«A luta de libertação na Guiné: Memórias cruzadas» dá o mote à acção desta tarde, no Palácio Baldaya, em Benfica (Lisboa), onde está patente uma exposição dedicada a Amílcar Cabral. Depois de uma visita guiada à mostra, pelas 17h30, segue-se a primeira de duas conversas, com Jerónimo de Sousa, ex-secretário-geral do PCP, e Mário Moutinho de Pádua.
«Em 1961 teve início a luta armada de libertação em Angola e foi aqui que nesse mesmo ano o jovem Mário Moutinho de Pádua desertou do exército português»,iniciando-se aqui «um dos percursos mais singulares na história do anticolonialismo e do antifascismo, percurso de que uma das etapas será a luta de libertação travada na Guiné pelo PAIGC, a cujos combatentes e militantes Pádua emprestará os seus saberes de médico», lê-se na apresentação da iniciativa.
Lembrar um dos principais dirigentes e ideólogos do movimento anticolonial africano, no dia em que se assinalam 50 anos do seu assassinato, é um gesto imprescindível para que seja convocada a reflexão sobre um passado colonial que ainda deixa demasiados e dolorosos vestígios em Portugal. Um dos fundadores do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), em 1956, Amílcar Cabral estudava muitos anos antes os problemas respeitantes ao colonialismo português e participara em diversas actividades na defesa da emancipação dos povos coloniais. Da necessidade de se criar o PAIGC, diz-nos Amílcar Cabral: «Em África não houve tais fenómenos que engendrassem partidos. Podemos pois dizer que trouxemos qualquer coisa de estranho introduzindo na nossa terra um partido, mas isto era necessário, assim como é necessária a charrua que não existe na nossa terra ou o tractor que não resultou do desenvolvimento económico do nosso país.»1 Amílcar Cabral e Aristides Pereira serão apresentados por Sofia Pomba Guerra, farmacêutica e militante do PCP a cumprir degredo em Bissau.2 Era em sua casa que estes dois e muitos outros cabo-verdianos se encontravam para ouvir as emissões em português do serviço da Rádio Moscovo, ou ainda para ler romances e jornais proibidos, como o Avante!, órgão central do PCP.3 E nestes encontros irão desenvolver paulatinamente o seu método de conspiração: formam pequenos grupos para discutir diversos assuntos culturais, e vão destacando os elementos considerados mais conscientes para com eles desenvolver posteriormente um trabalho político mais arriscado. Amílcar Cabral, nascido na Guiné-Bissau a 12 de Setembro de 1924, de pais cabo-verdianos, tinha passado a infância em São Vicente e viria a prosseguir os seus estudos no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, onde chega em 1945. Na altura em que se inicia a Guerra Colonial, Cabral tinha um conhecimento sobre a geografia, a economia e a sociologia dos povos do seu país comparativamente superior ao de muitos nacionalistas em fases similares noutras regiões. Uma das razões foi o facto de ter realizado o primeiro recenseamento agrícola do território. Este trabalho dar-lhe-ia a oportunidade de conhecer a estrutura agrária da Guiné profunda e pô-lo-ia em contacto directo com as pessoas mais influentes dos vários grupos étnicos.4 É no seguimento desse conhecimento que o PAIGC vai fixar como objectivos políticos do partido a liquidação da dominação colonial portuguesa, a criação das bases indispensáveis para a construção de uma vida nova para o povo da Guiné e Cabo Verde, a construção da paz, do bem-estar e do progresso contínuo. Define-se como partido democrático, progressista, anticolonialista e anti-imperialista. Estas posições são reveladoras, indiscutivelmente, do carácter antifascista do PAIGC e do movimento de emancipação que este dirigia. Num apelo aos portugueses feito num artigo na revista Partisans em 1962, Amílcar Cabral explica como encaram o regime fascista português: «É preciso reafirmar claramente que, embora sendo contra toda a espécie de fascismo, os nossos povos não lutam especificamente contra o fascismo português: nós lutamos contra o colonialismo português. A destruição do fascismo em Portugal deverá ser obra do próprio povo português, a destruição do colonialismo português será obra dos nossos próprios povos.»5 A realidade de outras guerras coloniais, nomeadamente a guerra na Argélia, não podia fazê-lo chegar a outra conclusão. Os regimes democráticos das potências ocidentais estavam longe de garantir por princípio a independência das respectivas colónias. Tendo como prioridade política a libertação do território do domínio colonial português, Cabral deixará pistas em vários momentos sobre o tipo de sociedade que deve ser construída quando alcançado esse objectivo, que reflectem a sua proximidade a convicções socialistas: «Na base da vida do nosso Partido, queremos destruir toda a possibilidade de aqueles que libertam a terra ou outros, que venham abusar do nosso povo amanhã. [sic] O nosso objectivo não pode ser o de ir tomar conta do palácio do governador para fazer na nossa terra o que aquele governador queria fazer.»6 Basil Davidson, citando Cabral, dá-nos mais um elemento sobre a posição deste em relação ao caminho a seguir: [construir uma nova sociedade], «nestas circunstâncias será necessariamente por meios socialistas, pois só existem dois caminhos abertos para uma nação se tornar independente agora: voltar à dominação imperialista (via neocolonialismo, capitalismo, capitalismo de Estado) ou mover-se rumo ao socialismo.»7 A partir de 1961, o partido decide instalar o seu secretariado-geral em Conacri, capital da República da Guiné. Entre outros, praticará uma política de estreitas relações internacionais com a Argélia e com a República Árabe Unida, inscrevendo-se num movimento mais amplo do que apenas o da luta contra o colonialismo português. «Tendo como prioridade política a libertação do território do domínio colonial português, Cabral deixará pistas em vários momentos sobre o tipo de sociedade que deve ser construída quando alcançado esse objectivo, que reflectem a sua proximidade a convicções socialistas (...)» Também a aliança com os países socialistas era estreita e o contributo em meios técnicos, humanos, e em apoio para a formação nos seus países foi significativo. O discurso em relação ao sistema socialista era claro: «Como toda a gente sabe, os países socialistas têm uma clara posição anticolonialista e anti-imperialista. Tal não acontece por acaso. Os partidos políticos que dirigiram a conquista do poder pelo povo nos países que hoje são socialistas eram partidos comunistas, cuja ideologia consistia na defesa intransigente dos interesses das massas exploradas – operários, camponeses e outros trabalhadores explorados – e que preconizavam a luta política, através da organização dessas massas exploradas, para acabar definitivamente com a sociedade capitalista e, em consequência, com a exploração do homem pelo homem.»8 Mas a política de não-alinhamento era considerada fundamental para alargar ao máximo uma base de apoio internacional que contribuísse para a conquista da independência: «É esta política que é a mais conveniente aos interesses dos nossos povos na etapa actual da nossa história. Estamos convencidos disso. Mas, para nós, não-alinhamento não quer dizer voltar as costas aos problemas fundamentais da humanidade, à justiça. Não-alinhamento para nós é não se comprometer com blocos, não alinharmos pelas decisões dos outros.»9 A escolha pela luta armada vai em grande medida depender dessa rede de solidariedade internacional, e a decisão só será tomada quando se consideram esgotadas as tentativas de acção legal dos grupos nacionalistas, que chocaram sempre com a barreira levantada pelas autoridades colonialistas portuguesas. É só após o massacre dos marinheiros do cais de Pidjiguiti, que exigiam direitos laborais, a 3 de Agosto de 1959, que o partido declarará a luta armada como única via possível para a independência. Os acontecimentos convencem Cabral da impossibilidade de desenvolver uma contestação baseada em métodos pacíficos. Numa acção de formação de quadros em 1965, Cabral apresentará a luta armada como o prolongamento da luta política, como último recurso: «O povo em armas. Essa deve ser a característica fundamental duma resistência armada, dum povo que luta pela sua liberdade. (…) Nunca é demais repetirmos que o objectivo fundamental da nossa resistência armada é realizar aquilo que não conseguimos só com política.»10 Mas não podemos desvalorizar o peso e a eficácia da acção diplomática levada a cabo por Amílcar Cabral durante os anos da Guerra Colonial, que seriam também os últimos anos da sua vida. O seu tempo era passado entre Conacri e as múltiplas viagens onde dinamizava conferências de imprensa, dava entrevistas sobre a situação da Guiné e realizava reuniões para motivar o apoio de outros países e instituições. Em Junho de 1962, Cabral representa pela primeira vez o PAIGC perante a ONU, através de um documento intitulado «O povo da Guiné perante as Nações Unidas». Em Janeiro de 1966, será em Havana, no decorrer da Tricontinental – Organização de Solidariedade dos Povos da Ásia, África e América Latina, que fará a intervenção considerada como uma contribuição teórica original no plano historico-filosófico, desenvolvendo a análise da marcha da luta dos movimentos de libertação nacional. «Não podemos desvalorizar o peso e a eficácia da acção diplomática levada a cabo por Amílcar Cabral durante os anos da Guerra Colonial, que seriam também os últimos anos da sua vida.» «Se é verdade que uma revolução pode falhar mesmo alimentada por teorias perfeitamente concebidas, ainda ninguém realizou uma revolução vitoriosa sem teoria revolucionária. Os que afirmam – e com razão – que a força motora da história é a luta de classes estariam certamente de acordo para rever esta afirmação, a fim de a precisar e de lhe dar um campo de aplicação ainda mais vasto, se conhecessem mais profundamente as características essenciais de certos povos colonizados, quer dizer dominados pelo imperialismo. Com efeito, na evolução geral da humanidade e de cada um dos povos que a compõem, as classes não aparecem nem como fenómeno generalizado e simultâneo na totalidade destes grupos, nem como um todo acabado, perfeito, uniforme e espontâneo. A definição de classes, no seio de um ou vários grupos humanos, é uma consequência fundamental do desenvolvimento progressivo das forças produtivas e das características da distribuição das riquezas produzidas por este grupo ou confiscadas a outros grupos. (…) Tudo isto permite levantar a seguinte questão: será que a história só começa a partir do momento em que se desenvolve o fenómeno «classe» e por consequência a luta de classes? «Se é verdade que uma revolução pode falhar mesmo alimentada por teorias perfeitamente concebidas, ainda ninguém realizou uma revolução vitoriosa sem teoria revolucionária.» Amílcar cabral Responder afirmativamente seria situar fora da história todo o período de vida dos grupos humanos que vai da descoberta da caça, e posteriormente da agricultura nómada e sedentária, até à criação dos rebanhos e à apropriação privada da terra. Seria então também – o que nos recusamos a aceitar – considerar que muitos grupos humanos da África, da Ásia e da América Latina, viviam sem história, no momento em que foram submetidos ao jugo do imperialismo. (…) Admitimos sem custo que este factor da história de cada grupo humano é o modo de produção – o nível das forças produtivas e o regime de propriedade – que caracteriza esse agrupamento. Mais ainda, como se viu, a definição de classe e a luta de classes são elas próprias o efeito do desenvolvimento das forças produtivas conjugadas com o regime de propriedade dos meios de produção. Parece-nos pois correcto concluir que o nível das forças produtivas, elemento determinante essencial do conteúdo e da fórmula da luta de classes, é a verdadeira e permanente força motora da história. Se aceitarmos esta conclusão, desfazem-se as dúvidas que perturbaram o nosso espírito. Porque, se de um lado verificamos que está garantida a existência da história antes da luta de classes e evitamos assim reduzir alguns grupos humanos dos nossos países – e talvez do nosso continente – à triste condição de povo sem história; por outro lado, pomos a claro a continuidade da história, mesmo após o desaparecimento da luta de classes ou das próprias classes. (…) A eternidade não é deste mundo, mas o homem sobreviverá às classes e continuará a produzir e a fazer a história, já que não se pode libertar do fardo das suas necessidades, das suas mãos e do seu cérebro, que estão na base do desenvolvimento das forças produtivas».11 Em Fevereiro de 1972, desloca-se a Addis Abeba para prestar depoimento perante a 163.ª Sessão do Conselho de Segurança. No final da sua intervenção, Cabral convida o organismo a enviar uma comissão ao interior da Guiné para confirmar a existência das zonas já libertadas pelo PAIGC. A visita terá lugar de 18 de Março a 9 de Abril de 1972. Por razões de segurança, os observadores são forçados a ficar mais tempo no terreno, o que constituirá uma importante vitória política. Este esforço diplomático será, desta forma, acompanhado da criação de uma organização económica e política nas zonas libertadas. Toda a orientação económica do PAIGC tem por preocupação a gradual melhoria do nível de vida das populações destas zonas. Aumentam-se as produções e diversificam-se as culturas, criam-se os Armazéns do Povo para fornecer à população artigos de primeira necessidade. O governo das regiões libertadas efectua-se através de vários órgãos, desde o Congresso, ao Conselho Superior da Luta, o Comité Executivo da Luta, o Comité Nacional das regiões libertadas. O trabalho político continua intimamente ligado à acção militar, já que corresponde às condições de clandestinidade a que o partido é forçado. O reconhecimento internacional da independência da Guiné deveria seguir o processo de eleição da primeira Assembleia Nacional Popular nas zonas libertadas, que se realizaria por sufrágio directo e universal, dando prova do controlo de território em certas zonas do país: o PAIGC mostrava uma máquina administrativa capaz de realizar um processo eleitoral em tempo de guerra, num território delimitado, e com uma população específica. A independência será proclamada unilateralmente a 24 de Setembro de 1973 e será consagrada a 10 de Setembro de 1974, após a revolução de 25 de Abril em Portugal. Amílcar Cabral já não assistiria ao desfecho da luta à qual tinha dedicado a sua vida, tendo sido assassinado a 20 de Janeiro de 1973. Estas são algumas notas de um percurso singular e que, por si só, impõe respeito. Pela inteligência com que articulou politicamente as posições de um povo em luta pela sua libertação, sem cedências de princípio, mas sem multiplicar trincheiras que poderiam ser contraproducentes, Amílcar Cabral foi capaz de propor, junto das reivindicações de uma luta anticolonial, um projecto de país que se transformaria muito para além da independência formal. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
Nos 50 anos do assassinato de Amílcar Cabral
Contribui para uma boa ideia
Jerónimo de Sousa, que começara a trabalhar aos 14 anos na MEC – Fábrica de Aparelhagem Industrial, em Santa Iria de Azóia, cumpriu serviço militar na Guiné, onde se encontra no início da década de 70, sendo mais tarde eleito deputado à Assembleia Constituinte. «Sentamos assim à mesma mesa as estórias de vida de duas pessoas que, de maneiras diversas, testemunham o cruzamento entre a história do anticolonialismo africano e a da resistência e revolução portuguesas», refere-se na apresentação. A moderação do encontro está a cargo da historiadora Maria Alice Samara.
A segunda conversa programada no âmbito da mostra, prevista para 23 de Maio, tem como tema «A morte escrita: dos obituários à meta-biografia».
«Amílcar Cabral, uma Exposição» conta a história do revolucionário assassinado em 1973, em Conacri, que deu um contributo decisivo para o fim do último império colonial europeu. O dirigente da luta de libertacão dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde, fundador e líder do PAIGC, vincou sempre que a luta dos povos africanos não era contra o povo português, «mas contra o governo fascista e colonialista de Lisboa». A mostra é uma iniciativa da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril, e está patente no Palácio Baldaya, em Benfica, até 25 de Junho.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui