimentos reais em torno de Mohamedou Ould Salahi, um cidadão mauritano preso no seu país, em 2002, e levado para Guantánamo, onde permaneceu 14 anos sem que lhe fosse feita nenhuma acusação.
A prisão de Mohamedou Ould Salahi, realizada com a complacência de diferentes países, no seguimento dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, e a forma como ficou detido 14 anos, neste século, sem prova de envolvimento criminoso ou sequer acusação formal, deveria envergonhar-nos a todos.
O filme, esse não poderia ter sido mais oportuno. Estreou em maio e em julho assistíamos todos ao anúncio da retirada norte-americana do Afeganistão até 31 de agosto.
Mais do que discutir a situação atual do Afeganistão, de como se chegou aqui, o que é real e o que é propaganda, tenho vontade de recordar o início trágico do nosso século.
«Esta é uma imagem possível dos primeiros 20 anos deste século. Violência, guerra, paranoia, atrocidades mediatizadas pelas redes sociais, profunda restrição das liberdades individuais, intensa vigilância eletrónica e censura na internet e fora dela»
Em 2001, aviões são desviados, e dois são conduzidos num atentado suicida contra as torres gémeas do World Trade Center na cidade de Nova Iorque. As imagens foram devastadoras, não tanto pela brutalidade das cenas, mas pelo significado que tinha um ataque desta natureza dentro dos Estados Unidos e numa das suas cidades mais importantes. Lembro-me que nesse dia, ao ver as imagens, perguntei à minha mãe se estaríamos perante o início da terceira guerra mundial. Ninguém achava possível que isto pudesse acontecer e quase toda a gente ficou com medo do que se seguiria. Tratava-se dos Estados Unidos, conhecidos pela sua política internacional errática, agressiva e imprevisível.
O que se seguiu foi a invasão do Afeganistão, a 7 de outubro de 2001, à revelia dos organismos internacionais, em busca de Osama Bin Laden, teoricamente líder da Al Qaeda e, também teoricamente, responsável pelos ataques de 11 de setembro.
Osama Bin Laden viria a morrer, apenas em 2011, no Paquistão. Não teve direito a julgamento e não há certezas quanto ao paradeiro dos seus restos mortais.
A 17 de março de 2003, Durão Barroso, primeiro-ministro de Portugal, recebe na base das Lages George W. Bush, Tony Blair e José Maria Aznar. O encontro ficará para sempre na história portuguesa como a bênção do nosso país a mais uma invasão, desta vez ao Iraque.
O argumento principal à altura, para bem da compreensão dos que nasceram no início do século, era a existência de armas de destruição massiva no Iraque e a sua não «entrega» nem compromisso com o desarmamento por Saddam Hussein, então chefe de governo desse país.
As armas de destruição massiva nunca apareceram e, anos mais tarde, governos e figuras de proa da invasão ao Iraque vieram admitir a sua não existência e o conhecimento prévio à invasão desse facto.
Saddam Hussein foi preso e condenado à morte. Morreu por enforcamento a 30 de dezembro de 2006.
Em 2007, Muammar Kadhafi, líder da Líbia, visitou Portugal na II Cimeira UE-África. As imagens da sua opulenta e majestosa comitiva divertiram os portugueses e ocuparam as conversas de café. Imagens de Sarkozy e Sócrates com Kadhafi correram os jornais.
A Líbia entrou em «guerra civil» em 2011, com forte intervenção, novamente, dos Estados Unidos e da Nato. Muammar Kadhafi viria a ser morto a 20 de outubro desse ano, sem que as circunstâncias da sua morte fossem totalmente esclarecidas. Antes da confirmação do seu falecimento, o mundo pôde ver imagens suas semi-nu e a ser agredido com um objeto no ânus.
«O resultado da guerra nos diferentes países do Médio Oriente começou a ser visto com mais atenção pelos europeus quando começaram a dar à costa, no mediterrâneo, cadáveres de bebés e crianças, a partir de 2015»
2011 ficou marcado pela «primavera árabe», uma série de convulsões lideradas por grupos oposicionistas aos seus governos, com ligações inequívocas aos EUA, e o início de um conjunto de guerras patrocinadas mais uma vez pelos EUA e pela NATO.
Em 2014, EUA e aliados bombardeiam a Síria, alegando atacar posições do Estado Islâmico. O conflito sírio mantém-se até hoje, tendo o seu início sido atribuído à suposta ação de «grupos rebeldes».
No início deste século, os vários patrocínios americanos a grupos rebeldes de outros países e a eclosão de guerras civis, em que os EUA, através da Nato e com a activa cumplicidade da União Europeia, intervêm ativamente, foram a grande marca do país «mais livre» do mundo.
O resultado da guerra nos diferentes países do Médio Oriente começou a ser visto com mais atenção pelos europeus quando começaram a dar à costa, no mediterrâneo, cadáveres de bebés e crianças, a partir de 2015. O drama dos milhões de pessoas capturadas pela guerra no Médio Oriente, e a saga dos longos caminhos percorridos para fugir à violência e à fome, chegou mais perto do Ocidente.
2020 é o ano da pandemia, dos confinamentos por decreto e das restrições às liberdades dos cidadãos. 2021 é o ano das vacinações obrigatórias, dos certificados de vacinação para usufruir da cultura, desporto e lazer.
Em setembro de 2001 o congresso norte-americano aprova uma resolução denominada de Authorization for Use of Military Force (AUMF). Esta resolução, com força de lei, autorizou as forças armadas americanas a usar de todos os meios disponíveis contra os responsáveis dos atentados de 11 de setembro. Em outubro aprovou o Patriot Act, ao abrigo do qual homens como Mohamedou Ould Salahi, cuja prisão o filme O Mauritano retrata, puderam ser presos nos seus países, transportados para Guantánamo e mantidos durante dezenas de anos em confinamento sem acusação ou provas de crime.
Mohamedou Ould Salahi esperou 14 anos para ser libertado. O mundo continua à espera de nova campanha de informação, desta vez sobre a ausência de armas de destruição massiva no Iraque. Esperamos quase 20 anos para podermos ver um filme sobre homens como Mohamedou Ould Salahi e os crimes cometidos pelos EUA na sua pretensa campanha contra o terrorismo. Esperaremos, pelo menos 10 anos para conhecer em pormenor os detalhes das negociatas em torno das vacinas do Covid-19 como tão bem denuncia aqui José Goulão.
Veremos se os argumentos utilizados para a profunda e brutal restrição às liberdades individuais com o argumento de combate ao Covid-19 não se revelarão também fumaça em alguns anos, como essas armas que nunca apareceram no Iraque.
Esta é uma imagem possível dos primeiros 20 anos deste século. Violência, guerra, paranoia, atrocidades mediatizadas pelas redes sociais, profunda restrição das liberdades individuais, intensa vigilância eletrónica e censura na internet e fora dela. Nada aponta para transformações significativas em breve, mas é preciso continuar a lutar e a confiar que a luta dos povos pode garantir a paz, a abundância, a solidariedade, o respeito pelos direitos humanos e a liberdade nos próximos 20 anos e adiante.
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