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Futebol de Causas

O futebol pode ser uma plataforma poderosa no ativismo social e político. Os futebolistas, com toda a visibilidade mediática e influência junto das massas, têm a capacidade de chamar a atenção para questões importantes e de promover mudanças.

Créditos / GQ

Neste cenário mundial em constante mudança, quer desportivo, quer social, em que crescem as incertezas e as guerras, o futebol continua a ser um desporto de massas, que se reflete na união à volta das seleções nacionais (como se pode ver neste Campeonato da Europa de futebol) ou dos clubes. Esta modalidade desportiva atrai milhões de praticantes, que se entregam à paixão pela bola e pelo jogo e encantam milhões de adeptos por todo o mundo. Seja de forma mais organizada, nos clubes de bairro ou de aldeia, nos clubes mais profissionalizados, ou até mesmo de uma maneira improvisada, nos ringues das grandes cidades ou nos baldios dos campos, o futebol é uma experiência universal que transcende nações, gerações, religiões e géneros. Devido à sua projeção mediática, alguns atletas têm aproveitado para passar mensagens para as massas, agitando consciências quer a nível político, social ou ambiental.

A história do futebol português não é muito rica em momentos destes. Uma exceção é o caso da equipa de futebol da Associação Académica de Coimbra, cujo papel foi crucial na luta estudantil contra a ditadura fascista. Em pleno regime ditatorial fascista, os estudantes de Coimbra reivindicavam mais liberdade, melhor qualidade de ensino, melhores condições nos refeitórios universitários, menos censura e liberdade de associação e reunião.

No dia 22 de junho de 1969, a final da Taça de Portugal de futebol colocou frente a frente a Associação Académica de Coimbra - Secção de Futebol contra o galardoado Benfica de Eusébio. Neste dia, milhares de panfletos foram distribuídos pelos espectadores no Estádio do Jamor com um comunicado da Direção da Académica, onde se pedia mais direitos para os estudantes universitários. Pela primeira vez, o chefe de Estado não compareceu à final da Taça de Portugal, evidenciando o medo do regime face à crescente onda de protestos estudantis e à possibilidade de revolta da massa adepta naquele dia. Os jogadores da Académica entraram em campo com as capas negras e em marcha lenta como forma de protesto. Por pouco não venceram a Taça (o Benfica venceu no prolongamento com golo de Eusébio).

A Associação Académica de Coimbra utilizou os seus jogos de futebol como veículo para continuar a luta estudantil, demonstrando como o desporto pode ser um meio poderoso para a luta e para a mudança. Por esta altura, Coimbra era um farol de esperança e liberdade para todo o país, culminando anos mais tarde na Revolução dos Cravos a 25 de abril de 1974. No Brasil, um dos exemplos mais conhecidos de ativismo no futebol foi Sócrates, ícone do Corinthians. Sócrates foi o fundador da Democracia Corinthiana, um movimento que promoveu a gestão democrática do clube, dando voz a todos os seus membros, desde jogadores a funcionários. Este coletivo era uma das principais correntes da luta pela democracia num Brasil ainda sob o jugo de uma ditadura militar.

«Neste dia, milhares de panfletos foram distribuídos pelos espectadores no Estádio do Jamor com um comunicado da Direção da Académica, onde se pedia mais direitos para os estudantes universitários.»

A Democracia Corinthiana foi um movimento revolucionário que cresceu muito para além do futebol, influenciando a política e a sociedade brasileiras. Ao transferir-se para a Fiorentina, anos mais tarde, Sócrates afirmou, na conferência de imprensa que servia para apresentação aos adeptos, que a sua ida para Itália tinha como principal objetivo estudar e ler mais sobre Gramsci, reforçando o seu compromisso com a causa política.

Diego Armando Maradona, um dos maiores futebolistas de todos os tempos, também não se coibiu de se expressar a nível político. Numa Argentina assolada pela ditadura militar de Videla, Maradona usou a sua notoriedade para criticar o regime e apoiar causas populares. No futebol, foi crítico das medidas do futebol-negócio da FIFA de Havelange a Blatter, criticando a organização do Mundial de Futebol do México, em 1986, que tinha jogos ao meio-dia, sob calor abrasador, com o objetivo de aumentar as audiências televisivas na Europa. A força da sua voz ultrapassou as causas desportivas, tornando-se um símbolo de resistência. Maradona não teve medo de se posicionar de uma forma firme e convicta contra as injustiças, quer na Argentina, quer por onde foi passando enquanto futebolista, tornando-se grande amigo de líderes revolucionários como Fidel Castro e Hugo Chávez.

Eric Cantona, ex-jogador do Manchester United, é conhecido tanto pelo seu talento quanto pelo seu ativismo. Em 1995, durante um jogo frente ao Crystal Palace, Cantona protagonizou um incidente ao pontapear um adepto fascista que era militante do National Front (partido político britânico de extrema-direita, populista e fascista) durante um jogo do Man Utd. Este ato, embora controverso na altura, demonstrou a sua posição contra o racismo e o fascismo. Eric é neto de espanhóis republicanos que lutaram contra Franco na Guerra Civil Espanhola, o antifascismo corre-lhe nas veias. Em 2010, já depois de ter acabado a carreira futebolística, incentivou a população a retirar todas as suas economias dos bancos como forma de protesto contra um sistema financeiro que apenas beneficiava o grande capital, sufocando a vida do povo francês ao máximo, o que levou o presidente francês e a ministra da Economia, à data, Nicolas Sarkozy e Christine Lagarde, respetivamente, a pedirem em direto à população que não o fizessem. Atualmente, Cantona apoia ativamente a causa palestiniana e outras lutas por justiça social. A sua carreira foi marcada por uma série de atos de rebeldia, mas também por uma grande consciência social e política.

«No futebol, [Maradona] foi crítico das medidas do futebol-negócio da FIFA de Havelange a Blatter, criticando a organização do Mundial de Futebol do México, em 1986, que tinha jogos ao meio-dia, sob calor abrasador, com o objetivo de aumentar as audiências televisivas na Europa.»

O guarda-redes Claudio Bravo da seleção chilena manifestou-se publicamente contra as políticas neoliberais do presidente Sebastián Piñera em 2019, criticando a privatização excessiva que estava a ser levada a cabo pelo Governo no Chile (água, luz, gás, sistema de ensino, saúde, pensões, estradas, florestas, o sal de Atacama, os glaciares e os meios de transporte) e afirmando «que o país pertencia ao povo, não a um punhado de indivíduos».

Megan Rapinoe, capitã da seleção feminina de futebol dos Estados Unidos, é uma grande voz em defesa da igualdade salarial, direitos LGBT+ e justiça racial. Após o Mundial de Futebol, Rapinoe usou o discurso de vitória para exigir mudanças significativas na igualdade de género no desporto, destacando a disparidade salarial entre as seleções femininas e masculinas. Além disso, tem sido uma defensora fervorosa dos direitos LGBT+, utilizando a sua visibilidade para apoiar a comunidade e promover a inclusão. Para além da luta pela igualdade de género, Megan tem sido uma defensora da justiça racial, sendo uma das primeiras atletas a ajoelhar-se durante o hino nacional dos Estados Unidos em solidariedade com o movimento Black Lives Matter. Tudo isto fez dela uma das vozes mais influentes no panorama do desporto feminino a nível mundial.

Marta foi outra das futebolistas com mais brilhantismo na história do futebol feminino e, tal como Rapinoe, enquanto atleta, usou a sua visibilidade para lutar pela igualdade de género no futebol. Foi uma voz incansável na defesa da igualdade salarial e melhores condições para as jogadoras de futebol feminino. Durante o Mundial de Futebol Feminino de 2019, Marta fez um apelo às jovens jogadoras para lutarem pelos seus sonhos e pela igualdade, mostrando-se crítica do patriarcado instalado no futebol.

Asisat Oshoala, futebolista da seleção feminina da Nigéria, atualmente no Bay FC e ex-jogadora de Barcelona e Arsenal, tem sido uma defensora ativa dos direitos das mulheres e da educação das raparigas no seu país. Através da sua fundação, Oshoala organizou programas de desenvolvimento e bolsas de estudo para jovens raparigas, promovendo a educação e o desporto como ferramentas de emancipação feminina.

Marcus Rashford, estrela do Manchester United e da seleção inglesa, liderou uma campanha para fornecer refeições escolares de forma gratuita às crianças mais carenciadas do Reino Unido. Esta iniciativa foi crucial durante a pandemia do COVID19, quando muitas famílias enfrentavam dificuldades económicas, Rashford utilizou a sua plataforma para pressionar o governo britânico a manter o programa de refeições gratuitas, garantindo que milhares de crianças não passassem fome.

Héctor Bellerín, lateral do Real Betis e antigo jogador do Arsenal, tem sido outro dos futebolistas que tem utilizado a sua posição mediática para promover, neste caso, uma maior consciência ambiental. Quando jogava em Londres, no Arsenal, comprometeu-se a plantar milhares de árvores para cada vitória dos gunners e tem sido um defensor ativo de práticas sustentáveis, tanto na sua vida pessoal (veganismo e defesa dos direitos dos animais) como no futebol (é acionista do Forest Green Rovers, um clube de futebol com pegada de carbono zero que irá militar na National League inglesa na época 2024/25). Além disso, Bellerín apoia diversas iniciativas ecológicas, mostrando que os futebolistas também podem ter um papel crucial na luta contra as alterações climáticas.

Raheem Sterling, jogador do Chelsea e da seleção inglesa, é uma voz ativa contra o racismo no futebol e na sociedade. Sterling tem utilizado as suas redes sociais e entrevistas para denunciar atos de racismo e para promover a igualdade racial incentivando as autoridades a tomar medidas mais rígidas contra o racismo nos estádios de futebol.

Alphonso Davies, jogador do Bayern de Munique e da seleção canadiana, tem origens libanesas e nasceu num campo de refugiados no Gana, para onde fugiram os seus pais de uma guerra civil na Libéria. Tem utilizado a sua história pessoal como refugiado para apoiar causas relacionadas com os direitos dos refugiados e migrantes. Davies tem colaborado com a ONU para promover a consciencialização sobre os desafios enfrentados pelos migrantes e para angariar fundos para programas de assistência humanitária nos campos de refugiados.

Juan Manuel Mata, antigo jogador do Valência e Man Utd, é o fundador do projeto chamado Common Goal, que convida jogadores de todo o mundo a doarem 1% dos seus salários a projetos de caridade ao redor do mundo. Este movimento tem vindo a crescer e atraiu a participação de muitos jogadores um pouco por todo o mundo.

Vários outros jogadores e ex-jogadores de futebol têm demonstrado publicamente o seu apoio à causa palestiniana, utilizando as suas redes sociais para demonstrar solidariedade e consciencializar os seus seguidores sobre o genocídio levado a cabo pelo Estado de Israel contra o povo palestiniano, entre eles estão Benzema, Mané, Salah, Pogba, Hakimi, Mahrez, Slimani, Mohamed Elneny, Marega, Ozil e Arda Turan.

Nesta edição de 2024 do Campeonato da Europa de futebol masculino a decorrer na Alemanha, foram mais que uma as vezes que Kylian Mbappé e alguns dos seus colegas utilizaram as conferências de imprensa e as suas contas das redes sociais para apelar ao voto nas eleições legislativas francesas, alertando contra o perigoso crescimento da extrema-direita e do fascismo em França e o que isso pode significar para a população francesa no geral, essencialmente para a população racializada.

O número dez e capitão dos Bleus, um dos jogadores mais talentosos do mundo do momento, não se limitou às jogadas incríveis que nos vai presenteando no campo, tem sido também uma figura ativa na promoção de causas sociais, incluindo o combate ao racismo e na promoção da educação. Esta influência é sentida não apenas no bairro onde cresceu, mas um pouco por toda a França.

Atualmente, ao nível do nosso país temos Francisco Geraldes, que joga no Johor da Malásia, que tem utilizado as redes sociais para manifestar-se a favor de várias causas sociais. Recentemente, após marcar um golo, celebrou levantando uma camisola com a imagem de Cláudia Simões, condenada num caso envolvendo polícias na Amadora. Este gesto serviu para alertar o país de um caso que passou despercebido na generalidade da comunicação social e sublinhou o seu apoio à causa e o combate à discriminação racial.

Estes são alguns dos exemplos que demonstram como o futebol pode ser uma plataforma poderosa no ativismo social e político. Os futebolistas, com toda a visibilidade mediática e influência junto das massas, têm a capacidade de chamar a atenção para questões importantes e de promover mudanças. Assim, desejo que mais atletas percam o medo e se pronunciem sobre as injustiças sociais, levando a que isso agite a consciência das massas e desperte para a luta por um mundo mais justo.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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