De mota ou de bicicleta fazem quilómetros para entregar maioritariamente comida, mas também outros bens. Andam todos pelas cidades de lés-a–lés pelo asfalto, levam todos uma mochila idêntica às costas, mas é a sua condição de classe que os une. Nunca param e a pandemia foi um claro exemplo disso.
Os estafetas das plataformas digitais são muitas vezes apenas chamados pelo nome da empresa para a qual trabalham, apesar das empresas não se quererem responsabilizar por eles. As gigantes multinacionais lucram com o seu trabalho, mas são eles, os trabalhadores, que não dormem horas suficientes, estão sujeitos ao perigo do cansaço acumulado enquanto conduzem horas a fio, são eles que pagam a gasolina e são eles os donos ou responsáveis pelos veículos. São eles que tudo fazem, são também eles que tudo perdem.
Tendo isto em mente, os estafetas da Glovo realizaram esta segunda-feira uma greve e várias concentrações - em Lisboa, Coimbra e Porto. A razão prende-se com uma nova flexibilização do serviço que irá fazer com que o número de pedidos para cada trabalhador caia e por sua vez fará com que recebam menos dinheiro. Num contexto onde tudo está mais caro, onde a inflação já é mais que uma palavra no dicionário, os trabalhadores arriscam-se a empobrecer ainda mais enquanto trabalham.
Esta indignação foi o ponto de partida que levou à criação de um grupo de whatsapp que juntou o máximo de trabalhadores possível. No espaço de uma semana, juntaram-se ao grupo mais de 600 trabalhadores e surgiu a ideia de avançar para uma greve e para concentrações. Em Lisboa, meia centena de trabalhadores juntaram-se no Terreiro do Paço, junto ao Terminal Fluvial, e aí fizeram parte da sua luta. O AbrilAbril deslocou-se ao local para falar com alguns trabalhadores.
No local falámos com Demétrio que tem 39 anos, é brasileiro e trabalha para a Glovo há 5 meses, apesar do mesmo dizer que passou por um processo de 10 meses até a sua conta ser aceite e activada. Passou a trabalhar para a Glovo «a 100%» em Dezembro, após ter sido despedido do seu antigo trabalho e, actualmente, esta é a sua principal e única forma de rendimento. Muitos vendem uma alegada flexibilidade da Glovo como um dos pontos positivos. Vendem neste trabalho o «sonho americano», vendem a ideia que cada trabalhador é o seu próprio empresário. Nunca dizem a dura realidade a que estão sujeitos.
O caso do Demétrio acaba por ser o reflexo da dura realidade. Segundo ele, de segunda a quarta trabalha 10 horas e de quinta a domingo trabalha 13 horas. Para justificar a acumulação de riqueza por parte dos CEO, dizem que esses trabalharam muito para chegar onde chegaram. Nunca os vemos é a trabalhar sujeitos a estes níveis de exploração: uma semana tem 168 horas e, por acaso, o Demétrio não trabalha metade dessas horas, que seriam 84 - trabalha 82 horas.
Para entendermos bem a questão, até porque só sabíamos que a acção ia acontecer, o Demétrio explicou-nos que nos últimos meses a Glovo diminuiu o valor das rotas de entrega «do ponto A ao ponto B», que «implica uma redução nos ganhos, e que significa um acrescento a todas as despesas com a mota ou gasolina». A par desta questão, vai passar a haver uma alteração no modelo de funcionamento da plataforma que deixará de contemplar agendamentos das horas de trabalho, uma forma inteligente que permite à Glovo dizer, cinicamente, que não tem nenhum vínculo com os trabalhadores.
Segundo o Demétrio, apesar das horas de trabalho não serem as melhores, até porque são feitas pelo facto de não haver um salário base e esta ser a forma de compensar, isto vai levar a que cada trabalhador trabalhe a qualquer hora sem nenhuma regulação, havendo horas em que todos estarão ligados em serviço. Verifica-se também que, além da redução do auferido por entrega, haverá assim menos entregas por estafeta.
Surge então o grande problema. O Demétrio, que acabou por ser um dos impulsionadores do que ele caracteriza como «movimento», diz que já houve tentativas de contacto com a administração da multinacional em Portugal, mas sempre sem sucesso porque não há nenhum humano com quem possam falar. Só existe um email ou a aplicação e para as reivindicações nunca há respostas.
Apesar disto, há uma consciência que há grande potencial de luta. Se em tão poucos dias tantos trabalhadores aderiram a um grupo, isso só demonstra que o patronato não se poderá esconder para sempre numa aplicação de telemóvel. Por enquanto, o Demétrio não tem conhecimento de trabalhadores com dificuldades económicas, mas diz que já se prevê que aconteça e, como tal, o desenvolvimento da luta terá que acontecer.
Após falarmos com o Demétrio, começámos a observar todos os trabalhadores. Notámos que todos falavam entre si, mas estavam algo divididos por barreiras linguísticas. Foi então que fomos falar com Haider Ali, de 37. O Haider está em Portugal há 5 anos, trabalha na Glovo há 3 anos e veio do Paquistão. Estava acompanhado por colegas que vieram da Índia, Bangladesh e Nepal.
Apesar de uma outra nacionalidade, o factor trabalho une o que o Demétrio e o Haidar dizem. Mesmo não falando bem inglês, o Haidar dizia que «temos que criar unidade, fazer passar a nossa mensagem e alcançar os nossos objetivos. Caso contrário, a Glovo não nos vai responder», acrescentando que «a empresa só quer saber do que o cliente diz e não do que nós dizemos».
Para o Haidar, isto é apenas o início. Para ele, a luta é o início e alertar as pessoas para o facto de trabalharem muito e receberem pouco. Dizia, apesar de estar meia centena no protesto, que «um dia vamos ser muitos mais». A situação é preocupante e, segundo ele, «está tudo a ficar mais caro e a Glovo passa a pagar menos. Fazemos 1,60€ por dois quilómteros. Somos nós que pagamos a gasolina, os telemóveis e o cartão de telemovel». A denúncia da sua situação não ficava pelo pouco que ganhavam. Para além disso, não têm férias, nem segurança na estrada e, caso algo lhes aconteça, a Glovo desresponsabiliza-se, mesmo trabalhando 10 horas/dia, no mínimo.
Apesar de ter receio de consequências negativas por ser imigrante, Haidar sabe que isto é necessário e mais uma vez repetia que «as pessoas vão ganhar consciência. Isto é necessário».
No final da concentração realizou-se um plenário improvisado. Em muito ajudou o facto de estar presente um dirigente da Interjovem-CGTP que, com o seu contributo e experiência, procurou dar consequência à acção. Seria fácil os trabalhadores ficarem por aqui, mas o plenário, mesmo que improvisado, levou os trabalhadores a afastarem tendências aventureiristas, discutir os melhores passos e a forma como se deviam organizar.
Neste pequeno momento respirou-se a profunda democracia. A discussão era feita em português e imediatamente traduzida de forma a que todos pudessem participar. Ficou fechada nova acção para o dia 2 de Junho, mas também os passos a dar até esse dia. Ficou definida uma divisão geográfica por Lisboa. Uns ficavam de contactar com os colegas em Oeiras, outros em Cascais, mais uns quantos em Sintra e uns tantos na cidade de Lisboa. Depois formaram grupos de trabalho dentro dos concelhos e, para facilitar, os portugueses e brasileiros, por facilidade linguística, passavam a palavra entre si, enquanto os indianos, nepaleses ou paquistaneses ficavam com a mesma responsabilidade com quem conseguiam falar.
A acção acabou com os estafetas a subirem para as motas, a substituírem as palavras de ordem pela buzinas e a entrarem na estrada para, todos juntos, mostrarem o seu descontentamento e fazerem-se ouvir. Deixamo-los de ver na primeira curva mas continuamos a ouvi-los.
Esta foi a primeira de muitas lutas. Foi o início de um processo que poderá ser longo, atribulado, mas trará certamente frutos.
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