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Ciência: um bem público e em disputa

Quando se desvalorizam os trabalhadores que desenvolvem investigação nas áreas da saúde, da tecnologia, do ambiente, dos transportes, da educação, da cultura, da história e património, todo um país fica refém das soluções encontradas (e vendidas) por outros.

CréditosJosé Sena Goulão / Agência LUSA

A ciência é produzida em Portugal, em grande medida, com recurso a trabalhadores com vínculos precários. Isto significa que os trabalhadores científicos, altamente qualificados, que são a mão-de-obra para o desenvolvimento da investigação, não têm qualquer estabilidade laboral. São os investigadores, necessidades permanentes do funcionamento do sistema científico e tecnológico nacional, mas também os técnicos que apoiam todo o trabalho desenvolvido, os que fazem a gestão administrativa e financeira dos projectos, os que comunicam esse conhecimento com o público académico e não-académico, em suma, mais de 90% deste universo.

Não existe sistema científico em Portugal sem estes trabalhadores que desempenham as mesmas funções todos os dias e contribuem, não só para a ciência, como para a sobrevivência financeira das instituições em que trabalham, nomeadamente instituições de ensino superior.

A exploração encontrou uma nova ferramenta quando se inventaram as bolsas de investigação científica: um contrato de exclusividade que não estabelece uma relação laboral, mas apenas garante um subsídio de manutenção a quem obtém este financiamento. Embora a investigação seja financiada pelo Estado, porque se entende existir um interesse público nesse projecto científico, o bolseiro que a desenvolve não é considerado um trabalhador. 

«Um sistema científico que trata desta forma os seus profissionais nunca vai dar resposta aos problemas e desafios de desenvolvimento de um país. Este é um problema de financiamento, mas também de democracia.»

Para além disso, os bolseiros usam as mesmas instalações e ferramentas que todos os investigadores, seja qual for a sua fase de formação. Há aqueles que vêem a sua investigação financiada e estão simultaneamente a obter o grau de mestre ou doutor. Mas muitos são os que, já doutorados, ou simplesmente contratados ao abrigo de um projecto para fazer determinado trabalho, são obrigados a fazer investigação nestas condições: sem subsídio de férias, nem de Natal, nem de desemprego, sem terem os seus direitos de parentalidade garantidos, sem descontos para a segurança social que correspondam aos seus rendimentos. As milhares de pessoas que estão sujeitas a este vínculo hiper-precário têm as suas vidas condicionadas e vêem alimentada uma narrativa de que devem estar agradecidas por fazerem o que gostam e por terem esta oportunidade de financiamento.

Desde 2017, uma parte destes investigadores que tinham somado décadas de bolsas de investigação, períodos sem rendimentos, e contratos a prazo, no âmbito deste ou daquele programa pontual, foram contratados ao abrigo de uma lei que prometia concretizar o acesso à carreira de investigação seis anos depois.

Aqui chegados, as promessas ficaram mais uma vez por cumprir. Os investigadores da chamada norma transitória estão a meses de terminar os seus contratos. A norma era «transitória», porque se pretendia que se transitasse para a estabilidade laboral. Nos anos seguintes, os investigadores continuaram a ser financiados com um programa de «estímulo ao emprego científico», com o mesmo objectivo: estimular o emprego científico estável e com direitos.

Não deixa de ser curioso que aqueles a quem atribuímos a responsabilidade de encontrar soluções científicas para os problemas da sociedade não tenham direito a trabalhar protegidos pelo código do trabalho. Estes trabalhadores não pedem mais do que a aplicação da lei. Para o trabalho, contratos de trabalho. Para funções permanentes, contratos permanentes. 

Hoje, estes trabalhadores saem à rua também para denunciar um programa que surge como resposta a este descontentamento, o FCT-Tenure, que não só é insuficiente na sua abrangência como introduz aspectos de uma injustiça intolerável. Não é aceitável que estes trabalhadores tenham que ir a concurso (internacional!), uma vez mais, para provar que merecem uma carreira para fazer o trabalho a que se dedicam há décadas, sempre sujeitos a dar provas da sua qualidade em busca de financiamentos competitivos para pagar a próxima renda da casa.

Um sistema científico que trata desta forma os seus profissionais nunca vai dar resposta aos problemas e desafios de desenvolvimento de um país. Este é um problema de financiamento, mas também de democracia. Porque, quando estamos a lutar por carreiras para os trabalhadores científicos, sabemos que o que está em causa é o modelo de sociedade em que queremos viver: queremos uma sociedade que escolhe valorizar quem se dedica a este serviço público que é a investigação científica. Quando se desvalorizam os trabalhadores que desenvolvem investigação nas áreas da saúde, da tecnologia, do ambiente, dos transportes, da educação, da cultura, da história e património, todo um país fica refém das soluções encontradas (e vendidas) por outros.

Os trabalhadores científicos continuarão a organizar-se e a lutar pelo acesso democrático ao conhecimento, à produção de conhecimento, e pela sua aplicação ao serviço da maioria.
 

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