A meio de um dos dias da semana passada, um amigo de doze anos chegou a casa e afirmou convicto que não queria voltar à escola. Eu engoli em seco e quando espreitei, lá estava um nó-cego para me entreter.
Num dia como outros soa o alarme de fim de recreio e um bando de miúdos regressa à sala de aula. Distribuem-se pelas mesas e preparam os cadernos, as mãos e canetas para um sumário ditado, primeiro dito do que feito.
O professor entra pouco depois e o sumário é ele que o traz – vieram essas linhas já de casa, entrelaçadas com os objectivos, as metas, as médias, as benditas tabelas feitas a regra e esquadro, iguais para todas as crianças de determinada idade - bem sabemos que nos movemos todos a um tempo, partilhamos uma sorte.
E traz o professor aqueles planos, arrancados à sua própria sobrecarga, dividem casa com o seu fardo burocrático, papéis e cartas, avaliações e notas, currículos e pautas – é um milagre que consiga ter tino e tempo para pensar nos sumários e seria um milagre maior se tivesse tempo para traçar um des-sumário, já lá iremos.
Estes miúdos distribuídos pelas mesas têm entre onze e doze anos. Ainda trazem as brincadeiras interrompidas, a novidade por contar, a vontade de um tempo-sem-rédea que não se perde por decreto no caminho do recreio à sala. Mas o professor apressado, de sumário na ponta da língua, amarrou os olhos ao alvoroço do momento e tomou por desrespeito que uma das crianças não lhe cumprisse uma ordem curta e imediata – conclusão, o meu amigo pequeno viu-se a braços com uma falta disciplinar. Uma falta disciplinar equivale desde logo a uma falta injustificada à aula em causa, fora outras possíveis consequências – mas o facto de ter regressado a casa certo de que não queria voltar à escola é de longe a mais importante.
«Ainda trazem as brincadeiras interrompidas, a novidade por contar, a vontade de um tempo-sem-rédea que não se perde por decreto no caminho do recreio à sala.»
Este episódio, assim contado, pode pecar por falta de detalhes e aprofundamento, mas deixa a descoberto um lugar ferido para onde vale a pena olhar.
Se numa primeira investida instintiva tornarmos a atenção para o professor, facilmente tropeçamos na sua sobrecarga. Ao professor que trabalha, tantas vezes, além das 46 horas semanais no cumprimento do imenso trabalho imposto à volta dos papéis, não lhe sobra tempo para estar com as crianças. Estar com as crianças, entenda-se, com tempo para isso, e para daí colher os frutos de partilha e de confiança que assim se constroem. Estar com as crianças de corpo presente e inteiro, disponível para ouvi-las e vê-las, disponível também para aprender a desaparecer-lhes da vista e aconchegar de longe o lugar onde se põem a teste.
Um professor que trabalhe tantas e tão duras horas, exposto ao desafio de olhar a cada um dos seus tantos alunos e de raramente o conseguir, exposto às consequências da falta de vagar para se nutrir, exposto ao barulho, ao espaço da escola onde convivem tantas vidas, tantos desejos e anseios, tanta descoberta e tanto cansaço ao mesmo tempo – não pode ser um professor disponível.
Tornemos então a atenção para as crianças. Elas, que se juntam em bando e lhe ganham a força, elas que também embatem na sua violência potencial. Elas que passam tantas horas do seu dia na escola, elas a quem sentimos não dever explicação alguma sobre isso. Vão para onde as mandamos e mandamo-las para a escola – um lugar de promessa, do sonho feito paredes-meias com os outros, edificando hojes e amanhãs. Mas é mesmo? É isso que lá fazemos? E como é que fazemos?
«Se numa primeira investida instintiva tornarmos a atenção para o professor, facilmente tropeçamos na sua sobrecarga. Ao professor que trabalha, tantas vezes, além das 46 horas semanais no cumprimento do imenso trabalho imposto à volta dos papéis, não lhe sobra tempo para estar com as crianças.»
Se prestarmos atenção, também nelas há o empecilho da falta de tempo. Movem-se, do acordar ao deitar, ao ritmo de acompanhar os adultos nas suas próprias tarefas de existir, o que não é coisa pouca. Quantas vezes se vestem com pressa, se lavam num ápice, correm rua acima e abaixo para não perder o alarme de entrada na sala? Quanto tempo têm para brincar? Porque será que lhes separamos o tempo de brincar do tempo de aprender?
Claro que a escola não se faz apenas de crianças e professores. Sobre os restantes adultos que a compõem, as inquietações e as perguntas não são muito diferentes.
Eu, que trabalho a brincar durante todo o dia, quantas vezes me confronto com os colegas que «a bem da civilidade futura» decidem que as crianças não podem procurar com o corpo inteiro os brinquedos dentro do baú? «Dentro do baú não se entra, não são selvagens», «ali não se brinca», «acolá não se descobre». Tudo nos parece a cada passo uma falta de respeito, pior, uma falta de respeito que nos é dirigida em particular, como se fosse suposto que uma criança com quem não tivemos tempo de construir uma relação de confiança, confiasse em nós, nas nossas decisões e julgamentos, nos limites que desenhamos com os lápis que trazemos.
Quanto nos esquecemos uns dos outros. Usamos o espaço da escola como mais um onde construímos sobrevivência. Num mundo tão assim o tempo inteiro, não digo que não possa ser útil. Mas pergunto-me porque andamos tão preocupados com calendários e formalidades, e tão pouco em perguntar uns aos outros: como correu o teu dia?
E se ousássemos, todos nós, os que compomos as escolas com o nosso tecido humano, fazer perguntas sobre o tempo? E se de cada resposta fizéssemos nova pergunta? E assim sucessivamente? E se assim desfizéssemos sumários, desarrumássemos espaços, sossegássemos alarmes?
De pequenino é que se torce o pepino. Mas, e se não o torcêssemos? O que acontecia à nossa turma, à nossa escola, ao nosso bairro, ao nosso mundo?
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