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Renova(r) o interesse público

Há princípios que movem a sociedade que nem reciclados ganham cor. E hoje falamos de papel, mas amanhã poderemos falar de comida ou betão, que estes valores também lá estão.

Nascente do rio Almonda, no concelho de Torres Novas
CréditosJorge E. / Tripadvisor

Em pleno séc. XXI, sobre a nascente do rio Almonda, concelho de Torres Novas, encontra-se assente um edifício de uma conhecida fábrica de papel higiénico, muito trendy, devido às várias cores que disponibilizam no seu catálogo de rolos. A actividade no interior desse edifício é bastante reduzida, visto que o espaço da acção principal decorre noutros edifícios. Mas como não lhes bastava a casa própria, montaram cerca em torno do jardim e do repuxo alheios, impedindo a vizinhança de lá pôr os pés – e deram a esse espaço o nome de «santuário» em relação genitiva com o seu substantivo próprio: Renova. Conclui o senso comum que o apego ao edifício tem como causa a nascente, ou melhor a água que de lá brota, que uma indústria desse tipo necessita em grandes quantidades para estar em funcionamento. Quando as contas da água se resumem as uns míseros milhares de euros (5 mil), nada leva a crer que sejam razões sentimentaloides do afeiçoamento a perpetuar a posse, nem a impedir o acesso público ao refresco hídrico. Se a inveja, e conseguinte engradeamento, não se percebe e indigna; muito menos se compreende a conivência de um Executivo Municipal com esta tomada em mãos da vedação privada de algo que é público. O interesse do Público não pode ser decidido por uma administração duma empresa privada – entenda-se a contradição implícita. Ainda voltando às questões coloridas que dão ares de graça à marca, destaque-se a aplicação dum sistema de diferenciação colorida de trabalhadores subcontratados, consoante o seu sector; assim, podem ser controlados mais facilmente; se o capataz não for daltónico, ai do verde que falar com o vermelho, e coitado do azul que aparecer no espaço dos amarelos.

Visto que o caudal é público e tendo em conta o fluxo financeiro da Renova, não apenas ao Município de Torres Novas esta questão diz respeito, apesar do progressivo agravamento da municipalização de várias responsabilidades.

No dia 13 de Junho de 2022, foi a Assembleia Municipal, o pedido de isenção de uma Taxa Municipal de Urbanização, no valor de 286 mil euros, que diz respeito à emissão de uma certidão de Plano de Pormenor, no âmbito de uma ampliação do edifício onde se passa a quase totalidade da acção colorida desta indústria (o alargamento dos contornos que delineiam o edifício da nascente não foi sujeito a qualquer escrutínio oficial). O RMUE (Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação) concede a possibilidade da isenção desse pagamento desde que a Assembleia Municipal reconheça «relevante interesse público social ou económico e com relevante impacte no desenvolvimento local e regional». Ou seja, este afluente vem desaguar à questão de se este empreendimento se trata de «interesse público». O historial da empresa, e modus operandi, levam a crer que não, por aquilo que dissemos e por tantas outras águas passadas que continuam a mover moinhos e remoinhos nos âmagos das populações. O interesse de uma empresa que açambarca uma nascente de um rio não é público certamente; nada leva a crer que a marca de papel higiénico colorido pense no interesse da região e da localidade, agora nesta questão. A localidade e a região são as pessoas que lá vivem, essas são o público cujo interesse deve ser respeitado1. E o interesse económico do alargamento de um edifício é somente a maximização do lucro da própria empresa. Interesse dos trabalhadores não é certamente, tendo em conta que, cada vez mais, os trabalhadores subcontratados, sem perspectiva de desenvolvimento de carreira, tomam o lugar dos trabalhadores outrora contratados pela própria empresa. Também a empregabilidade tem de ser vista de forma abrangente, não apenas através dum prisma numérico.

Todavia, é ao argumento da «criação de postos de trabalho» que os defensores da Renova se prendem com garras e dentes, para atribuir à empresa em geral, e a este investimento alargador em particular, a determinação de interesse público. É este o argumento principal que capta as massas para a defesa do neoliberalismo económico-financeiro, mesmo que na prática nunca ganhem nada com esse modo de funcionar do sistema, e de dia para dia percam cada vez mais. A contratação de trabalhadores é vista por estes crentes como uma acção benemérita, altruísta, praticada pelo angelical patrão que, sem receber nada em troca, permite que os vários indivíduos trabalhem para ganharem os meios do seu sustento2. Parece que toda a gente se esqueceu que uma indústria para funcionar precisa de trabalhadores, e que estes são a parte fundamental do lucro do patrão. Quanto mais degradantes forem as condições de trabalho, maior é a percentagem de lucro; quanto mais instável for a posição dos empregados, maior controlo se exerce sobre os mesmos, impossibilitando organizações de grupos que possam agir estrategicamente para reivindicar melhores condições; quanto mais periclitante estiver a posição de um trabalhador numa empresa, mais individualista este será, porque necessita de se agarrar ao modo de produção do seu sustento, alienado da possibilidade de transformação colectiva. Para o capitalista, estas são algumas das vantagens do trabalho subcontratado, precário e volátil. Abrem-se postos de trabalho, mas em condições desumanas, porque é humana a perspectiva de futuro que estes empregos não oferecem. A instabilidade e o medo não são de interesse público.

Agora, por uns instantes, abandonarei o plural majestático e a formalidade que isso acarreta. Ao terminar a entrega da declaração do IRS, apareceu-me uma mensagem da Autoridade Tributária e Aduaneira, quase em tom de palavras de ordem, dizendo algo como «pagar impostos é contribuir para melhorar o país», acompanhado de um gráfico circular a dizer para onde vão os nossos impostos – não me lembro ao certo, e não consegui verificar a exactidão da frase. Ora, os impostos que eu pago são certamente do interesse público, contribuem para comprar algum clipe para agrupar as folhas num departamento qualquer do Estado. Quantos clipes – e até pastas! – , essas centenas de milhares de euros não comprariam impedindo os papeis de esvoaçarem e saírem dos sítios onde devem estar? Vá, sejamos honestos, falemos sem floreados, o que são umas centenas de milhares de euros para uma empresa como a Renova? Nada. Mas o epiteto de «interesse público», dado a um investimento, possibilita a entrada de mais milhões de euros em fundos de naturezas várias com nomes pomposos e europeus – e isso é aquilo que única e exclusivamente lhes interessa.

A pedra neste charco: houve a isenção da taxa, e lá lhes foi rotulado o «interesse público», apenas com os votos contra da CDU e do BE. Decididamente, é necessário renovar aquilo que se entende por interesse público«, mais não seja porque o que poderia satisfazer parcamente o interesse público seria o pagamento da dita taxa. Em termos legais, provavelmente, já que essa não é a especialidade que move esta reflexão, é possível que a empresa até consiga cumprir esse estatuto. Porém, no âmbito ético, que está bastante oculto na tralha burocrática do sistema, a importância económica da indústria chega ao público de forma muito poluída (como o rio). No sistema capitalista em que vivemos, o interesse público restringe-se a uma relação quantitativa medida em cifrões. É urgente começar a pensar os benefícios dos investimentos económicos em termos qualitativos, visando as consequências benéficas na vida das populações. As sevícias laborais devem ser tidas em conta, mas para serem eliminadas. Os impactos positivos dos investimentos desta envergadura traduzem-se no pagamentos dos impostos, das contas da água e da luz, na proporção dos volumes de negócio e dos consumos de recursos. A apropriação ilegal – embora com conivências legais – de um recurso natural não reflecte preocupação ambiental alguma.

Há princípios que movem a sociedade que nem reciclados ganham cor. E hoje falamos de papel, mas amanhã poderemos falar de comida ou betão, que estes valores também lá estão.


Júlio F. R. Costa é licenciado em Filosofia e mestre em Mercados da Arte.

  • 1. Injusto seria não mencionar os movimentos populacionais de contestação contra esta decisão, ou melhor imposição, da Renova em cercar uma nascente dum rio e chamar-lhe de seu santuário. Como estes empenhos não cabem aqui na sua totalidade, deixo um vídeo que resume a questão.
  • 2. «Haveria o operário, apenas com os seus próprios membros, de criar no ar produtos de trabalho, de produzir mercadorias? Não lhe deu ele [o capitalista] a matéria com que e em que aquele somente pode corporizar o seu trabalho? Ora, dado que a maior parte da sociedade se compõe desses tais que nada têm, não prestou ele à sociedade um serviço incomensurável, com os seus meios de produção, o seu algodão e o seu fuso, e ao próprio operário a quem ele, ainda para mais, proveu de meios de vida? E não deverá ele cobrar este serviço? Não lhe terá, porém, o operário prestado o contra-serviço de transformar algodão e fuso em fio?» Karl Marx, O Capital, Crítica da Economia Política, Primeiro Volume, Tomo I, Edições Progresso/Editorial «Avante!», Moscovo/Lisboa, 1990, p. 221.

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