No passado dia 19 de dezembro, os migrantes sul-asiáticos foram surpreendidos, na Rua do Benformoso, Martim Moniz, por uma rusga, designada «operação especial de prevenção criminal», executada pela Polícia de Segurança Pública (PSP) que fechou a rua, revistou lojas e forçou dezenas de pessoas a encostarem-se à parede para serem revistadas.
As imagens desta operação, sordidamente racista, circularam nas redes sociais, gerando um conjunto de reações contraditórias: por um lado, celebrações e deleites nauseabundos de chauvinistas, grupos racistas e xenófobos e, por outro, a vergonha, indignação e repúdio à desumanização por parte de inúmeras personalidades, colectivos e movimentos sociais.
A indignação também trouxe à tona a arraigada herança colonial, amplamente responsável pelo sucedido no Benformoso e, no geral, pela racialização do crime. A começar pelo presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho que, indignado, disse que «aquilo que aconteceu ontem [quinta-feira] é típico de uma ditadura islâmica ou de uma ditadura da América Latina». Eduardo Ferro Rodrigues, ex-presidente da Assembleia da República, indignado, por sua vez, declarou que a operação no Benformoso parecia «um Estado policial da América Latina ou do Médio Oriente». Posto isto, queremos dizer algumas palavras.
Primeiro, não precisavam procurar elementos comparativos no passado e/ou nas geografias distantes, porque esse género de operação policial, digna das Gestapos, não é, infelizmente, um ato isolado; é executada, habitualmente, nas periferias empobrecidas e racializadas, situadas às portas de Lisboa.
É regular e costumeiro a bófia atuar nos nossos Bairros como se comporta um exército de ocupação em território estrangeiro: entrar a disparar, derrubando as portas de lojas e casas, obrigando todas as pessoas a colarem-se às paredes, pontapeá-las para abrirem as pernas e/ou espremer os testículos dos jovens negros aquando das revistas, provando que o Estado de direito aqui está suspenso.
Essas práticas fascistas executadas pela polícia dos grandes grupos económicos acontecem com mais incidência nos bairros e sobre as pessoas «racializadas», mas são igualmente efetuadas em outros bairros pobres de Lisboa, Algarve e Porto. Isto demonstra que a condição periférica não é uma posição geográfica, mas uma questão de relação de poder: no centro geográfico de Lisboa há periferias cuja exploração e opressão não diferem das existentes nas periferias da cintura de Lisboa.
«(...)a condição periférica não é uma posição geográfica, mas uma questão de relação de poder: no centro geográfico de Lisboa há periferias cuja exploração e opressão não diferem das existentes nas periferias da cintura de Lisboa»
Segundo, a cínica designação de «operação especial de prevenção criminal» no Benformoso é na verdade uma manobra de retaliação e colagem à agenda anti-imigração da extrema-direita. Por um lado, foi concertada com um conjunto de outras operações policiais de repressão efetuadas nos bairros da Amadora e Loures, como retaliação à revolta e indignação das periferias após a morte de Odair Moniz, por um agente da PSP, ocorrido no dia 21 de outubro. E, por outro, é continuidade de uma campanha de criminalização de migrantes que começou com a operação de «fiscalização» de imigração irregular, segundo a própria polícia, iniciada a 08 de novembro de 2024.
Mas, espera aí! Não foi este mesmo governo que bloqueou a Manifestação de Interesse – tornando mais difícil a regularização de imigrantes, expondo-os à inúmeras vulnerabilidades que lhes impõe a aceitar péssimas condições de trabalho, sendo alvos de assédios, baixos salários, excesso de trabalho e a mordaça perante o medo da deportação? Não é esse mesmo governo que até a data não respondeu a milhares de pedidos de agendamento para regularização de imigrantes e atrasa o envio de cartões de autorização de residência?
O governo da AD, desde que tomou posse em Portugal, colou-se aos mitos, propagados pela extrema-direita, de que os imigrantes trazem mais crimes, vivem dos apoios sociais e que estão a substituir, demograficamente, os portugueses, para colher votos. Uma falácia que vai merecer crédito de setores da sociedade, cada vez mais frustrados por tanto trabalhar e não tem nada para mostrar. Inclusive vemos nas nossas comunidades, pessoas racializadas, afrodescendentes e até imigrantes, papagueando, como ovelhas a defender o lobo, o programa «imigração controlada», promovido pela direita e extrema-direita.
Rapidamente, não existe nenhuma relação direta entre imigração e aumento da criminalidade, inclusive os municípios com maior peso de imigrantes têm menos criminalidade; os imigrantes contribuíram sete vezes mais do que receberam da Segurança Social e Portugal tem menos imigrantes que a média europeia e precisa de mais trabalhadores migrantes.
Feitas as contas, perguntamos: tem alguma coisa a ver com à migração a desmontagem do Serviço Nacional de Saúde (SNS)? O relatório da Inspeção-Geral das Actividade em Saúde (IGAS) de 2023 afirma que num universo de 6 milhões de atendimento, nas deslocações às urgências, apenas 0,7% são estrangeiros não residentes. Mas em vez de investir mais no SNS, foi aprovada uma lei proposta pela AD e Chega, que nega acesso à saúde pública para imigrantes em situação irregular e não residentes.
O que é que tem a ver a imigração com o aumento exponencial do custo de vida que não é acompanhado pelo aumento dos salários? O que tem a ver com os imigrantes uma família portuguesa precisar de 125 anos para escapar da pobreza? O que tem a ver a imigração com o aumento de juros na habitação e o facto de Portugal ter uma das maiores crises habitacionais da Europa e um dos menores parques de habitação publica e social da OCDE?
Terceiro, à medida de que se agudiza a crise do sistema capitalista, o sistema intensificará a sua campanha para ludibriar os trabalhadores, usará o racismo, o chauvinismo, a instrumentalização das crenças religiosas para desviar a agressividade do trabalhador europeu em direção ao trabalhador migrante, racializado.
«(...) à medida de que se agudiza a crise do sistema capitalista, o sistema intensificará a sua campanha para ludibriar os trabalhadores, usará o racismo, o chauvinismo, a instrumentalização das crenças religiosas para desviar a agressividade do trabalhador europeu em direção ao trabalhador migrante, racializado»
Numa carta de 29 de novembro de 1869 enviada a Ludwig Kugelmann, Karl Marx explicou a manipulação da perceção dos trabalhadores ingleses e irlandeses pelos patrões: «o trabalhador inglês comum detesta o trabalhador irlandês como um concorrente que rebaixa seu nível de vida, sente-se a seu respeito, como membro de uma nação dominante e torna-se, desta forma, um instrumento de seus aristocratas e capitalistas (...) Preconceitos religiosos, sociais e nacionais jogam-no contra o operário irlandês, comporta-se em relação a ele, mais ou menos como os brancos pobres contra os negros, nos antigos estados escravistas da União americana. O irlandês lhe paga na mesma moeda; vê nele simultaneamente o cúmplice e o instrumento cego da dominação inglesa na Irlanda. Este antagonismo é mantido artificialmente e atiçado pela imprensa, pelos sermões, revistas humorísticas, enfim, por todos os meios de que dispõem as classes no poder. Este antagonismo constitui o segredo da impotência da classe operária (...). É também o segredo da força persistente da classe capitalista (...).»1
Eis a razão de por toda a Europa, assim como noutras latitudes (África do Sul, Brasil, Índia, Estados Unidos, etc.) vermos partidos da direita e da extrema-direita a transformar os migrantes, os pobres, os racializados, minorias culturais, religiosas em bode expiatório, com objetivo de ganhar votos e desviar a atenção dos reais problemas sociais, políticos e económicos. Pode-se ver que a extrema-direita, em particular, além de usar do racismo e xenofobia como ferramentas para dividir os trabalhadores, coopta algumas pessoas das chamadas minorias raciais, para se mascarar e tentar se livrar da acusação de racismo. Parafraseando Fanon, o sentimento anti-imigrante é esnobismo do pobre porque os ricos usam esta paixão em vez de entregar-se a ela, pois têm coisa melhor a fazer. Esta paixão se propaga normalmente nas classes médias, precisamente porque elas não têm nem terra, nem castelo, nem casa! Ao tratar o migrante, o negro, o cigano, os sul-asiáticos como um ser inferior e pernicioso, afirmo, ao mesmo tempo, que pertenço a uma elite.2
O sociólogo estadunidense W. E. B. Du Bois (1868 -1963) observou há quase um século, nos Estados Unidos, que a classe dominante usa de fortíssimos aparelhos ideológicos para convencer o trabalhador branco a fazer com ele um pacto racial que o impeça a ver que pertence a classe trabalhadora, independentemente da geografia, etnia, religião, crença ou cor: «Deve ser lembrado que o grupo branco de trabalhadores, apesar de receberem baixos salários, eram parcialmente compensados por uma espécie de salário público e psicológico. Recebiam deferência pública e títulos de cortesia por serem brancos. Eram livremente admitidos, com todas as classes de pessoas brancas, em funções públicas, parques públicos e nas melhores escolas. Os polícias eram escolhidos nas suas fileiras, e os tribunais, dependentes de seus votos, tratavam-nos com tal leniência que encorajavam a ilegalidade. O seu voto selecionava as autoridades públicas, e conquanto isso tivesse pouco efeito sobre sua situação económica, tinha grande efeito sobre seu tratamento pessoal e a deferência que lhe era dedicada. As escolas brancas eram as melhores na comunidade, e visivelmente localizadas, e em qualquer lugar custam do dobro a dez vezes mais per capita do que as escolas para as pessoas racializadas. Os jornais especializaram-se em notícias que elogiavam os brancos pobres e praticamente ignoravam o Negro exceto no crime e no ridículo. Por outro lado, no mesmo sentido, o Negro era sujeitado ao insulto público; tinha medo de turbas; era sujeito a troças das crianças e ao medo despropositado das mulheres brancas; e era compelido quase continuamente a se submeter a vários graus de inferioridade. O resultado disto era que os salários de ambas as classes podiam ser mantidos baixos, os brancos temendo ser suplantados pelo trabalho Negro, os Negros sempre sendo ameaçados de substituição pelo trabalho branco».3
Em síntese, a artificialização do antagonismo entre trabalhadores quebra qualquer possibilidade de junção séria de força entre os mesmos, permitindo à classe dominante mascarar as verdadeiras contradições inerentes ao sistema capitalista.
A projeção de trabalhadores imigrantes, negros, ciganos, sul-asiáticos e pobres como responsáveis pelos problemas sociais e económicos é parte constitutiva do projeto neoliberal que produz e organiza as frustrações dos trabalhadores e usam-nas como ferramenta de dominação de classe sobre trabalhadores não-brancos e racializados para reduzir o poder de barganha de ambos.4
Flávio Almada (LBC), rapper
- 1. Marx, Karl (1869). Carta enviada a Ludwig Kugelmann em 29 de novembro de 1869. Disponível aqui.
- 2. Fanon, Frantz (2008) Peles negras, máscaras brancas. Bahia: EDUFBA
- 3. Du Bois, W. E. B. (1935) Black reconstruction in America. New York: Harcourt, Brace and Company
- 4. Seymour, Richard, (2015). The white unconscious. Lenin`s Tumb. Disponível aqui.
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