A autora dos livros Sintomas Mórbidos: A Encruzilhada da Esquerda Brasileira e Se Quiser Mudar o Mundo: Um guia político para quem se importa confessa que a sua tese favorita de Marx sobre Feuerbach é aquela que explica que se é verdade que os seres humanos são fruto das circunstâncias em que vivem e da sua educação, são também esses seres humanos que mudam as suas circunstâncias através da práxis revolucionária, que lhes permite simultaneamente entender a sua realidade e transformá-la. No entanto, devido à prioridade que dá à ideia que é necessário mudar o mundo, para além de o entender, adoptou Tese Onze, para nome do seu programa no Youtube, com centenas de milhares de seguidores.
Só saindo deste ciclo politicamente neurótico e retomando em força, e com urgência, as batalhas democráticas que continuam por fazer, é que conseguiremos apreender o neofascismo em toda a sua natureza. O fascismo nasceu como um novo produto ideológico das direitas do século XX, com uma origem e uma génese específicas na Itália do pós-I Guerra Mundial. Conquistou, contudo, o seu lugar na História justamente porque ganhou dimensão internacional, fascizando o corpus doutrinal de outras direitas em muitos contextos nacionais diferentes.1 Produtos de um processo degenerativo do sistema liberal, em cuja história se inscreve, o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão, considerados justamente prototípicos do fenómeno à escala internacional, ascendem ao poder cumprindo as normas legais de um liberalismo autoritário2 no âmbito de uma transição autoritária (do sistema liberal para a ditadura fascista). «Produtos de um processo degenerativo do sistema liberal, em cuja história se inscreve, o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão, considerados justamente prototípicos do fenómeno à escala internacional, ascendem ao poder cumprindo as normas legais de um liberalismo autoritário no âmbito de uma transição autoritária (do sistema liberal para a ditadura fascista)» Nos estudos do fascismo desenvolveram-se, entre muitos, dois debates clássicos que permanecem muito úteis para discutimos a extrema-direita que dele é herdeira. Em primeiro lugar, a distinção entre fascismo-movimento e fascismo-regime, isto é, entre os períodos e os contextos em que ele (ainda) não se constituiu como regime e ideologia de Estado e os que, sobretudo depois da nazificação da Alemanha a partir de 1933, tal acontece um pouco por toda a Europa; nos nossos dias, isto significa estudar a diferença entre as direitas radicais na oposição e no poder. Em segundo lugar, a aplicabilidade do conceito a uma grande variedade de casos nacionais – fascista foi apenas o partido e o regime de Mussolini?, ou devem também ser considerados como tal o nazismo, o franquismo, o salazarismo, o regime ustasha na Croácia, entre muitos outros? –, e contextos históricos – o fascismo teve a sua época, como lhe chamou Thomas Mann, e esta terminou definitivamente com a derrota militar nazi de 1945?, ou, sob muito variadas formas, foram e são neofascistas ou pós-fascistas movimentos, partidos e formas de governo que se desenvolveram/impuseram uma vez passada a época do fascismo, desde as extremas-direitas europeias mais clássicas (francesa, italiana, alemã), às formas ideológicas e orgânicas presentes em ditaduras reacionárias dos últimos 75 anos (sobretudo as latinoamericanas e as duas ibéricas nas suas versões adaptadas a um mundo de que havia desaparecido já qualquer esperança de uma Nova Ordem fascista), até às direitas radicais (demasiado) frequentemente descritas como populistas do século XXI? Diferenças de contexto, comunidade ideológica e perceção de continuidades são questões essenciais tanto para analisar as experiências políticas da época do fascismo (1922-45), como para discutir as direitas extremas dos nossos dias. A posição maioritária, e que vem ganhando contornos hegemónicos, é a de sublinhar a diferença entre as novas extremas-direitas, que julgamos conhecer melhor porque com elas vivemos, e aquelas que há cem anos cunharam o nome de fascismo. Antes de mais, esta parece-me a atitude intelectual mais fácil de assumir: em contextos inegavelmente diferentes, os objetos que neles encontramos parecem-nos também eles diferentes, pelo que a perspetiva com que, à partida, os abordamos é a da verificação da diferença face a outros objetos que já conhecemos, antes de mais por não termos sido contemporâneos dos objetos do passado, que nos são inevitavelmente mais estrangeiros (como lhes chama David Lowenthal) que os do presente. Dizia Eric Hobsbawm que «a maioria dos seres humanos opera como os historiadores: só retrospetivamente conseguem reconhecer a natureza da sua experiência.»3 É evidentemente difícil conseguir dar um nome adequado ao que vivemos enquanto o vivemos. Por outro lado, muita da discussão que hoje fazemos sobre a natureza da extrema-direita é a mesma que se vem fazendo há décadas sobre a natureza dos regimes autoritários da época do fascismo, e resulta, afinal, de saber-se que grau de flexibilidade é admissível no uso das categorias políticas. Por norma, aqueles que negam que ditaduras de direita do período de entre guerras, como a salazarista, tenham sido versões nacionais de um fascismo como fenómeno internacional, não se perguntam se são hoje igualmente democráticos regimes tão diferentes como o indiano ou o francês, e se já o era o sistema político norteamericano em 1776 ou em 1865. A pergunta nada tem de retórico uma vez que a Ciência Política mainstream tende a dar-lhe uma resposta positiva em todos os casos, ao mesmo tempo que entende que eram tão comunistas e totalitários (para usar um vocabulário hegemónico que não é o meu) o regime soviético em qualquer dos seus ciclos históricos, o dos Khmeres Vermelhos ou a Revolução Cubana, entre muitos outros exemplos. Porque se aplica, então, um grau tão amplo de flexibilidade para falar de democracia ou de comunismo e uma perspetiva tão restritiva para falar de fascismo? A resposta é simples: porque se aceita quase sempre trabalhar com conceitos genéricos de democracia e de comunismo e, pelo contrário, se recusa fazer o mesmo com o fascismo. «se a chegada da extrema-direita ao poder significa «mudar o sistema a partir de dentro», deve presumir-se que a mudança deixa mais ou menos intacta a natureza democrática do poder? Deixou Orbán intacta a democracia? E Bolsonaro, ou Duterte? Se não se trata de «mudar tudo», como designar, então, as alterações que todos eles, chegados ao poder por via constitucional exatamente como Hitler e Mussolini, vão introduzindo?» Para o que aqui nos ocupa, a questão é saber se, e quais, direitas extremas dos nossos dias são neofascistas, isto é, se são a versão do fascismo adaptada às condições específicas (mas muito diferentes entre si) de sociedades do século XXI marcadas pelo agravamento generalizado da desigualdade social e da perda de representatividade dos sistemas políticos. Nesta nova fase da globalização capitalista que coincide com o triunfo do neoliberalismo desde os anos 1980, são a retórica ocidentalista e o racismo culturalista dos nossos dias, empapados do Choque de Civilizações de Huntington, herdeiros do discurso da decadência do Ocidente de Spengler4 dos anos 20 que enformou a mundivisão fascista? A normalização do discurso xenófobo e racista, agravada com a chamada crise dos refugiados da última década (especialmente dos anos 2015-16), partilha a mesma mundivisão do fascismo na sua época? Há ou não continuidade entre o racismo politicamente organizado da primeira metade do século passado e o dos nossos dias, que alimenta movimentos políticos que, nos países mais ricos do Ocidente, se estruturam especificamente em torno do discurso xenófobo (contra o imigrante ou o refugiado, contra as minorias muçulmanas e ciganas), disfarçado de culturalismo determinista (hoje a «inassimilabilidade» do muçulmano ou do cigano, antes a do judeu)? Não pretendo fazer aqui uma discussão detalhada em torno da terminologia mais adequada para categorizar a extrema-direita que vem avançando por todo o Ocidente, não desde o Brexit ou a eleição de Trump, em 2016, mas desde pelo menos há 25 anos, desde que a direita radical começou o assalto ao poder nos países pós-comunistas, na Europa ocidental, a começar pela Itália, com a chegada de Berlusconi ao poder (1994) aliado (como por toda a parte acontece com a direita clássica) com a extrema-direita, ou nos EUA, quando a radicalização à direita do Partido Republicano levou ao poder George W. Bush (2000). Limito-me a contestar a validade do uso (em geral, puramente confrontacional) da categoria de populismo, mesmo que adjetivado como sendo de extrema-direita, expressão que, mimetizando o uso vulgar do totalitarismo, presume que existem tantos populismos quantos discursos antissistémicos se fizerem à esquerda e à direita; bem como a aplicabilidade do conceito de pós-fascismo para sob a sua capa se reunirem movimentos que «já não são fascistas [porque] surgiram depois da consumação da sequência histórica dos fascismos clássicos», dos quais «se emanciparam, ainda que na maioria dos casos o conservem como matriz». Impressiona-me que um historiador como Enzo Traverso, apesar de reconhecer que «Mussolini e Hitler chegaram ao poder por via legal», aceite que «a vontade [deles] de derrubar o Estado de Direito e apagar a democracia estava fora de discussão» permite marcar uma diferença essencial com a atitude da extrema-direita dos nossos dias, que, segundo Traverso, «quer transformar o sistema a partir de dentro, enquanto o fascismo clássico queria mudar tudo»5. Neste âmbito, se a chegada da extrema-direita ao poder significa «mudar o sistema a partir de dentro», deve presumir-se que a mudança deixa mais ou menos intacta a natureza democrática do poder? Deixou Orbán intacta a democracia? E Bolsonaro, ou Duterte? Se não se trata de «mudar tudo», como designar, então, as alterações que todos eles, chegados ao poder por via constitucional exatamente como Hitler e Mussolini, vão introduzindo? Mesmo não afirmando querer pôr em causa a natureza liberaldemocrática dos regimes, a extrema-direita no poder (e fora dele) ataca liberdades e direitos individuais e coletivos, coloniza o poder judicial, as forças de segurança e militares, propõe a ilegalização de forças políticas, a perseguição de organizações/movimentos associados a minorias étnicas, e assume práticas ultrassecuritárias contra inimigos internos (as minorias, os migrantes) e externos. Chamar, como está em voga, iliberal (como Fareed Zakaria) a este processo político parece-me muito menos adequado que nele reconhecer o liberalismo autoritário típico dos estados em transição para o autoritarismo. Um regime em transição muda inevitavelmente de natureza ao fim de algumas etapas; uma democracia em transição autoritária deixará sempre de ser democrática a menos que o processo seja revertido. Não creio ser razoável definir o ritmo da transição como indicador da natureza diferente do horizonte final da transição; a democratização social, como processo transicional que também é, produziu resultados muito diferentes e muito incompletos em países aos quais, em geral, vejo pouca gente recusar chamar democracias. Da mesma forma, a tese que deduz que as diferenças estruturais dos contextos históricos do fascismo na sua época (1922-45) e aquele em que hoje se expande a extrema-direita são obstáculo suficiente para não a podermos considerar neofascista, deveria para ser aceitável obrigar quem a sustenta a recusar falar hoje de democracia em contextos tão radicalmente diferentes do da Atenas do século V a.C.; ou, por comparação com o contexto bolchevique de 1917-18, chamar comunista aos partidos que, em estados liberaldemocráticos, disputam eleições e chegam a partilhar o poder sem propriamente subverter «por dentro»... E chegamos ao antifascismo. Sem se assumir haver uma continuidade entre as direitas extremas de há cem anos (fascistas) e as de hoje (neofascistas), não será viável estratégia alguma de reativação do antifascismo como cultura política e frente social de resistência ao ataque às três grandes conquistas de 1945: a construção da democracia social e a gradual (ainda que, uma vez mais, sempre incompleta) emancipação das classes trabalhadoras; a fundação da democracia sobre a rejeição radical das mundivisões racistas que conduziram a Auschwitz, da dominação colonial e da opressão de todas as minorias étnicas; a emancipação das mulheres de todas as culturas e de todos os continentes, de metade da Humanidade, motor das batalhas por outras emancipações, bem mais tardias, das subjetividades oprimidas definidas em torno da identidade sexual. Sem constituir em si mesmo um movimento político e social próprio, o antifascismo foi uma plataforma de resistência à expansão do fascismo e à subsequente dominação por ele imposta. O que, contudo, marcou a sua identidade na história foi a tomada de consciência de que, quer na Guerra de Espanha (1936-39), quer quando se começou a percecionar coletivamente a possibilidade efetiva de derrotar a Nova Ordem fascista, a luta antifascista era irreversivelmente uma luta pela reconstrução da democracia muito para lá dos estritos objetivos de liberais imperialistas como Churchill, De Gaulle ou Roosevelt, que lutaram contra o expansionismo de Hitler, Mussolini e Tojo mas que não pretendiam nem descolonizar, nem democratizar mais do que a reposição reformada dos termos estruturais do liberalismo oligárquico de 1939.6 «Fornecendo uma explicação convincente para a ascensão e a derrota do nazifascismo, hegemónica entre 1945 e os anos 70, o antifascismo e a memória coletiva por ele embebida sofreram um ataque generalizado com o avanço do neoliberalismo e a implosão do mundo soviético, justamente porque podiam reivindicar ter conseguido derrotar o fascismo como experiência histórica limite na história da violência como prática política, responsável pelo conflito mais mortífero e o modelo de genocídio mais eficaz e industrializado da história.» Fornecendo uma explicação convincente para a ascensão e a derrota do nazifascismo, hegemónica entre 1945 e os anos 70, o antifascismo e a memória coletiva por ele embebida sofreram um ataque generalizado com o avanço do neoliberalismo e a implosão do mundo soviético, justamente porque podiam reivindicar ter conseguido derrotar o fascismo como experiência histórica limite na história da violência como prática política, responsável pelo conflito mais mortífero e o modelo de genocídio mais eficaz e industrializado da história. Como aliança historicamente contingente entre as duas grande famílias ideológicas que, por motivos diferentes, se reviam na Revolução Francesa (o liberalismo e o socialismo), e de uma terceira que o fazia relativamente à Revolução Russa (o comunismo), a aliança antifascista das Nações Unidas (a designação que os aliados de 1941 se deram a si próprios) dividiu-se mal a ameaça fascista foi militarmente eliminada, em 1945, e em torno das mesmas questões que tinha dividido as suas componentes no passado (a dominação burguesa, a natureza intrínseca da desigualdade capitalista, a resistência liberal à democratização social, o imperialismo). É ainda nesse ciclo que nos encontramos: forças políticas muito diferentes podem partilhar (ou melhor, ter partilhado) uma mesma cultura antifascista, mas legitimamente não partilham os mesmos modelos de sociedade. Instrumento central para a defesa de um conjunto articulado de pressupostos democráticos sem os quais se vive automaticamente em ditadura socialmente reacionária, o antifascismo-movimento só se reativará quando os democratas percecionarem coletivamente o perigo, a ameaça (neo)fascista. Se continuarem convencidos que Le Pen, Salvini, Abascal e Ventura, como antes Trump ou Bolsonaro, não passam de figuras efémeras de um ressentimento punitivo e irracional com os quais se pode coexistir porque não querem, ou não conseguem, destruir os regimes liberaldemocráticos dentro dos quais operam, a luta política continuará a ser feita sem recurso ao frentismo antifascista – o mesmo que demorou a mobilizar, uma quinzena de anos passados sobre a ascensão de Mussolini ao poder. O novo ciclo histórico em que entrámos, de neuropolítica7, ansiedade coletiva, recessão económica sem precedentes e securitização global que a gestão política da pandemia tem vindo a acentuar, parece, aliás, ter tudo para facilitar transições autoritárias e dificultar a mobilização antifascista. Só saindo deste ciclo politicamente neurótico e retomando em força, e com urgência, as batalhas democráticas que continuam por fazer, é que conseguiremos apreender o neofascismo em toda a sua natureza. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
(Neo)fascismo, antifascismo e transição autoritária
Continuidades ou diferença?
Para que serve dar um nome ao que vivemos?
Antifascismo sem (neo)fascismo?
Contribui para uma boa ideia
A entrevista foi feita depois de Sabrina Fernandes ter participado, no Museu do Aljube, numa palestra com o título: «A alternativa internacionalista diante da crise autoritária».
Já a entrevista versou sobre uma das grandes preocupações de Sabrina: como ultrapassar a crise da esquerda que, para a autora, é uma crise de práxis que convive com a fragmentação crescente da esquerda. No fundo é preciso conseguir coordenar esforços de esquerdas plurais sem com isso aceitar qualquer oportunismo que se proponha uma mera vivência num capitalismo que se afirma sem fim à vista.
Falou na sua conferência de autoritarismo, que parece um primo do totalitarismo. Acha que é um conceito que pode ser colocado dentro do quadro da luta de classes?
O conceito de totalitarismo é algo que remete ao período da guerra fria, a uma ideia que há regimes que são fechados e que são autoritários que precisam de ser combatidos. Acaba por ser um conceito enviesado que esconde a presença do autoritarismo dentro de regimes liberais. É, por isso, um conceito limitado, e é mais vantajoso a gente trabalhar com a ideia de autoritarismo, justamente que revela que ele pode existir com a realização de uma vontade ou sanha autoritária num regime ditatorial, ou acabando a sustentar outras políticas que são normalizadas e chamadas de democráticas. Como por exemplo numa sociedade como os Estados Unidos da América, que se pretende democrática mas que promove a guerra em todo o mundo e encarcera grande parte dos seus próprios cidadãos negros.
No fundo, usando as ideias de Carl Schmitt, as sociedades ditas democráticas sustentam-se porque nos seus limites existe a possibilidade de serem autoritárias.
O que se vê nesse modelo no centro do capitalismo é que, à conta do poder económico, têm essa possibilidade de parecer mais democrático para dentro, enquanto vão fazendo muitos estragos para fora.
Há uma espécie de deriva autoritária com o crescimento de um populismo de extrema-direita em muitos países do mundo. Há um historiador americano, Thomas Frank, que provocatoriamente afirma que há muitos pobres que votam na direita e muitos ricos que votam na esquerda. Não há, de certa maneira, uma espécie de abandono das classes populares pela esquerda?
Os ricos não votam na esquerda, é um ponto assente. Podemos falar de pessoas que têm um certo nível de estabilidade financeira que geralmente garante acesso à educação, em economias mais estabelecidas, que fazem com que tenham um contacto directo com processos de politização. Mas os ricos, de verdade, quando se fala do grande capital e das elites burguesas, que na realidade controlam os bastidores e tendem a favorecer regimes mais neoliberais. Inclusive, quando apoiam alguns sectores que se declaram de esquerda, fazem-no desde que possam preservar políticas capitalistas que não ousem contrariar os mercados.
O outro ponto, é que se pode falar de uma falência da táctica de esquerda, nas últimas décadas. Principalmente, se se considerar que após a queda do muro de Berlim não foi só Francis Fukuyama a falar do fim da história. Parte da esquerda comprou essa narrativa: «tentamos, não conseguimos. Logo é preciso passar adiante e tentar humanizar as coisas dentro desde sistema». Aí a gente tem o embate daquela esquerda que normalizou o sistema actual. E outras esquerdas que começaram a reimaginar coisas, falando que «um outro mundo é possível», no movimento dos Fóruns Sociais. Mas não basta dizer que outro mundo é possível, a sociedade precisa de saber que tipo de mundo é possível. Esta alternativa é muito mais difícil de definir e construir quando a própria esquerda não se consegue entender acerca de alguns aspectos centrais.
O problema não é o próprio uso da palavra esquerda? No saco da «esquerda» há quem aceite o capitalismo e quem não o aceite. Porque ao utilizar esse conceito, mais do que sublinhar a ideia da necessidade de uma luta de classes, permite a confusão com sectores que pregam uma conciliação de classes?
Tem 31 anos, é historiador, marxista, youtuber, professor de História, comunicador popular, escritor, militante do Partido Comunista Brasileiro, e conhecido pelo seu canal no YouTube denominado Jones Manoel. Nascido numa favela do Recife, chegou ao marxismo-leninismo a partir da vida e do rap. A conversa com o AbrilAbril começa com a questão do Estado e acaba nas redes sociais. Fez 150 anos que a Comuna de Paris foi derrotada depois da Semana Sangrenta. Há alguma razão comum que justifique esta derrota e todos os outros insucessos nas revoluções feitas pelos explorados? A Comuna Paris surge numa situação muito adversa, num contexto da guerra Franco-Prussiana em que o governo da França assumiu uma postura de traição nacional, entregou o país à Prússia e os operários de Paris resolveram tomar o poder. Marx tinha alertado, antes da Comuna, que seria um suicídio os operários tentarem tomar o poder. Quando eles o fizeram, Marx analisou objectivamente as razões que levaram à sua derrota. A esquerda ocidental tem um fetiche pela derrota e pelo martírio. Ela adora quem perdeu. Talvez porque nunca ganharam. A ideologia dominante permite que a gente tenha referências, mas desde que elas sejam referências de martírio e não de exercício de poder. Para sectores da burguesia e dos intelectuais democráticos, uma figura como Che Guevara é muito mais saborosa que uma figura como Fidel Castro. Che Guevara morre enquanto exemplo de martírio e Fidel Castro permanece enquanto líder e estadista do processo revolucionário. Há gente que gosta muito de assassinados, como Che Guevara, Rosa Luxemburgo e Gramsci, esvaziando-os da perspectiva comunista e apagando o que defendiam. Paralelamente, dirigentes revolucionários como Fidel Castro, Ho Chi Minh, Mao Ze Dong e Kim Il-Sung são quase sempre odiados, ostracizados e chamados de ditadores que trairam a revolução em algum lugar da história. «Não se deve perder as oportunidades de golpear o inimigo de classe o mais profundamente possível, para melhorar as nossas condições no enfrentamento.» Mas voltando à Comuna, acho muito importante vermos o que são os ensinamentos da derrota. Marx e Engels apontam duas coisas: primeiro, os communards não tomaram o Banco da França, elemento fundamental que os colocaria numa situação de maior poder para pressionar e negociar com a burguesia francesa; segundo, usaram muito pouco a capacidade de repressão e de eliminação do inimigo de classe. Isso está muito bem documentado num texto de Engels sobre a autoridade. O ensinamento importante que a Comuna deixa é que a burguesia não tem ética, não tem pudor, e trata a luta de classes como uma guerra de classes, o que significa que elimina fisicamente o inimigo. Na esquerda, a gente pensa muito pouco em termos estratégicos e subordinamos a estratégia à ética. Não se deve perder as oportunidades de golpear o inimigo de classe o mais profundamente possível, para melhorar as nossas condições no enfrentamento. Caso contrário, vamos estar a chorar derrotas e a orgulhar-nos da pureza. Lembro quando aconteceu o golpe de Estado na Bolívia, em 2019, o filósofo Slavoj Zizek lançou um texto em que se dizia orgulhoso pelo governo boliviano não ter sido um governo autoritário, e que mesmo quando veio o golpe de Estado não reprimiu os golpistas. Esse tipo de pensamento é tudo menos marxista. Não pode haver a acusação inversa? No sentido de que a necessidade de defender a revolução exige muitas vezes uma permanente militarização dos regimes socialistas e a necessidade de usar meios policiais, deixando a certa altura de existir o socialismo, dado que se esvazia a participação popular e dos trabalhadores? Para mim, o maior problema das experiências socialistas no século XX foi não conseguir uma dialéctica que permitisse a defesa interna do processo revolucionário contra a pressão imperialista e, ao mesmo tempo, conseguir ampliar e fortalecer a democracia socialista. A União Soviética é um belo exemplo de que a defesa dos ataques do imperialismo acabou por conduzir à legitimação de um processo progressivo de esvaziamento da democracia socialista. Levando ao enfraquecimento da base de consenso do projecto socialista ao ponto de ser destruído. Já no caso de Cuba, vai-se conseguindo defender do imperialismo, ao mesmo tempo que conserva uma vitalidade e um nível de democracia socialista muito interessante. Isto é um problema real, considerando que os EUA têm mais de 800 bases espalhadas pelo mundo, o maior orçamento militar, o maior aparelho de espionagem, sabotagem e guerra suja do mundo, que é a CIA. Isso sem contar que estamos na era das redes sociais que permite um nível de vigilância e controlo nunca antes possível. A defesa da revolução pode acabar por criar processos de burocratização, mas isso não nos deve levar a subestimar a necessidade das revoluções se defenderem. A visão de Lénine da necessidade do povo em armas continua actual. É importante socializar ao máximo a defesa. Mas a questão é que, na era dos mísseis intercontinentais, o povo em armas não garante a defesa de qualquer país. Sem estrutura militar não é possível manter o segredo militar. A necessidade de defesa em relação à maior potência imperialista do mundo impõe restrições ao processo de democratização socialista. Enquanto não se fizer uma revolução no centro do império é um problema que vamos ter de enfrentar. Em Marx, a ditadura do proletariado era uma fase curta para cimentar o poder do proletariado. Em O Estado e a Revolução, Lénine defende que o Estado deveria imediatamente ir desaparecendo, que só será democrático quando puder ser dirigido pela empregada doméstica. Como é possível num contexto em que as revoluções são nacionais, defender o novo poder e democratizar ao mesmo tempo? Lénine alterou parcialmente a sua posição depois de O Estado e a Revolução. Muda de perspectiva com a experiência da revolução russa e compreende, a partir de 1920, que a temporalidade da transição socialista é muito maior do que a imaginava. Altera a sua posição em relação ao defenecimento do Estado, para fazer deste um aparelho alicerçado nos sovietes e que dê efectividade às reivindicações das massas. Lénine falava até em aprender com as melhores práticas de administração pública dos capitalistas. Cuba, Vietname, Laos, China e Coreia do Norte não caíram, conseguiram sobreviver, uns com formas mais qualificadas do que outros, mas existe um histórico de experiências socialistas que não sucumbiram ao ponto de perderem o apoio da base da classe trabalhadora a esses regimes de transição. A primeira coisa é fazer um balanço sistemático, real e nosso de todas as experiências. Coloca a Coreia do Norte e Cuba no mesmo campo? Não lhe parece que existem aspectos da Coreia que têm muito pouco a ver com o socialismo, a sucessão quase dinástica, o culto exacerbado da personalidade, por exemplo? A ideia do culto da personalidade é um termo ocidental muito ligado à própria realidade da União Soviética que, a meu ver, não se encaixa na explicação da Coreia. Também não acho que haja passagem de poder de pai para filho, porque os cargos que exerciam Kim Il-Sung, Kim Jong-il, Kim Jong-un são diferentes. Eles são evidentemente um elemento de simbologia da revolução nacional, mas exerceram e exercem cargos diferentes. A representação dos media de que Kim Jong-un é um ditador todo-poderoso, que controla tudo, é totalmente falsa. Existe pouca literatura e pouco estudo sistemático sobre a Coreia [do Norte] e há uma desconsideração sobre o estado permanente de agressão militar em que o país vive. Recorde-se que foi um país destruído pela guerra com os EUA, em que as forças norte-americanas destruíram todas as cidades da Coreia do Norte e mataram 30% da população. Os EUA mantêm, até hoje, mais de 50 mil soldados a cercar o país. E têm armas atómicas apontadas à Coreia [do Norte]. «Um povo que se consegue defender já é olhado de lado pela esquerda ocidental. Para essa gente, uma criança com uma pedra contra um tanque israelita é heróico, quando para mim é uma coisa brutal e quase pornográfica» Vamos lembrar que o principal palco militar dos EUA, na segunda metade do século XX, foi a Ásia. Atacaram o Vietname, atacaram o Laos, atacaram o Camboja, para além da Coreia [do Norte]. Usaram na guerra da Coreia mais bombas do que todas as que foram usadas na II Guerra Mundial. E até hoje, formalmente, a guerra da Coreia não acabou, foi apenas assinado um armistício, que significa, do ponto de vista do direito internacional, apenas uma pausa numa guerra. A Coreia [do Norte] é uma experiência socialista que é olhada de uma forma muito preconceituosa e preguiçosa pela esquerda Ocidental, que não estuda o país e tem aquela coisa com que começamos a conversa que é o fetiche da derrota. Veja, a Coreia [do Norte] foi invadida para ser liquidada, conseguiram resistir, consolidar um Estado, formar uma economia nacional. Têm um nível de industrialização considerável, constituíram um complexo industrial militar importante e, ao contrário do povo palestiniano, têm a capacidade de se defender. Um povo que se consegue defender já é olhado de lado pela esquerda ocidental. Para essa gente, uma criança com uma pedra contra um tanque israelita é heróico, quando para mim é uma coisa brutal e quase pornográfica. Mas essa esquerda gosta disso e de sofrimento, mas não gosta de países como a Coreia [do Norte] que têm mísseis intercontinentais com armas atómicas e que podem atingir os EUA. Eu dou um outro exemplo, a Líbia de Muammar al-Gaddafi não era uma experiência socialista, mas algo que surgiu no contexto das lutas anticoloniais, que tinha uma certa política anti-imperialista e nacionalista de apropriação dos recursos naturais do país. Na senda de Nasser e do socialismo pan-arabista. A Líbia tinha um programa nuclear, mas Gaddafi, tentando aproximar-se da União Europeia, desistiu do seu programa nuclear. Quatro anos depois de ter desistido desse programa, a NATO intervém na Líbia, derruba Gaddafi e destrói o país. Hoje temos um local que até tráfico de pessoas escravizadas tem. Em Tripoli, estão a vender-se escravos como no século XVI. A Líbia foi destruída, era dos países mais ricos de África e agora está nesta situação. Tenho várias divergências com o modelo socialista coreano, está bem longe daquilo que quero para o socialismo, mas eu apoio qualquer experiência socialista. O que aconteceu na Líbia, e quem acompanha o sofrimento do povo palestiniano, sabe, como dizia o velho Luckács, que «o pior socialismo é melhor que o melhor capitalismo». E o melhor capitalismo na periferia do sistema não existe. Basta ver a desgraça que aconteceu com a Líbia. A Coreia [do Norte] é um Estado muito militarizado, cercado, que tenta manter a coesão nacional máxima frente às ameaças militares, que se expressa por exemplo na continuidade de símbolos de unidade nacional, como a continuidade da família de Kim Il Sung. Tem várias coisas que eu acho problemáticas, mas que não estou preocupado em criticar: para mim, o essencial é a acção do imperialismo e o cerco feito a esse país. Quando acabar esse cerco militar, aí a gente pode debater livremente os problemas do regime, agora não dá para brincar, porque o imperialismo não brinca em serviço. A questão que coloco é que em que medida a necessidade de militarização e defesa de um regime não torna esse poder a certa altura pouco socialista. Não é possível uma estratégia de resistência que passe pelo aumento do poder do povo e da democracia socialista? Temos que considerar várias coisas. O Brasil é mais militarizado que a Coreia [do Norte] em termos de violência contra a população. A República Democrática da Coreia não sabe o que é ter, todos os anos, 62 mil pessoas assassinadas. O cidadão norte-coreano não sabe o que é ter, nas favelas, a polícia todos os dias a agredir e a xingar as pessoas, entrando nas casas sem mandado e por vezes matando. Essa própria ideia de militarização tem que ser muito bem contextualizada. Em termos de segurança do indivíduo em relação ao Estado, a Coreia [do Norte] disfruta de infinitamente mais democracia que o Brasil. Segundo ponto, se não existisse legitimidade, e um certo consenso e apoio na sociedade coreana, nenhum governo ficaria de pé. Durante os anos 90, o país perdeu o seu principal parceiro económico, que era a União Soviética, sofreu uma série de inundações e catástrofes, teve um problema sério de desnutrição, e o regime continuou de pé com um alto nível de consenso e apoio. Nos últimos dez anos, a qualidade de vida da população tem melhorado muito. Houve uma mudança relativa da orientação que colocava as Forças Armadas em primeiro lugar. A partir do momento que o país alcançou o domínio do armamento atómico e mísseis intercontinentais, a necessidade de ter forças terrestres diminuiu. «Todo o projecto anti-imperialista só se mantém se tiver uma forte base de apoio, de outra maneira não se aguentaria um minuto» A guerra moderna é muito mais definida pelos mísseis, caças e submarinos do que pelo número de soldados. Há uma redução do peso na economia do exército e uma passagem maior de recursos para habitação e para melhorar as infraestruturas sociais. A Coreia [do Norte] vive um boom da construção civil. A melhoria da qualidade da habitação dos trabalhadores, o aumento de construção de equipamentos colectivos – bibliotecas, parques, ginásios e equipamentos desportivos –, é visível e significativa. Há um debate no partido, respondendo aos pedidos das bases, que reivindicavam melhores condições de vida e de consumo. Assim como existe um debate sobre o país se tornar um centro mundial de criptomoedas e a partir daí quebrar o bloqueio económico dos EUA, para conseguir recursos para adquirir a modernização das infraestruturas e melhorar mais a vida das populações. A Coreia [do Norte] tem vários problemas, mas está longe de ser um país sem uma base social de consenso e legitimidade. Eu dou sempre este exemplo: os média liberais e certa esquerda representam o governo de Nicolas Maduro como ultra-militarizado e que só se mantem por causa do apoio do exército. Veja, eu tenho várias críticas ao governo Maduro, que nos últimos tempos resolveu lançar uma ofensiva contra o Partido Comunista Venezuelano, mas é uma ilusão maluca achar que um governo atacado pela maior potência do mundo, os Estados Unidos, vai conseguir manter-se no poder só pela força, se não tiver apoio popular. Isso não é possível. Todo o projecto anti-imperialista só se mantém se tiver uma forte base de apoio, de outra maneira não se aguentaria um minuto. Não apenas uma base passiva, mas uma base activa. E isso diferencia a esquerda da Venezuela em relação à do Brasil. A Dilma [Rousseff] foi retirada do poder muito facilmente, em 2016, sem nenhuma revolta das massas. Só tinha uma base de apoio passiva. Como é que foi o seu trajecto político do rap para o comunismo? O Brasil tem uma tradição de uma cultura de rap que nasceu em São Paulo e que é muito politizada. Nos anos 90, Racionais Mcs, RZO, GOG, Sabotage falavam de violência policial, racismo e de desigualdades. Falavam inclusive de líderes revolucionários. O GOG tem uma música em que diz: «Malcolm X foi a Meca e o GOG ao nordeste», ele conta a história de Malcolm X, a primeira vez que ouvi falar dele foi nessa música. Os Racionais MCs tem uma música chamada «Jesus chorou» em que se fala: «Malcom X, Ghandi, Lennon, Marvin Gaye, Che Guevara, 2Pac, Bob Marley, e o evangélico Martin Luther King». O rap historicamente no Brasil, embora hoje menos, é muito politizado e serve como voz da comunidades periféricas. Não só para denunciar das mazelas da sociedade, mas como memória de uma identidade e de luta contra o racismo. Em formações que eu dava, antes da pandemia, usava muito o rap. Mas nem toda a gente que ouve o rap vira marxista-leninista. Há três elementos que contribuíram para isso. Primeiro elemento central, a produção marxista no Brasil ficou muito centralizada na universidade. E estas, até aos governos do PT, eram universidades da classe média e da burguesia, o que tem impacto no tipo de produção marxista. No meu primeiro contacto com os marxistas na faculdade, vi que eles não correspondiam à minha realidade. Só para ter uma ideia, a influência no Brasil era sobretudo uma leitura eurocomunista de Gramsci, de que dá para construir o socialismo ampliando a democracia, e que a dominação burguesa hoje se faz mais pelo consenso do que pela coerção. Só acredita nisso quem é de classe média. Quem, como eu, nasceu numa favela de Recife, não consegue levar isso a sério. O meu afastamento desse marxismo hegemónico na universidade e adesão ao marxismo-leninismo para mim foi natural na minha própria experiência empírica. Eu li estas coisas e pensei: «Que país é esse? O Brasil não é». «Quem conhece a burguesia brasileira não consegue propor nenhuma aliança, mesmo que seja táctica, com essa classe» O segundo elemento, é quando eu criei o hábito de leitura e decidi organizar-me politicamente. Parei para ler os programas dos partidos políticos do Brasil. Li os programas do PT, PC do B, PSOL, PSTU, PCR e da Consulta Popular e por aí vai. Entrei no PCB, na sua organização da juventude, a UJC, porque era o que deixava mais claro uma estratégia socialista para a revolução brasileira. Quem conhece a burguesia brasileira não consegue propor nenhuma aliança, mesmo que seja táctica, com essa classe. Um terceiro elemento, chamou-me muita atenção a história do PCB, quando você estuda no vestibular, para a entrada da universidade, ouve muito falar do PCB, de Luiz Carlos Prestes, Olga Benário e Ana Montenegro. E a história do partidão sempre me encantou muito, principalmente via Prestes. Quando entrei no PCB, deu-me muito orgulho: «vou militar no mesmo partido que Luiz Carlos Prestes». Foi também isso que me levou a concordar com o marxismo-leninismo do PCB. Em Recife, há uns anos, tentou candidatar-se na sua comunidade. Não o fez porque foi ameaçado. Actualmente, com o domínio do tráfico de droga e a repressão do Estado, há espaço nas comunidades para a luta revolucionária? Há espaço. Mas é muito perigosa e difícil. Na favela, onde nasci e fui criado, mantive um cursinho popular, chamado «Novo Caminho», para ajudar jovens a conseguir entrar na universidade. Consegui manter essa actividade durante dois anos, recrutei gente para a juventude do partido, houve um reconhecimento social da comunidade para com o nosso trabalho, mas quando foi a hora de disputar a associação de moradores o meu caminho foi barrado. E repare que eu sou prata da casa, sou nascido e crescido na favela do Borborema. Não consegui avançar nesse negócio. Claro que na época eu não era ainda organizado no PCB. Tentei concorrer à associação de moradores sozinho, sem um partido por trás, o que muda bastante o cenário. Agora é preciso dizer que todo o trabalho de base é perigoso. O Brasil é um país muito perigoso para se militar. É perigoso, trabalhoso, exige muita estrutura e planeamento. Exige muita paciência revolucionária. O PCB tem vários trabalhos em comunidades, menos do que é necessário para a revolução brasileira. Militar no Brasil não é como militar em Paris ou em Londres. O nível de violência a que estamos submetidos, no continente, só se compara com a Colômbia em que há um narco-Estado que mata a rodos. Brasil e Colômbia são os países mais perigosos na região para se militar. Pode-se dizer que a luta de classes no Brasil tem uma carga de ódio muito maior devido ao peso da escravatura? Há um ódio da burguesia ao proletariado aditivado pelo racismo? Com certeza. José Carlos Mariatégui, o famoso comunista peruano, matou a charada nos anos 20 do século passado. Tem um texto que mostra que a burguesia crioula se formou não só a partir de uma identidade classista burguesa, mas também de uma identidade racial. Fazendo com que a oposição de classe também assumisse uma forma de oposição racial, inclusive eugénica, e que essa burguesia se achasse superior aos caboclos, negros, mulatos e indígenas. Começamos a conversa pela liquidação da Comuna de Paris, em que a burguesia matou 20 mil pessoas. Aqui morre muito mais gente. O ódio de classe, quando se soma com o ódio racial, toma traços neofascistas. É o que acontece com a burguesia boliviana em Santa Cruz da Serra, a burguesia peruana em Lima. No Brasil eles se auto-representam como brancos, descendentes directos dos europeus, e a massa trabalhadora como uma espécie de ralé racialmente inferior. E trabalham a partir de discursos de extermínio camuflados em ideologia da segurança pública, em que «bandido bom é bandido morto», «tem que se matar o traficante». A grande diferença daqui e do discurso do Hitler é que este afirmava claramente que odiava judeus, enquanto no Brasil e em outros países mascara-se os genocídios com políticas de segurança pública, mas no final o resultado é o mesmo. Concorda que as categorias de capitalismo, racismo e patriarcado fazem parte do mesmo quadro da luta de classes? Totalmente, desde a obra de Marx e Engels que já está colocada a multiplicidade de formas de expressão da luta de classes. Essa luta nunca foi só o conflito capital e trabalho no âmbito da fábrica. Estou-me a lembrar, por exemplo, no Manifesto Comunista, Marx e Engels colocavam na luta de classes a luta pela libertação da Polónia, que era uma luta de emancipação nacional. Assim como põem, no mesmo texto, a importância da luta contra a opressão da mulher. Engels no seu famoso Anti-Duhring, e no seu mais célebre capítulo intitulado do Socialismo Utópico ao Socialismo Ciêntífico, repete a célebre frase de Charles Fourier, em que o grau de emancipação de uma sociedade é medido pelo grau de emancipação da mulher nessa sociedade. Assim como na Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Engels defende que a mulher é o proletariado do homem. E que o aparecimento da propriedade privada significou a derrota mundial do sexo feminino, por ter provocado um processo de exploração, no âmbito doméstico, do homem sobre a mulher, numa estrutura patriarcal. « Os comunistas lutaram contra o apartheid. Isso faz parte também da luta de classes» Diria mais, Domenico Losurdo, no seu livro A Luta de Classes, uma História Filosófica e Política, demonstra que desde a obra de Marx e Engels há uma compreensão sobre três níveis interligados de exploração e opressão: o âmbito da vida doméstica, com o patriarcado e a exploração da mulher; o âmbito nacional, com a retirada de mais-valia a partir da exploração do proletariado; e o âmbito internacional, a partir da exploração dos países e povos colonizados. Esses três níveis articulam-se directamente e fazem com que a luta de classes passe também por lutas contra a exploração, o imperialismo, o machismo e o racismo. Algo que foi materializado muito bem na história do movimento comunista. Há um exemplo que eu gosto muito de dar: hoje todo o mundo gosta de Nelson Mandela, que virou um ícone mundial, mas quando ele estava preso, os Estados Unidos chamavam-no de «terrorista», e eram os comunistas que apoiavam a luta contra o apartheid. E Cuba mandou milhares de soldados para lutar, ao lado dos revolucionários africanos, contra o apartheid e pela independência das ex-colónias portuguesas em África. Os comunistas lutaram contra o apartheid. Isso faz parte também da luta de classes. Não se pode ter uma visão redutora e economicista da luta de classes. Contesta algumas acusações de correntes da esquerda, e até de alguns activistas anti-racistas, de que o marxismo é eurocentrista, em que as questões raciais não estão devidamente espelhadas na teoria comunista? Estas críticas só se sustentam na base da falsificação histórica. O marxismo é a tendência teórica política que, depois do liberalismo, teve mais alcance mundial. O que significa que é possível encontrar de tudo no marxismo: há marxismo estruturalista, marxismo humanista, marxismo analítico, marxismo existencialista, marxismo weberiano, marxismo pós-moderno. O que você procurar vai achar em algum canto do mundo. Existiram e existem marxistas eurocêntricos, marxistas que não dão atenção às lutas anticoloniais e anti-racistas. Agora existe também toda uma larga tradição do marxismo que deu um papel fundamental, no século XX, às lutas anti-racistas e coloniais. «O marxismo ser um negócio de brancos e que não deu atenção às lutas anticoloniais e anti-racistas é uma afirmação que não se sustenta sob nenhum prisma» Três exemplos básicos: os principais líderes das lutas de libertação nacional na África negra ou eram marxistas ou tinham relações com o marxismo. Amílcar Cabral, Samora Machel, Agostinho Neto e Thomas Sankara eram marxistas. E os que não eram marxistas, como Lumumba, tinham óptimas relações com os marxistas e contavam com o movimento comunista como aliado das suas lutas de libertação. Segundo exemplo importante, nos EUA só houve o sufrágio universal – uma cabeça, um voto – em 1965, quando acabou a segregação racial. A principal organização de luta contra a segregação racial é o partido das Panteras Negras, uma organização marxista-leninista que o FBI considerou a maior ameaça ao capitalismo estado-unidense. O terceiro exemplo, muito significativo, é que o processo de descolonização da Ásia passou pela liderança dos partidos comunistas: o chinês, o vietnamita, o coreano, o do Laos. Mesmo na Índia, os partidos comunistas têm um papel importante, e até hoje na região de Kerala há uma grande tradição comunista enraizada nas massas. O marxismo ser um negócio de brancos e que não deu atenção às lutas anticoloniais e anti-racistas é uma afirmação que não se sustenta sob nenhum prisma, a não ser que se reduza o marxismo às suas expressões eurocêntricas, a figuras como Kaustky ou, actualmente, a Zizek. E queria acrescentar mais um elemento: o Portugal fascista, dominado pelo salazarismo, foi aceite pelo Ocidente, entrou na NATO, e a nossa amiga Hannah Arendt, famosa pela sua teoria sobre o totalitarismo, que tentava igualar a União Soviética ao nazismo, não colocou o fascismo salazarista como totalitário, dizia que era apenas autoritário. Esse discurso acaba por fazer o jogo do liberalismo que se relacionou muito bem com o fascismo salazarista. Escondendo, por exemplo, que os comunistas organizados no PCP, que eram a principal força de resistência contra o fascismo, apoiaram as lutas anticoloniais de África, enquanto os EUA apoiavam o regime colonialista e fascista. Quando se diz que o marxismo é eurocêntrico, não só se está a falsificar a história como se está apoiar os liberais que foram aliados históricos do salazarismo. Um autor dos EUA, Asad Haider, afirma que o racismo não é produto das raças, mas as raças é que são produto do racismo. E que a luta anti-racista tem como objectivo a liquidação da ideia de raças e as desigualdades que por ela são sustentadas e não a criação de qualquer «negritude». Concorda? Concordo plenamente, inclusive li a entrevista do Asad Haider no AbrilAbril, uma entrevista muito boa, como sempre. É um autor muito qualificado e o que ele fala não é uma ideia nova, baseia-se muito nas ideias do Frantz Fanon. Defende uma perspectiva que eu gosto de chamar de humanismo radical. Comprende que a divisão do mundo em raças é um produto da modernidade, a partir da acumulação primitiva de capital que se consolida no capitalismo, e que a questão, em última instância, não é uma sociedade de igualdade racial, mas é uma sociedade desracializada. Evidentemente, que enquanto elemento táctico nós vamos reivindicar elementos da positividade do negro na luta anti-racista. Só que isso não significa que a gente abra mão do horizonte último de desracialização; da mesma forma que o objectivo de acabar com a classe trabalhadora enquanto classe, no socialismo, em que todos serão trabalhadores, não implica que, nas lutas imediatas, no capitalismo, a gente não organize sindicatos para melhorar os salários: apesar disso reproduzir o assalariamento. Como na luta de classes, no caso do racismo acontece o mesmo.Usamos os elementos de positivação de ser negro, frente à inferiorização do ser negro, que são intrínsecos à ideologia racista. Mas o horizonte último é a desracialização da sociedade. Frantz Fanon estava correctíssimo, fazer com que o signo raça deixe de ser um marcador e um estruturador de relações sociais. O capitalismo vive em permanente crise e ela parece, cada vez, mais aguda. Mas por que é que parece mais possível uma catástrofe natural ou a invasão de extraterrestres, para usar uma imagem de Fredric Jamenson, do que a simples superação do capitalismo? Vivemos uma época contra-revolucionária da qual não nos libertamos totalmente. A queda da União Soviética e a derrota do socialismo foi muito grande. E há um processo de reconstrução do movimento revolucionário. Essa reconstrução é muito tímida, está mais avançada nuns países que em outros. Há ainda uma busca de horizontes revolucionários que não estão claros. Há muitos debates sobre pós-marxismo, sobre socialismo revolucionário no século XXI, sobre populismo de esquerda, debates que não têm consequências práticas, mas ainda vamos ter um caminho muito longo para que o marxismo-leninismo renovado, com todos os novos problemas do século XXI, consiga dar respostas aos desejos das massas. Ainda vai demorar muito a construir um movimento revolucionário mundial e conseguir colocar na ordem do dia, como já esteve, o fim do capitalismo. Não pode haver necessidade de uma adequação teórica aos novos tempos e uma necessidade de identificar o que será hoje um sujeito revolucionário para a transformação, e o que é hoje essa «classe operária» revolucionária e ainda como criar um movimento revolucionário a partir desse sujeito? Acho que sim, mas a resposta para isso não está em abandonar o marxismo-leninismo, mas em renovar a teoria assimilando novos problemas, acompanhando as transformações do sistema capitalista. Vou dar um exemplo, há um processo claro no Ocidente de desindustrialização com a deslocação de várias indústrias para a Ásia, com a recomposição da economia do mundo em que a China é a fábrica do planeta. Isso faz com que cresça, no chamado Ocidente, o trabalho informal e o assalariamento nos sectores do comércio e serviços, uma mudança no perfil da classe trabalhadora. Hoje faz muito mais sentido falar de assalariados urbanos do que falar em classe operária, no sentido fordista. Isso é um problema do ponto de vista organizativo e em relação às novas reivindicações. A classe trabalhadora brasileira é maioritariamente feminina, mesmo a que tem emprego formal; a classe trabalhadora informal para além de ser maioritariamente feminina é muito negra. Então, a figura da mulher negra e mãe solteira é muito presente no exército industrial de reserva. A ideia de classe operária estava ligada à produção de mais-valia, isso só era possível em trabalhos que criassem valor. O marxismo excluía desse quadro a distribuição, os serviços e o comércio. Hoje, ao considerar-se que na nova classe trabalhadora estão, por exemplo, os distribuidores da Uber Eats, não há uma mudança na teoria valor-trabalho? Não creio que haja uma mudança teórica, mas uma mudança nas formas de exploração. Quando Marx escreveu o livro I de O Capital, a maioria da população era explorada via colonialismo; o trabalho assalariado, como forma dominante de exploração, é da segunda metade do século XX. Quando a Internacional Comunista é criada, a maioria da população era colonizada e vivia em formas de semi-escravidão. A teoria do valor-trabalho e do fulcro do capitalismo com a exploração estava valendo, agora nós temos outras transformações, só que o essencial da coisa continua: a propriedade privada dos meios de produção, a existência de um contingente gigantesco da população que não tem mais do que a sua força de trabalho para vender e a apropriação privada da riqueza socialmente criada. A partir daqui vamos pensar em novas tácticas e formas de organização e comunicação para organizar os explorados e oprimidos, mas eles continuam explorados e oprimidos. O núcleo da questão continua a ser explicado pela teoria marxista. Num filme muito conhecido, Matrix, a humanidade estava presa numa ilusão gerada por um programa computorizado e só era possível combater essa ilusão desconectando-se dele. É possível fazer luta revolucionária no quadro do capitalismo de vigilância e das tecnologias de comunicação e redes sociais? Totalmente, mas é preciso uma política leninista séria. Hoje, no Brasil, é mais fácil arrecadar dinheiro, do que era no tempo da ditadura militar. Também é muito mais fácil a vigilância, mas escapar dela exige um nível de planeamento e de organização e estrutura... Inclusive uma organização revolucionária que se preze tem de ter um departamento interno de hackers e segurança da informação. Tem de aprender a actuar, fazer guerrilha virtual, uma área que é muito dominada pelos anarquistas, os cyber-punks, e os marxistas-leninistas estão a dormir nessa área. Há algumas experiências existentes interessantes mas é necessário voltar a ter a ideia leninista de uma política planeada e organizada. O espontaneísmo, numa altura que se tem as maiores capacidades de vigilância, é facilmente derrotado, aliás sempre o foi. Usa as redes para fazer política, mas foi uma acção espontânea. O PCB nada teve a ver com isso. (Risos) Eu acho errado, isso devia ter sido discutido politica e internamente. Acho que até partidos leninistas precisam de mais leninismo. Há um conservadorismo muito grande. É muito difícil debater uma política hacker com qualquer comunista. Usou o termo de «capitalismo de vigilância». Conheço várias pessoas que o usam, acho interessante o debate, mas colocando a pergunta de Lénine, eu quero saber é «o que fazer?» E aí não se vê uma reacção prática concreta. Pode-se dizer que o capitalismo tem a maior capacidade de vigilância da história, é verdade. Mas cadê o nosso sistema de comunicação criptografado que não passe pelo Google? Qual é o nosso recrutamento direccionado para pessoas das Tecnologias de Informação para que possamos fazer uma guerrilha que impeça essa vigilância? Isso é um problema, há um certo tradicionalismo, muito forte, que não percebe que a mudança das relações de produção capitalistas e nas formas de dominação exigem alterações tácticas, de organização e comunicativa. Do mesmo jeito que Engels, no famoso prefácio a As Lutas de Classes em França, defendeu que a táctica de barricadas já não era eficaz com o desenvolvimento da ciência militar, e que era preciso outras formas de acção, é preciso hoje encontrar essas novas formas. É difícil? É. Temos de ter uma criatividade política sem sair do marxismo-leninismo, é esse o 'x' da questão, sem andar com teorias eclécticas da moda. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. 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Jones Manoel. «Uma organização revolucionária tem de ter um departamento de hackers»
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Eu não colocaria esses sectores conciliatórios como de esquerda. Esses conceitos estão permanentemente em disputa, até mesmo o que significa uma política anticapitalista. Eric Olin Wright, antes de morrer, escreveu um livro sobre o que significava ser anticapitalista no século XXI, que eu discordo em vários pontos que me parecem mais uma tentativa de humanização do sistema que a sua superação. Todos esses conceitos estão, portanto, em permanente disputa. O interesse de se manter uma tipologia entre esquerda e direita, é que a partir dali há um antagonismo leve e pode partir daí para antagonismos mais pesados.
Esquerda e direita não são sobre luta de classes, mas como se organizam os campos políticos. Dentro da esquerda, tem de se batalhar pelo conceito de luta de classes que nos vai levar para o lado do socialismo e do comunismo. Mas mesmo a luta de classes não é suficiente para explicar qual é o projecto que pretendemos.
Um trabalhador pode estar consciente que está numa luta de classes, porque ele tem um antagonismo quotidiano com o seu patrão. Mas para onde ele vai a partir daí, depende de um processo de politização. E se se entrar no conceito de socialismo, há várias versões e interpretações. Quando se fala de comunismo pode ser numa versão marxista ou anarco-comunista. Por isso, o nosso trabalho não é só sobre disputa de narrativa, não se limita a pensar como se vai explicar isso e como isso vai fazer sentido na vida das pessoas. A luta de classes é importante para que a pessoa compreenda onde ela se insere na sociedade: «eu sou da classe trabalhadora e eu estou numa posição de ser explorado». Aí, é preciso ir atrelando outras explicações, algumas delas só vão fazer sentido quando o trabalhador se organiza e começa a lutar.
Nesse processo, o que se tem de perceber é que só falar para as pessoas que uma coisa é algo nunca vai ser suficiente. Tem de haver um relacionamento permanente. O processo de trabalhar com a classe trabalhadora é uma forma permanente de politização.
Quando se mete no mesmo saco toda a esquerda, e se acha que é tudo igual, tem de se perceber que isso tem que ver com o «senso comum» que a ideologia dominante está inculcando nas pessoas. A nossa tarefa, frente a isso, é ir desvendando e tornando claro esses mecanismos. Quando a gente o faz, acredito que chega um momento que pouco importa como se chama aquilo, importa muito mais a política concreta que estamos a estabelecer.
No debate da segunda volta das eleições francesas, entre Macron e Marine Le Pen, quem falou em trabalhadores, uberização, salários dignos e nos custos ambientais que tinham de ser pagos pelos que poluam mais, e não pelos que menos ganham, foi a candidata de extrema-direita. Houve uma apropriação do terreno da esquerda pela Le Pen. Mas, no final, a esquerda foi obrigada a votar no candidato liberal para impedir a chegada ao poder da extrema-direita, o que acaba por normalizar o discurso neoliberal. Como é possível ultrapassar a divisão das classes populares e recuperar aquelas que votam na extrema-direita?
No caso da França há um erro prévio, que é a própria fragmentação da esquerda alternativa a Macron que não conseguiu entender-se na primeira volta das presidenciais. Apenas vimos essa tentativa nas legislativas. Muitas vezes, quando se é colocado entre a espada e a parede, é por que não se conseguiu seguir a melhor estratégia. Por outro lado, a apropriação da extrema-direita de partes do programa da esquerda, significa que muitas vezes os debates não são feitos na forma correcta e não expõem os verdadeiros antagonismos. Esses debates permitem a aparência ideológica de fazer parecer a extrema-direita como anti-sistémica, quando na realidade o que eles fazem é trabalhar com os afectos de insatisfação e frustração que as sociedades têm, sem pôr em causa o capitalismo.
Aquilo que classifica de ultra-política.
É um pouco da ultra-política, mas é também aquilo que Vladimir Safatle fala sobre «o circuito dos afectos». A sociedade sente-se profundamente desamparada. E, nesse caso, a extrema-direita tem sabido navegar no meio desse desamparo social de uma forma que muitas vezes a esquerda tem dificuldades, nomeadamente a socialista. Por que para o campo socialista não basta dizer que se está desamparado e dizer que se resolve a situação. A esquerda socialista não se propõe resolver os problemas às pessoas numa bandeja. Para o campo socialista, as pessoas têm de se organizar para isso e envolver-se na sua própria emancipação. Trazer para dentro da luta é muito mais complicado do que transmitir uma mensagem dizendo que existe um inimigo exterior que está a atrapalhar tudo e que a extrema-direita vai-nos proteger. É por isso que a extrema-direita consegue mobilizar com mais facilidade.
Pode dizer-se que parte da esquerda social-democrata incorporou a ideia de meritocracia, em que se defende que as pessoas só não vivem melhor porque não fizeram individualmente nada para isso. Por outro lado, há uma esquerda que aposta na afirmação das identidades, aceitando muitas vezes uma política que põe o foco nos direitos individuais e ignora os direitos sociais.
Acho que aqui há dois problemas: a própria definição da política da identidade muitas vezes fecha um pouco a possibilidade de fazer uma solidariedade mais ampla. Pessoalmente, eu prefiro falar de políticas anti-opressão mais baseadas no colectivo.
Muitas vezes, no feminismo, aquilo que se passa dentro de casa está relacionado com dinâmicas externas. A mulher branca não podia trabalhar fora, porque a sociedade tinha estruturas que a coagiam, fazendo-a muito dependente do marido. A mulher branca, de classe média, quando conquista o direito de trabalhar fora de casa, coloca para dentro de casa uma mulher racializada para fazer o trabalho doméstico. Estas são as dinâmicas que ligam o pessoal com o político. O erro foi quando houve gente que começou a pensar: se o pessoal é político, o político é sobre mim. É político quando demonstra as diferentes camadas da estrutura que afecta a nossa vida. Pode ter referências muito directas no caso da violência doméstica. Mas uma experiência individual de violência doméstica não é uma experiência universal. Ela faz parte e compõe uma experiência estrutural, mas a experiência individual não é universal.
Então, muitas vezes, neste processo de explicar às pessoas que nós precisamos de as nossas experiências e aprender com elas, e ver que existem explicações políticas em relação a elas, muita gente acabou perdendo-se no meio do caminho. Talvez por falta de estar organizado num processo em que se lute por políticas públicas e por formas de emancipação mais geral, ficando simplesmente focado nos seus problemas pessoais. Um desvio agravado pela ideologia individualista da sociedade que nos quer fazer acreditar que só há pessoas.
A teoria da política identitária que o Livre subscreve fecha cada opressão numa cofragem identitária, e, portanto, abstracta, sem vasos comunicantes, representações por procuração ou solidariedades. Escrever é arranjar problemas. Antecipando os nomes que algumas pessoas me vão chamar (sectário, racista, homem hétero cis branco, etc. mas sejam imaginativos) quero começar com uma nota prévia: estou solidário com Joacine Katar Moreira, vítima de uma infame campanha de ódio racista; repudio os grunhos dos imbecis que a acusam de fingir a gaguez; não ponho em causa a total legitimidade do seu mandato como deputada e fico genuinamente feliz por ver mais mulheres negras no parlamento. O meu problema não é com a Joacine, nem com a sua gaguez nem, muito menos, com a cor da sua pele ou a sua nacionalidade. O meu problema é com o Livre e é estritamente político. A vida política de Rui Tavares resumia-se, até há um mês, a uma aborrecida sucessão de falhanços oportunistas: do anarquismo life style a deputado europeu do BE quando estava na moda ser do BE; do híper-europeísmo muito a piscar o olho ao PS ao comentário político de académico anti-séptico. Mas, como aqueles empresários que antes de chegar ao sucesso tiveram de levar seis empresas à falência, Rui Tavares foi capaz de olhar para o estrangeiro e perceber que, em 2019, o investimento demagogicamente mais rentável não é o anarquismo, nem a União Europeia, nem a esquerda nem a direita, nem qualquer ideologia. Nos anos vinte deste século, deduziu Tavares, as oportunidades gravitarão em torno de dois novos pólos políticos: o «populismo» e o «identitarismo». «estou solidário com Joacine Katar Moreira, vítima de uma infame campanha de ódio racista; repudio os grunhos dos imbecis que a acusam de fingir a gaguez; não ponho em causa a total legitimidade do seu mandato como deputada e fico genuinamente feliz por ver mais mulheres negras no parlamento. O meu problema não é com a Joacine, nem com a sua gaguez nem, muito menos, com a cor da sua pele ou a sua nacionalidade. O meu problema é com o Livre e é estritamente político» A aposta do barão trepador rendeu finalmente dividendos políticos. A deputada do Livre monopolizou com estrépito mediático todo o debate político em torno de «causas fracturantes» como a sua aflitiva gaguez, a saia do seu assessor, Rafael Esteves Martins, ou uma bandeira guineense a ondear num comício. Pode-se dizer que a culpa é dos esqueletos que tínhamos no armário, mas a reencarnação identitária do Livre não foge aos encargos da agenda identitária: transforma a saia no pretexto para uma entrevista no programa do Goucha; transforma a gaguez real numa performance mediática que dispensa ajudas e desperta ódios e paixões e transforma a sua representação num fim em si mesmo, pelo que dispensa ideologias e propostas políticas. A política de Joacine é a identidade de Joacine. Em entrevista ao Expresso, a Joacine Katar Moreira era ainda mais clara: «Represento as mulheres negras, os homens negros, as mulheres em situações de empobrecimento, os homens em situações de empobrecimento, os investigadores com uma vida instável». Ou seja, Joacine está convencida de que tem um mandato para representar não só as pessoas que votaram nela, mas, por condão da sua identidade, todos aqueles que são como ela: negros, gagos, investigadores, etc. Independentemente do que proponha e vote no parlamento ser indiferente ou mesmo contrário aos interesses destas pessoas. Os afro-americanos têm, há muito tempo uma expressão muito feliz: «black faces in high places», qualquer coisa como «rostos negros em lugares importantes». Nunca, nos EUA, houve tantos políticos negros a ocupar cargos públicos. Apesar do recorde histórico, estes políticos negros são politicamente indistinguíveis dos políticos brancos. No Congresso dos EUA contam-se, entre democratas e republicanos, 43 eleitos afro-americanos, o maior número de sempre e que tem vindo a subir de eleição para eleição. O problema é que esta tendência não correspondeu a qualquer alteração qualitativa no combate ao racismo. Olhemos para o exemplo de Baltimore, onde homens e mulheres negras controlam praticamente todo o aparelho político da cidade, incluindo o executivo da autarquia, a presidência, a assembleia municipal, a polícia, o sistema escolar e os transportes públicos. Apesar de tantos rostos negros em posições importantes, a violência racista continua a ser o dia-a-dia de milhares de negros, que também continuam a ser mais pobres, a ter menos acesso à educação e a viver em bairros mais degradados. «a reencarnação identitária do Livre não foge aos encargos da agenda identitária: transforma a saia no pretexto para uma entrevista no programa do Goucha; transforma a gaguez real numa performance mediática que dispensa ajudas e desperta ódios e paixões e transforma a sua representação num fim em si mesmo, pelo que dispensa ideologias e propostas políticas. A política de Joacine é a identidade de Joacine» Quando, em Filadélfia, dois polícias prenderam um homem negro por estar a beber um café no Starbucks, o chefe da polícia, também negro, defendeu a acção dos racistas. E quando, num restaurante de Warsaw, na Carolina do Norte, uma criança negra foi espancada e quase sufocada até à morte por um polícia, o presidente da câmara, também negro, defendeu a brutalidade policial. Os EUA tiveram um presidente negro, um marco histórico de inegável valor simbólico que, para além do simbolismo, não beliscou o racismo institucional, sistémico e estrutural. Então, afinal, por que razão os criminosos de guerra Colin Powell e Condoleezza Rice não se preocupavam com o racismo? Por que razão a neoliberal Margaret Thatcher não se preocupava com os direitos das mulheres? Por que razão o fascista Milo Yiannopoulos, homossexual assumido, não se preocupa com direitos LGBT? A teoria da política identitária que o Livre subscreve fecha cada opressão numa cofragem identitária, e, portanto, abstracta, sem vasos comunicantes, representações por procuração ou solidariedades. Para os identitários, por exemplo, a luta «de todas mulheres» exclui «todos os homens» porque «todos os homens» têm interesse em continuar a oprimir as mulheres. Por esta lógica, os homens nunca estarão do lado das mulheres porque quererão sempre que elas continuem a desempenhar mais trabalho doméstico, por exemplo. Da mesma forma, «todos os negros» estariam condenados a lutar sozinhos contra o racismo porque «todos os brancos» beneficiam dessa opressão e só um homossexual poderia representar a causa LGBT porque «todos os heterossexuais» tiram partido dessa discriminação. Para os identitários, a raiz do problema não é a infra-estrutura capitalista, mas a infra-estrutura dos homens brancos heterossexuais, pelo que a solução do problema passa necessariamente pelo reforço da representação das mulheres, dos negros, dos gays ou das pessoas com deficiência nos concelhos de administração dos bancos, nos exércitos imperialistas e nos partidos de direita. «Nunca, nos EUA, houve tantos políticos negros a ocupar cargos públicos. Apesar do recorde histórico, estes políticos negros são politicamente indistinguíveis dos políticos brancos. No Congresso dos EUA contam-se, entre democratas e republicanos, 43 eleitos afro-americanos, o maior número de sempre e que tem vindo a subir de eleição para eleição. O problema é que esta tendência não correspondeu a qualquer alteração qualitativa no combate ao racismo» O resultado é a atomização absoluta das identidades e das causas: cada um de nós teria de escolher se vota no partido do anti-racismo ou no partido dos reformados; se adere ao partido dos gays, das mulheres ou ao partido dos trabalhadores; se luta pelos animais ou pelo serviço nacional de saúde. Consequentemente, cada um de nós estaria impedido, por «lugar de fala», a pronunciar-se acerca de todas as outras lutas, atiçando uns oprimidos de um tipo contra oprimidos de outro tipo, numa competição em que só ganham os poderosos. Nos EUA, por exemplo, tornaram-se comuns discussões caricatas sobre «quem é mais privilegiado»: uma mulher branca ou um homem negro? Uma mulher muçulmana e negra ou uma mulher branca com deficiência e pobre? Se é verdade que, historicamente, todas as libertações foram obra da luta dos oprimidos, essa opressão só pode ser definida rigorosamente a partir dos interesses dos oprimidos e não a partir de identidades abstractas. Ao contrário do que dizem os identitários, a exploração dos imigrantes só serve para baixar os salários de todos os trabalhadores; a discriminação salarial das mulheres exerce uma pressão descendente sobre o salário dos homens e o racismo e a homofobia são usados para dividir pessoas que comungam dos mesmos interesses. Estes interesses atravessam as identidades ao longo da História: a luta das mulheres ao longo dos últimos duzentos anos fez-se com a solidariedade de muitos homens; a luta dos negros contra o colonialismo fez-se com a ajuda de soviéticos brancos. A universalidade da luta de classes ecoa em todas as lutas: transsexuais, homossexuais, ciganos, negros, brancos, mulheres, pessoas com deficiência, imigrantes. É esse o apelo e a utilidade do comunismo enquanto poderosa união de todos os explorados contra todas as opressões. É por isso também que uma trabalhadora das limpezas negra tem mais em comum com uma colega branca do que com Joacine Katar Moreira, que acha que quem escreve a história são as «elites empáticas e inteligentes». Não o povo, não os oprimidos, não os explorados, mas as «elites», que o dicionário define como a «minoria social que se considera prestigiosa e que por isso detém algum poder e influência». As «elites» de Joacine, quer sejam brancas ou negras, não têm interesse material no derrube das estruturas racistas; da mesma forma que as mulheres que exploram outras mulheres não têm interesse material na igualdade salarial. «Para os identitários, a raiz do problema não é a infra-estrutura capitalista, mas a infra-estrutura dos homens brancos heterossexuais, pelo que a solução do problema passa necessariamente pelo reforço da representação das mulheres, dos negros, dos gays ou das pessoas com deficiência nos concelhos de administração dos bancos, nos exércitos imperialistas e nos partidos de direita» Caras negras em lugares importantes podem servir apenas para desviar a discussão sobre o racismo estrutural, institucional e histórico, para uma questão de símbolos e elites. O sistema capitalista é capaz de absorver mulheres, gays e negros para as tais «elites» por que suspira Joacine sem que nada de essencial se altere. Na verdade, para os opressores pode até ser politicamente conveniente ter oprimidos a representá-los. Essa é a realidade da identidade de Joacine: ela representa as elites e assume-o. Foi nos bairros dos ricos (Lapa, Campo de Ourique, Paço de Arcos, Cascais) que Joacine somou mais votos, não foi nos bairros dos negros pobres; e foram também os académicos, os intelectuais, os professores, as elites, que em sua defesa fizeram um abaixo-assinado em que não entram pés-rapados. Da mesma forma, Rafael Esteves Martins, o assessor de Joacine e do Goucha, hoje diz que os conceitos de esquerda e direita estão ultrapassados. O que não está ultrapassado é o conceito de «negro» e de «branco», suponho. Conciliar explorados com exploradores, dividindo os explorados; eis é a velha consigna do capitalismo, da direita e da reacção. E é por isso que todos os dias são 25 de Novembro na «agenda identitária» do Livre. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
Política identitária é política de direita
Rostos africanos em lugares palacianos
Dividir para reinar
Guerra às elites, paz à ralé
Contribui para uma boa ideia
Nesse contexto, multiplicam-se processos de revitimização, tendo lógicas em que acabam por travar processos e possibilidades de construir alianças. Porque de repente tudo parece transformar-se em assuntos sobre experiências e afectos individuais. Há pessoas que trabalham sobre estes fenómenos, como Asad Haider, no seu livro Armadilha da Identidade [entrevistado aqui para o AbrilAbril]. Sem dúvida alguma que estamos muito perdidos nestas questões, inclusive a esquerda socialista que está a confundir o ter de existir uma maior representatividade das mulheres, a nível institucional, com o necessário avanço do feminismo, e mais políticas LGBT a nível da sociedade. Essa confusão entre uma maior representatividade, o debate e as lutas que devem avançar, é algo que deve ser resolvido.
Por um lado, defende que a política não se deve esgotar nas instituições, mas por outro lado afirma resolutamente que é preciso uma outra política dos estados no combate à crise ecológica. Como vê hoje a questão do poder e a importância de conquistar o poder? Ou é possível mudar o mundo sem tomar o poder, como defende John Holloway? Qual é o papel que reserva aos partidos na luta política?
Os partidos são essenciais, mas eles são parte de um ecossistema mosaico de organizações diversas. Eu fui militante partidária vários anos, actualmente não sou porque acredito que o meu trabalho é melhor feito fora da fronteira partidária, porque isso permite-me trabalhar com vários partidos ao mesmo tempo. Para a minha realidade concreta, funciona melhor trabalhar em rede. Para outras pessoas o seu contributo é melhor dado no quadro da militância partidária. São precisos partidos, mas também são necessários movimentos sociais, redes e campanhas. A ideia de que vai haver uma organização primária que vai resolver todos os problemas, viu-se historicamente que não funciona.
As outras historicamente funcionaram? É que antes de haver partidos do movimento operário também houve outras organizações que não funcionaram.
É isso que estamos a tentar resolver, hoje em dia. A sociedade está cada vez mais complexa, a gente tem um nível de sindicalização que derrete porque a informalidade das relações laborais aumenta. Há vários partidos que estão muitas vezes mais preocupados em disputar o espaço do «quadradinho» do que em disputar a sociedade em si. Há muitos vícios que precisam de ser resolvidos, em vez de estarmos a pensar qual é o formato organizacional que vai resolver tudo isso. Eu acredito que se cada organização pode contribuir [para todos nós] com aquilo que consegue fazer melhor. Os partidos têm a possibilidade de trabalhar com a totalidade, os movimentos sociais estão focados em reivindicações específicas, os sindicatos estão muito mais voltado para a classe. O facto de os partidos terem essa possibilidade de articulação não significa que todo o militante precisa de ser um militante partidário. Eu sou uma pessoa nómada, não moro num país só, para mim não faz sentido estar atrelada a um partido único.
Sobre a questão da perspectiva internacionalista e a questão nacional. Na sua intervenção defendeu que havia vários tipos de nacionalismo. Algumas correntes da esquerda defendem que é necessário parar o processo de globalização e financeirização para poder actuar democraticamente sobre a economia. Acha que esse é o caminho certo?
A massificação de produtos de entretenimento, das séries de televisão às eleições estadunidenses, cria uma espécie de coincidência de perspetivas, como se fizéssemos todos parte da mesma sociedade. Há dias, enquanto procurava qualquer coisa para me entreter na televisão, concentrei-me numa daquelas ideias mais ou menos óbvias que o tédio nos provoca: o monopólio do entretimento americano. Em dezenas de canais, a esmagadora maioria das séries e filmes era estadunidense. A primeira reacção à minha própria ideia foi «Thank you, Doctor Obvious!» (uma expressão self-evident da própria ideia). Mas, na verdade, a minha observação estava a tentar ir para além da ideia de simples colonialismo cultural. Para minha sorte, Raquel Ribeiro escreveu no Contacto um interessante texto sobre a perceção que temos de nós próprios, da nossa identidade, e de povos de outras geografias políticas. Este texto levou-me a pensar nos motivos dessa perceção, na sua natureza, no desenvolvimento e no resultado social. «O fascínio pela cultura francesa e inglesa, que pretendeu sempre aproximar-nos daqueles cujo modelo de sociedade mais nos inspirava, alienou-nos da perceção do nosso desespero em estar no centro do «mundo civilizado» e da sofisticação cultural» Partindo do mote de Raquel Ribeiro, recordei outras leituras com as quais conclui que a construção da nossa imagem é histórica, forjada em acordos fundadores da realeza nacional e perpetuada pelo modelo expansionista e colonial português. Tudo isso me sugere que o dilema geopolítico, entre país imperialista e país periférico, criou uma perceção, uma ilusão e um fetiche de grandeza que vimos projetados e confirmados na nossa cultura, de Fernão Lopes a Camões ou Pessoa, acompanhados por equiparação às culturas mais proeminentes da Europa. O fascínio pela cultura francesa e inglesa, que pretendeu sempre aproximar-nos daqueles cujo modelo de sociedade mais nos inspirava, alienou-nos da perceção do nosso desespero em estar no centro do «mundo civilizado» e da sofisticação cultural. Um dos grandes exemplos dessa perceção é a corrida de cavalos em Os Maias, de Eça de Queiroz, também ele responsável pelo fetiche das culturas europeias. Ao longo do séc. XX, a hegemonia da cultura dominante foi-se transformando e mudando de geografia. Se para a geração dos meus pais a influência francesa determinou a sua forma de olhar para o mundo, para a minha geração foi a cultura anglo-saxónica que criou as bases para a perceção que o indivíduo tem de si próprio e que funcionou como um espelho da sua identificação no mundo tal como lhe é apresentado. A essa substituição não são alheios os desenvolvimentos económicos e tecnológicos que acompanharam aquele século e que hoje se consolidaram. Aqui, resulta bem uma ironia do Prof. Ernesto d’Andrade, da Faculdade de Letras de Lisboa: «o know-how ou, como se diz em bom português, o savoir-faire». Há, aliás, uma cena na série francesa Baron Noir que consegue representar, ainda melhor, as camadas de substituição cultural pelas quais já passámos: num encontro entre a presidente francesa e o chanceler alemão, a língua escolhida para comunicarem é a inglesa. Confio na intencionalidade da cena. «Ao longo do séc. XX, a hegemonia da cultura dominante foi-se transformando e mudando de geografia. Se para a geração dos meus pais a influência francesa determinou a sua forma de olhar para o mundo, para a minha geração foi a cultura anglo-saxónica que criou as bases para a perceção que o indivíduo tem de si próprio e que funcionou como um espelho da sua identificação no mundo tal como lhe é apresentado» É claro que hoje há mais portugueses a viajar, ainda que por períodos curtos, num modelo de turismo rápido. Podíamos concluir que uma parte dessa experiência tem uma grande influência na perceção dos portugueses do seu lugar no mundo. Mas essas mesmas viagens são o resultado de um mercado de tendências, influenciadas, em primeiro lugar, pelos produtos de entretenimento e pelo algoritmo do gosto. O papel das redes sociais, nesse domínio, tem sido fundamental, não no sentido do indivíduo que procura o destino mas do destino que procura o indivíduo. Para uma perceção mais realista será necessário permanecer a médio ou longo prazo, como no exemplo dado por Raquel Ribeiro, onde nos podemos confrontar com relações de poder impossíveis de avaliar numa breve visita de lazer. Porque é antes de iniciarmos a viagem que nasce a perceção que temos de nós e daqueles que consideramos nossos semelhantes. A aparência de estarmos entre semelhantes é-nos trazida por um modelo de ficção que reflete uma perspetiva sobre a sociedade, sobre padrões morais e até sobre a geopolítica. Chega até a ser difícil distinguir entre o que é ficção e propaganda, porque tudo é produto de entretenimento. A massificação desses produtos de entretenimento, das séries de televisão às eleições estadunidenses, cria uma espécie de coincidência de perspetivas, como se fizéssemos todos parte da mesma sociedade. Mas quando os americanos nos identificam com Espanha ou nos colocam a desempenhar papéis de classes baixas (nas raras oportunidades em que os portugueses têm direito à existência ficcional) ficamos surpreendidíssimos e colocamos a possibilidade de assim ser porque (1) os americanos são muito ignorantes ou (2) os nossos emigrantes, coitados, são pessoas simples, mas quando nós formos lá mostraremos que somos extremamente sofisticados, deslumbraremos com o nosso cosmopolitismo e com a nossa cultura e resolveremos tudo. Porque somos brancos, claro, e não pobres hispânicos. Até temos António Guterres a ocupar o lugar de topo da Benetton da geopolítica. «A aparência de estarmos entre semelhantes é-nos trazida por um modelo de ficção que reflete uma perspetiva sobre a sociedade, sobre padrões morais e até sobre a geopolítica. Chega até a ser difícil distinguir entre o que é ficção e propaganda, porque tudo é produto de entretenimento» Enquanto consumidores do monopólio do entretenimento, é inevitável consolidarmos as perspectivas que nos são dadas e essa consolidação terá um efeito na aceitação ou rejeição do discurso político dominante. Não se pode achar que toda a gente usa plataformas de streaming e que tem acesso aos mesmos produtos. Até essa ideia de que estamos todos a ver o mesmo é resultante do modelo de sociedade que vemos projetado na ficção e na tendência crescente para a distopia realista e nos produtos baseados numa história verídica. Os filmes e séries de ação, de espionagem e policiais promovem subliminarmente perspetivas morais e estéticas estadunidenses sobre a sociedade (interna e internacional), muitas vezes sem qualquer rigor histórico – uma velha tradição de Hollywood que se foi aperfeiçoando. Não se trata apenas do velho cliché dos EUA a salvar o mundo, mas a ideia de as suas próprias convicções se tornarem o padrão moral do mundo. E essas convicções profundas (o bom capitalismo e o mau capitalismo) servem tanto a democratas como a republicanos e servem, também, outras geografias influentes como o Reino Unido e a Alemanha. São essas geografias que vão determinar quem é branco e quem não é, o que são classes sociais e como olhamos para elas, que ideia temos de desenvolvimento e de progresso, o que é o multiculturalismo ou a solidariedade internacional, o que é a normalidade e o que não é. Enfim, o que é certo e o que é errado. Esta tem sido, para já, uma das formas mais eficientes de o modelo económico capitalista sustentar a sua posição, tal como demonstra Mark Fisher em Capitalism Realism (Zero Books, 2009), onde se mostra como dentro do próprio sistema nascem produtos que o denunciam e que, ao mesmo tempo, o alimentam. Porque, na verdade, a massificação dessa denúncia só é possível dentro das suas próprias regras, com as suas próprias ferramentas e promove mais a ilusão de pertença a uma vanguarda iluminada do que a pertença real a uma classe explorada. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
A revolução será ao vivo
Contribui para uma boa ideia
Acho que uma crítica da financeirização é fundamental, porque se entra não só na discussão das coisas estarem «desatreladas» da produção, das coisas materiais da vida, como é que a financeirização está a tornar também as coisas cada vez mais complicadas em termos de identificação dos antagonismos. Quando falamos, por exemplo, do agronegócio, as pessoas têm ideia que o dono do agronegócio é aquele grande latifundiário que está parado sentado sob um grande pedaço de terra que só produz monocultura. Mas hoje em dia, o agronegócio é banco, é fundo de investimento. Actualmente, as sementes danosas são «empacotadas» em títulos de investimento, que são comprados por fundos de pensões de trabalhadores que estão sindicalizados em outra parte do mundo. A financeirização está a criar novas contradições que precisam de ser trabalhadas. Aqui coloca-se a questão do que é a privatização de certos direitos, por que é que o trabalhador sindicalizado está a gastar dinheiro em fundos de pensões? Porque não têm uma Segurança Social que do ponto de vista público seja realmente suficiente para garantir uma vida digna quando chegar à terceira idade.
Nesse combate contra a financeirização da vida em si tem que de falar verdade: o mercado financeiro cresce em brechas que estamos a deixar abertas. A economia financeira capitalista tem-se aproveitado disso, quando se vêem pessoas em pobreza, que deviam estar reformadas, mas que a sua reforma é tão miserável que elas começam a fazer entregas com aplicações como a Uber. O sistema capitalista vai falar de uma história de superação, a vida estava difícil e a pessoa conseguiu superar as dificuldades, mas isso só está a acontecer porque essas pessoas não tinham condições de uma vida digna.
Se se deixa os direitos sociais serem erodidos, a financeirização da vida vai tomar conta de tudo.
A ideia de uma desfinanceirização no quadro do capitalismo não se baseia num equívoco de que há sectores da burguesia nacional que são desenvolvimentistas e que se opõem a uma burguesia rentista? Hoje, os capitalistas que produzem carros não são também ligados à financeirização: o seu negócio de vender carros, também significa a criação dos créditos para os comprar, e as suas empresas estão maioritariamente cotadas em bolsa. Nas análises de André Singer essa foi uma das razões apontadas para a queda do governo de Dilma Rousseff: a incapacidade de encontrar o apoio de uma burguesia desenvolvimentista que se opusesse aos sectores que lucram com a financeirização, porque essa divisão de facto não existe mais.
Um dos problemas da contradição do lulismo em si, é não perceber que trabalhar com a burguesia desenvolvimentista ou rentista será sempre uma armadilha. Um problema que afecta boa parte do que se chama a maré rosa em grande parte da América Latina [a vitória de partidos de centro-esquerda e esquerda em vários países desse continente]. Existem alguns factores, voltando à questão da natureza, que nos auxiliam um pouco na análise. Quando se pensa que a água não será mercadoria, então vamo-nos opor não só a empresas que querem especular em relação ao valor da água, mas também a qualquer passo que pretenda retirar a água do controlo público.
A WikiLeaks revelou documentos, há bastante tempo, de como a Nestlé calculava o valor optimizado da água no deserto e qual seria o seu preço no futuro. A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, falou que o próximo recurso estratégico do futuro vai ser a água.
Se colocarmos uma barreira agora a estas tendências de especular, privatizar e financeirizar esse recurso fundamental à vida de todas as pessoas, vamos conseguir conquistar certas protecções.
Como aconteceu na Bolívia com a revolta de Cochabamba.
Sim, na Bolívia chegaram a esse processo de financeirização extrema da água e foi o povo que conseguiu derrotar essas intenções e leis na base de muitas manifestações e mortos. As pessoas sacrificaram-se para impedir que lhes fosse tirada a água. O problema é que muitas vezes isso não é colocado assim, é-nos dito que a água não vai ser privatizada, mas falam-nos numa parceria público-privada (PPP), como forma de administrar essa mesma água. E assim vão abrindo brechas. Tem de se dizer absolutamente: não. Não se pode aceitar que determinadas coisas possam ser pensadas numa lógica privada, porque em alguma altura vai-se abrir a porta a qualquer coisa muito pior. Acho que a educação é outro exemplo que devia merecer, nesse sentido, a nossa atenção. No Brasil - o Banco Mundial é um grande responsável pela difusão dessa ideia -, está a impor-se a concepção que não se pode ter educação pública, universal de qualidade para todas as pessoas em todos os níveis de ensino. Recentemente, determinados sectores políticos defenderam que se devia introduzir propinas, para aqueles que podem pagar, nas universidades públicas. Uma vez que se fizer isso, começa-se a dividir as pessoas entre aquelas que são beneficiadas pela política pública e aquelas que são consumidoras. O que muda toda a lógica do ensino público e abre a porta à sua privatização e destruição. A educação torna-se, assim, cada vez mais uma mercadoria, mesmo no sistema público.
Abriu-se essa porta, vai-se abrir portas para coisas muito piores. É uma Caixa de Pandora.
No seu livro Sintomas Mórbidos, a Encruzilhada da Esquerda Brasileira defende que mais que uma crise de representação, a esquerda vive uma crise de práxis, o que implica uma crise simultânea de capacidade de análise teórica e das formas da sua aplicação à luta de todos os dias. O que seria necessário para ultrapassar esta crise de práxis?
Uma coisa central para mudar isso é entender que a unidade é onde se chega e não de onde se parte. Existe uma dificuldade de entender que não é preciso concordarmos com tudo para se conseguir fazer qualquer coisa juntos. Isso está muito reflectido em processos tanto de sectarismo como de vanguardismo na esquerda. «A minha posição tem de vencer e aí eu vou aceitar vocês andarem com a gente» ou «todo o mundo vai ter de ir para a minha organização, caso contrário não é meu camarada e não vamos fazer coisas juntos». Isso mantem um círculo vicioso que não tem levado a lugar nenhum.
Segundo o estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, mais de metade dos domicílios brasileiros vivencia algum nível de insegurança alimentar. Cerca de 19 milhões de pessoas passam fome no contexto da pandemia do coronavírus no Brasil. Uma pesquisa realizada em Dezembro de 2020 mostra que, nos três meses anteriores à recolha de dados, mais de 116 milhões de pessoas conviveram com algum grau de insegurança alimentar, não tendo acesso pleno e permanente a alimentos. Isto significa que mais de metade dos domicílios brasileiros sofreu algum tipo de privação. De acordo com o estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), a percentagem de famílias nesta situação era de 55,2%. Destes, refere a pesquisa, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estavam a passar fome (insegurança alimentar grave). No relatório apresentado, afirma-se que «a fome no Brasil é um problema histórico, mas houve um momento em que fomos capazes de combatê-la. Entre 2004 e 2013, os resultados da estratégia Fome Zero, aliados a políticas públicas de combate à pobreza e à miséria, se tornaram visíveis». Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2004, 2009 e 2013, registou-se «uma importante redução da insegurança alimentar em todo o país», sendo que, em 2013, «a parcela da população em situação de fome havia caído para 4,2%» – levando a que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) excluísse o Brasil do Mapa da Fome que divulgava periodicamente. A observação é de Kelli Mafort, dirigente do MST, que analisa o agravamento da crise no Brasil e fala do ano que termina, sublinhando que a «prioridade é salvar vidas». A perda de rendimentos das famílias brasileiras e o agravamento da fome no país devem fortalecer a luta pela reforma agrária em 2021. Esta é a avaliação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que este mês lançou o seu Caderno de Formação n.º 53, intitulado A luta de classes no campo e a luta por reforma agrária popular. «Não é uma questão de escolha. É uma questão de necessidade», destaca Kelli Mafort, que faz parte da direcção nacional do movimento. «Com o fim do auxílio de emergência, os índices ligados à pobreza extrema devem aumentar, com a falta de perspectiva de trabalho e rendimento, e a reforma agrária virá com muita força no ano de 2021», prevê a digirente em declarações ao Brasil de Fato. O MST reconhece que a pandemia continua a condicionar a organização popular, uma vez que impede as aglomerações e impõe a necessidade de distanciamento social. Em 2020, as ocupações de terras levadas a cabo pelo movimento foram interrompidas, de modo a evitar a propagação do novo coronavírus entre os camponeses. «Para nós, a prioridade é salvar vidas, aquelas que estão sendo desprezadas pelo governo brasileiro numa campanha negacionista, antivacina», declara Mafort. «Estaremos com os movimentos na rua assim que a vacina [da Covid-19] nos assegurar essa possibilidade», acrescenta. O MST participou em duas disputas frontais com o agronegócio que tiveram repercussão nacional no ano que agora finda. A primeira ocorreu em meados de Agosto, com o despejo violento de duas áreas do acampamento Quilombo Campo Grande, em Campo do Meio (estado de Minas Gerais), onde viviam sete famílias. A região é ocupada há mais de 20 anos por 450 famílias camponesas, que se notabilizaram pela produção do Café Guaií, um dos líderes da produção agroecológica do MST, informa o portal brasileiro. O principal beneficiário do despejo foi João Faria da Silva, dono da marca Terra Forte e um dos maiores exportadores de café do mundo. «Essa disputa tem uma simbologia interessante, porque são duas produções de café com relações sociais completamente distintas», analisa Mafort. «Por um lado, trabalho análogo à escravidão, expropriação de terras, de direitos. Por outro, o Café Guaií, que representa a agroecologia, que brota de uma luta pela divisão de terras, contra o machismo». O MST considera que o governador Romeu Zema (Novo), que autorizou o uso da força contra o acampamento, representa os mesmos interesses de Bolsonaro, e que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais foi subserviente ao projecto do agronegócio ao autorizar o despejo em plena pandemia. O segundo episódio de grande repercussão foi protagonizado pelo secretário de Assuntos Fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Nabhan Garcia. A Força Nacional foi enviada para assentamentos do MST no Sul da Bahia sem a autorização do governador do estado, Rui Costa (PT), e voltou sem alcançar o seu objectivo, depois de questionada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). «Na prática, o que eles tentam é dividir e cooptar as famílias», avalia Mafort. «Dessas duas acções, ficou a lição de muita resistência e organização da nossa base e de muita mobilização da sociedade brasileira, com forte apoio internacional nos dois episódios», disse. O ano de 2020 fica também marcado pela solidariedade, sendo que o MST doou quase 4000 toneladas de alimentos da agricultura familiar para famílias em situação de vulnerabilidade social. Só no estado do Paraná (Sul do Brasil), foram doadas 442 toneladas de alimentos, oriundos da produção de 52 acampamentos e 121 assentamentos da reforma agrária. «A solidariedade se impôs como uma necessidade, e os movimentos populares foram os primeiros a perceber isso, antes do Estado ou de qualquer empresa», lembra a dirigente do MST. «Os nossos alimentos encontraram panelas vazias, numa situação desesperadora», sublinhou. Plano Emergencial da Reforma Agrária Popular, lançado pelo MST em Junho, estabelece como medida urgente, por exemplo, a expropriação de terras de evasores fiscais para assentamento de famílias camponesas. O documento também propõe o uso de terras próximas a centros urbanos, em parceria com municípios, para produção de alimentos, garantindo terra, trabalho, tecto e alimentos saudáveis para famílias empobrecidas e criando um «cinturão verde» em torno das cidades. Em 9 de Dezembro último, o MST registou uma Acção de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF, em que questiona a paralisação dos 413 processos de desapropriação e aquisição de terras para reforma agrária ao início do governo Bolsonaro, e pede a destinação de terras públicas para a reforma agrária, como previsto na Constituição brasileira. «O ano de 2021 vai ser muito difícil, do ponto de vista dos embates que teremos. E, com certeza, a sociedade brasileira poderá contar com o MST, seja nas acções de solidariedade – que não pararam por nenhum dia e vão continuar –, seja nos trabalhos de base, organizando o povo para lutar e derrotar esse projecto de morte», afirmou Mafort. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. Mas o êxito alcançado na «garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável foi anulado», revela o estudo. «Os números actuais são mais do que o dobro dos observados em 2009», precisa. O retrocesso mais acentuado deu-se nos últimos dois anos. Entre 2013 e 2018, a insegurança alimentar grave teve um crescimento de 8% ao ano. Entre 2018 e 2020, a aceleração foi ainda mais intensa: a fome aumentou 27,6% ao ano. De acordo com a pesquisa, que abrangeu 2180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais, a insegurança alimentar cresceu em todo o Brasil, com especial incidência nas regiões Norte e Nordeste, que registam índices de insegurança alimentar acima dos 60% e 70%, respectivamente. Já a insegurança alimentar grave (fome) esteve presente em 18,1% dos lares do Norte e em 13,8% do Nordeste. Renato Maluf, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, especialista em segurança alimentar e coordenador Rede PENSSAN, afirma não existirem indícios de que a situação melhorou este ano. «Temos todas as razões para achar que nesses primeiros meses do ano a situação se agravou», disse, em declarações ao Brasil de Fato. Para o especialista, nenhum dos factores que influenciam a segurança alimentar das famílias melhorou nos últimos meses, nomeadamente a garantia de emprego e o rendimento, cada vez mais debilitados. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em Janeiro havia cerca de 14,3 milhões de pessoas desempregadas no Brasil, o que significa um aumento de 19,8% num ano. O país sul-americano iniciou 2021 atingindo um número recorde de desempregados. No trimestre encerrado em Janeiro, eram 14,272 milhões, mais 211 mil em relação a Outubro de 2020, mas com um acréscimo de 2,35 milhões (19,8%) face a igual trimestre do ano anterior, quando o desemprego atingia 11,9 milhões de brasileiros, segundo o IBGE. Os dados foram divulgados esta quarta-feira e fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do instituto referido. Embora a taxa de desemprego (14,2%) tenha ficado praticamente estável por comparação com o trimestre anterior, encerrado em Outubro, cresceu três pontos num ano e é a mais elevada para este período – um trimestre até Janeiro – alguma vez registada pelo Instituto. O organismo responsável pelas estatísticas indicou igualmente que o contingente de pessoas com trabalho aumentou 2%, alcançando agora 86,025 milhões. Por comparação com o trimestre encerrado em Outubro, foram mais 1,725 milhão de pessoas integradas no mercado de trabalho, informa o Brasil de Fato. Segundo a fonte, esse aumento verifica-se sobretudo em função da população com vínculo informal, ou seja, de pessoas que trabalham de forma autónoma ou sem contrato de trabalho. O número de trabalhadores empregados nestas condições no sector privado cresceu 3,6% no trimestre encerrado em Janeiro face ao trimestre imediatamente anterior, o que representa um aumento de 339 mil pessoas. Já os trabalhadores por conta própria aumentaram 4,8% no mesmo período (mais 826 mil pessoas). Assim, segundo os dados divulgados pelo IBGE, a taxa de trabalhadores informais no Brasil no trimestre encerrado em Janeiro foi de 39,7%. O número de desempregados desencorajados – trabalhadores que não procuraram trabalho, mas que estão disponíveis para trabalhar – foi estimado em 5,9 milhões, o maior número registado desde o início da série histórica da pesquisa, em 2012. Em relação a igual período do ano passado, registou-se um aumento de 25,6% de desempregados desencorajados (mais 1,2 milhão). Ainda segundo o IBGE, os subutilizados (pessoas que gostariam de trabalhar mais) são agora 32,380 milhões. A taxa de subutilização é de 29%, face a 29,5% no trimestre anterior e a 23,2% há um ano. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. «Outro indicador indirecto é verificar como aumentaram as manifestações de preocupação em relação à fome e as acções de solidariedade. Então, seja pelo agravamento dos determinantes, seja pela maior presença do tema nos debates públicos, tudo nos leva a crer que a situação só fez piorar», frisou. Para travar o aumento da fome no Brasil, Renato Maluf aponta que é preciso retomar de imediato o auxílio de emergência, com valor suficiente para que o apoio ao sustento das famílias seja efectivo. «Esse auxílio que o governo está retomando essa semana não vai dar para muita coisa», alertou. Além disso, entende ser necessário trabalhar politicamente com vista à retomada do emprego e preservação dos pequenos negócios. A longo prazo, Maluf defende que serão precisas iniciativas mais fortes nas políticas de abastecimento. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Internacional|
Mais de 19 milhões de pessoas passam fome no Brasil com a pandemia
Um problema histórico, mas que chegou a ser combatido eficazmente
Internacional|
Agravamento da fome deve reforçar luta pela reforma agrária no Brasil
Lutas com maior repercussão em 2020
Solidariedade no terreno
Luta pela reforma agrária
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Nada indica que a situação tenha melhorado
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Brasil regista número recorde de desempregados
Quase seis milhões de desencorajados
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Se pensarmos num assunto concreto, como a fome no Brasil, entendemos que precisamos de reforma agrária, agro-ecologia, combater a crise ecológica, precisamos de uma outra função logística, de combater os agrotóxicos. Várias coisas são essenciais para combater o problema da fome. Mas não é possível fazer todas as coisas ao mesmo tempo e pelas mesmas pessoas. Daí a necessidade de juntar os esforços de muita gente. Existem pessoas que se dedicam à questão da reforma agrária, outras que se dedicam a técnicas de agro-ecologia e outras que estão a ajudar a garantir que nos espaços da sociedade, em que há mais carência, os alimentos cheguem lá. Outros estão a apostar em hortas locais, de modo a que as pessoas tenham mais autonomia alimentar. Tendo tudo isso, encontramo-nos na luta.
O centro do problema é as pessoas com fome, muita gente está interagindo com essas pessoas em todos os lugares, e quem está com fome percebe que precisam de se organizar e lutar. E aí costuma acontecer mais um problema: as organizações políticas começam a disputar as lideranças locais que surgem nesses processos de luta, e ficam a disputar em vez de entender que era mais produtivo apostar cada uma delas em funções em que têm um maior histórico e maior trabalho, deixando que eventualmente algo maior possa surgir do movimento e da sua pluralidade.
Mas dentro dessa pluralidade não é necessário ir criando um sujeito colectivo que possa disputar o poder e lutar contra o capitalismo?
As ideias não deixam de ser diferentes no momento do enfrentamento. Vê-se uma ocupação e aí vem o Estado e despeja as pessoas. Contra isso surgem outras pessoas e colectivos que se vão solidarizar com os que estão a ser despejados. Elas criam laços de confiança entre si e entendem que talvez aquela outra organização com a qual disputavam narrativas na sociedade tem ideias muito mais parecidas do que pensavam. E aí podem-se ter processos de fusão organizativa ou criarem-se momentos para resolver problemas mais temporários, como coligações, frentes e redes que podem trazer outros tipos de sinergias.
Essa defesa da importância de todas as lutas, e como elas se podem estender, não está muito próximo das ideias de Laclau sobre as demandas não satisfeitas, as cadeias de equivalência e como as lutas parciais podem ser universalizadas?
Não, porque eu acredito que nesse sentido tem de se ter uma política coordenada, embora não sectária. As coisas não se encaixam automaticamente, a gente tem de identificar essas sinergias e aí ter uma política coordenada. Eu acredito que as organizações devem incentivar a sua aproximação com outras organizações. E sobretudo é preciso, em vez de disputar e concorrer em terrenos de luta, trabalhar em conjunto.
Como é que se passa para a questão do poder de Estado?
Não existe apenas um poder.
Certo, mas o poder de Estado é uma cristalização de uma correlação de forças, e de alguma forma é preciso usá-lo para afrontar outros poderes, nomeadamente para combater poderes económicos que exploram e poluem.
Claro que isso tem importância. Sou contrária à tese de John Holloway. Eu acredito que é muito importante conquistar o poder. Mas fazê-lo não se limita à disputa institucional. É preciso alterar a correlação de forças. Precisa de ter uma alta capacidade de mobilização, que é uma das grandes falhas das experiências de esquerda, é que elas chegam ao governo e pensam que podem fazer mudanças com uma mobilização baixa, para que não estejam permanentemente a criticar o governo e o partido. É também fundamental manter a diferença entre partido e governo. Um dos erros do PT, no Brasil, foi que confundiu o partido e o governo.
É possível essa mobilização permanente? Usando uma metáfora, nós não estamos sempre em estado de paixão e certamente é impossível estar sempre em momento de explosão revolucionária. Não é necessário, passando essa fase, criar outras instituições de uma sociedade nova que permitam mudar as coisas sem um estado de mobilização permanente?
A paixão dura no máximo seis meses. Vamos dar um exemplo concreto político, podemos pensar nas comunas na Venezuela, que apesar das dificuldades que o país enfrenta, têm uma autonomia relativa tanto em relação ao PSUV (Partido Socialista Unificado da Venezuela), como em relação ao governo de Maduro. Isso é interessante, porque obriga o governo e o PSUV a dialogar com as comunas, porque se elas não estiverem de acordo as coisas não vão funcionar. Esta criação de outras instâncias, seja na Venezuela, que é ainda um país capitalista, seja historicamente na União Soviética com os sovietes, mostra que as coisas só podem avançar se forem criadas outras instâncias que façam com que mais gente se reconheça como sujeito político. E quando isso não é feito, o poder acaba por cair.
O político não pode ser apenas a pessoa que está a ocupar um certo cargo. A dificuldade concreta, pensando o que seria o poder popular, é que muitas vezes ele pode bater no partido e no governo. Por isso, o partido tem de ter um papel central na gestão desses conflitos, por que ele trabalha com a totalidade.
As três comissões de trabalho do 8.º Congresso do PCC prosseguiram, este sábado, os debates para analisar as questões centrais da vida socioeconómica do país e do funcionamento do Partido. O desafio do Partido Comunista de Cuba (PCC) de crescer com a sua cantera natural, os jovens, foi uma das questões abordadas pelos delegados ao 8.º congresso, na comissão que está a debater o funcionamento do Partido e o trabalho ideológico, dirigida por José Ramón Machado Ventura, segundo secretário do Comité Central do PCC. O dirigente reconheceu que o colectivo partidário não é alheio ao envelhecimento da população cubana e ao decrescimento populacional, fenómeno que ocorre também noutros países. «Isso tem influência na redução da cantera de que se nutre o Partido», disse, embora tenha referido que, nos últimos anos, foi revertido o processo de diminuição da militância partidária, indica a Prensa Latina. Na véspera, o primeiro secretário do PCC, Raúl Castro, informou que o partido dos comunistas cubanos tem mais de 700 mil membros agrupados em mais de 58 mil núcleos. Durante a apresentação do Relatório Central ao congresso, Raúl considerou positivo o facto de ter sido travado o decrescimento nas fileiras vivido desde 2006. «É estimulante a entrada anual de 39 400 novos militantes, um terço dos quais provenientes da União de Jovens Comunistas (UJC), embora aumente a idade média dos militantes do PCC: 42,6% tem mais de 55 anos», disse. Raúl Castro destacou o aumento do número de jovens comunistas que se nutre da massa trabalhadora, de camponeses e trabalhadores agrícolas, garantindo que isso aponta para potencialidades não utilizadas para o crescimento do PCC, apesar da realidade etária e demográfica cubana. As autoridades do país caribenho e o próprio congresso alertaram que a juventude está na mira das campanhas e dos planos subversivos financiados por agências da administração dos EUA, em particular durante o mandato de Donald Trump. Este foi um dos muitos tópicos que, este sábado, os 300 delegados debateram nas comissões. A que analisa a política de quadros do Partido é liderada pelo presidente Miguel Díaz-Canel. Uma outra, presidida pelo primeiro-ministro, Manuel Marrero, tem na agenda a abordagem aos resultados socioeconómicos alcançados desde o congresso anterior. Na apresentação do Relatório Central ao congresso, Raúl Castro procedeu a uma análise profunda das tarefas que a militância empreendeu nos últimos cinco anos e abordou os principais desafios que o país enfrenta do ponto de vista económico, a questão do combate à Covid-19, a política externa e a denúncia dos planos de subversão contra Cuba, entre outros temas. Manifestando a sua confiança nos dirigentes mais jovens, o primeiro secretário do PCC, que vai deixar o cargo, reafirmou que os Estados Unidos representam a maior ameaça à paz e à segurança mundial, e isso explica o peso do bloqueio imposto por Washington à Ilha durante seis décadas, indica a Prensa Latina. Sobre a possibilidade de uma «verdadeira evolução positiva» na relação entre ambos os países, disse que a «agressiva conduta» da anterior administração norte-americana «reafirma com claras evidências que qualquer perspectiva», para que «seja sustentável, teria de estar associada à eliminação do bloqueio económico e da engrenagem legislativa que o sustenta». Neste sentido, reiterou a vontade de desenvolver um «diálogo respeitoso» e de «edificar um novo tipo de relações com os Estados Unidos, sem que se pretenda que, para o alcançar, Cuba renuncie aos princípios da Revolução e ao Socialismo, realize concessões inerentes à sua soberania e independência, ceda na defesa dos seus ideais e no exercício da sua política externa». Raúl Castro recordou que a primeira jornada deste congresso, em Havana, se realizou numa data transcendental para o país: o 60.º aniversário da proclamação por Fidel do carácter socialista da Revolução (16 de Abril de 1961), na despedida do luto pelos caídos nos bombardeamentos do dia anterior, prelúdio da invasão mercenária da Baía dos Porcos (17 de Abril de 1961). «O congresso termina a 19 de Abril, quando também comemoramos o 60.º aniversário da vitória sobre a investida mercenária», armada e financiada por Washington, destacou, citado pelo Cubadebate. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Internacional|
Crescer com a juventude, desafio para o Partido Comunista de Cuba
Sessão inaugural em data histórica
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Cuba oferece um exemplo interessante, para se ser deputado da Assembleia cubana não é preciso ser do partido comunista. As pessoas podem candidatar-se. Têm-se, portanto, vários elementos de mediação. O Partido Comunista Cubano é o que governa Cuba, mas não é aquele que controla a Assembleia. Tem de fazer a mediação entre uma geração que viveu a prosperidade da revolução e aquela que só viveu o bloqueio, e que acaba tendo certas amarguras e conflitos como as coisas são geradas. O papel do partido é perceber que tem de ter uma independência em relação ao governo para conseguir fazer essa mediação. E o governo tem de perceber que isso é fundamental. Não pode absorver partidos e movimentos sociais para dentro do seu aparato e achar que isso é participação popular.
Temos de tomar o poder, mas fazê-lo direito para não ser absorvido pela instituição na lógica do poder que estava antes. O lulismo sofreu muito por conta disso, e tem de fazer a crítica desse período.
Por que é que se considera comunista?
Comunismo, em relação ao que Marx e Engels defendiam, é uma sociedade totalmente emancipada, que não tem as amarras da propriedade privada e as pessoas conseguem viver em harmonia entre si, em sociedade, sem a exploração alheia. A concretização disso é algo que ultrapassa a nossa imaginação de hoje. Muitos dos problemas do comunismo só os vamos ver quando estivermos no comunismo. Tudo o que se vai fazer nessa sociedade, teoricamente sem dinheiro, sem circuitos de mediação, vai naturalmente gerar problemas novos. Para mim, o comunismo é o desejo de novos problemas. É preciso superar os problemas do capitalismo, para que finalmente estejamos com problemas mais avançados e dispostos e envolvidos para os resolver.
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