No nosso país a alta velocidade vai na sua segunda intenção. A primeira, interrompida em 2010, continha mais parâmetros alinhados com o modelo liberalizado imposto pela União Europeia (UE) no sistema ferroviário, do que esta segunda, que continua não isenta deles.
Uma certa sedimentação de conceitos, desde aquela anterior intenção de alta velocidade, permitiu na atual a) reduzir para a velocidade máxima de 300 km/h na infraestrutura, b) adotar a bitola de via ibérica e a decorrente conectividade com a restante rede ferroviária e c) dar prioridade à ligação Porto-Lisboa, conferindo ao actual empreendimento de alta velocidade maior aderência aos interesses nacionais.
«Introduzir a bitola europeia na alta velocidade, a pretexto de fazer a ligação à rede de alta velocidade «europeia» iria agravar quer o processo de pulverização (introduzindo mais uma fractura no sistema ferroviário nacional) como prejudicar a recuperação de alguma base industrial»
A Portugal foi imposta não só uma desindustrialização que afectou muito a ferrovia (não apenas deixámos de produzir comboios, como vagões, ferramentas, carril, instrumentos, etc.) como foi imposta uma crescente pulverização da ferrovia. Introduzir a bitola europeia na alta velocidade, a pretexto de fazer a ligação à rede de alta velocidade «europeia» iria agravar quer o processo de pulverização (introduzindo mais uma fractura no sistema ferroviário nacional) como prejudicar a recuperação de alguma base industrial.
É que as opções ferroviárias não podem ser desligadas, nem de um olhar da ferrovia nacional como um sistema, nem das implicações dessas decisões sobre a indústria nacional. Vejamos alguns pormenores deste processo:
Velocidade máxima
A velocidade máxima no projeto de AV de 2010 era de 350 Km/h. No site da UIC chegaram a constar dois únicos países com o objetivo da velocidade máxima de 350 km/h, Portugal, (!) na fase de projecto, e China, em fase de construção.
Essa velocidade máxima no nosso país servia objectivamente a Siemens, que na altura era a única empresa homologada para o fornecimento desse material circulante.
No mesmo período, em 2007, para proteção da indústria ferroviária espanhola, a Ministra de Fomento ratificou, em cerimónia na Estação de Atocha, a velocidade de 300 km/h como a máxima de uso comercial que teriam a partir de então as linhas de alta velocidade, uma vez que os comboios da Talgo estavam homologados para esta velocidade.
Esta posição de defesa da indústria ferroviária espanhola também pode ser encontrada, em 2024, na evocação da segurança nacional para rejeitar a aquisição do activo estratégico Talgo por um consórcio estrangeiro.
O tema da bitola
Deparámo-nos com semelhantes movimentações da indústria ferroviária na fase de conclusão da primeira linha de alta velocidade entre Madrid e Sevilha, que tinha como data chave a abertura da Expo 92.
Tinha sido decidido em 1988 que a linha Madrid – Sevilha seria construída em bitola ibérica, como então seria natural, com a Talgo preparada para a construção dos respectivos comboios de alta velocidade.
Só que em 1990 constatou-se que a Talgo não teria tempo suficiente para uma etapa fundamental do fabrico do material circulante, ou seja, a fase de homologação e eventuais ajustes decorrentes deste processo final.
Assim, não sendo possível utilizar material circulante de fabrico espanhol, da Talgo, como era objectivo, só havia uma única forma de inaugurar a linha de alta velocidade no dia da abertura da Expo 92. Essa solução, seria utilizar material circulante francês Alstom que já estava homologado para as velocidades previstas, dado o avanço da alta velocidade francesa na época.
Mas, para isso, os carris tinham que ser colocados com a distância da bitola europeia, de 1435 mm, pois só assim poderiam ser utilizados os comboios franceses.
Como as travessas e os carris ainda não estavam colocados na linha, foi decidido em tempo a aplicação da bitola europeia. Foi isso que foi feito e, mais importante, foi por esta razão e não outra, que esta bitola foi introduzida em Espanha.
Este precedente, que caiu no regaço dos defensores da liberalização, marcou definitivamente a bitola das linhas de alta velocidade em Espanha, impondo depois a necessidade de a compatibilizar com a da rede convencional.
Espanha arranjou assim um grande problema, que tem vindo a resolver apoiando-se na sua indústria – que atingiu elevado nível técnico com o sistema ferroviário integrado, antes da liberalização – conectando aquela bitola com a bitola ibérica, de 1668 mm, com aplicações no material circulante (bogies 1de bitola variável) e na infraestrutura (intercambiadores e via com três carris).
Localização geográfica
A localização geográfica de Portugal é muito diferente da espanhola relativamente às redes ferroviárias além Pirenéus. Nesta zona de fronteira entre a bitola europeia e a bitola ibérica a indústria ferroviária espanhola não deixou de se desenvolver, e muito, durante mais de um século, e também as regiões fronteiriças da Catalunha e do País Basco não deixaram de se constituir como as mais industrializadas de Espanha.
Nas fronteiras portuguesas com futuro serviço de passageiros de alta velocidade a disrupção de bitolas não vai existir para já nas ligações a Badajoz e Madrid e a Vigo, mas se mais tarde tal vier a ocorrer implicará, numa primeira fase, a utilização de comboios com bogies de bitola variável 1435/1668 mm (de fabrico espanhol).
Noutra perspectiva, o serviço de passageiros de alta velocidade do nosso país terá um âmbito de prolongamento essencialmente ibérico, pois além-Pirenéus impõe-se naturalmente o transporte aéreo, dada a nossa localização geográfica.
Continuidade do tráfego de mercadorias
Apesar das diferentes bitolas na fronteira dos Pirenéus, a continuidade da carga entre Espanha e França nunca foi nem é um problema, nem no custo nem no tempo de transbordo, segundo os técnicos ferroviários e os operadores de mercadorias.
Mas acresce que Espanha é também a origem/destino de cerca de 70% da carga que atravessa a fronteira por via terrestre, nos modos rodoviário e ferroviário.
Segundo o INE ETC [Estatísticas de Transportes e Comunicações] 2023, o transporte transfronteiriço de mercadorias por modo ferroviário representa, relativamente ao transportado por via terrestre (rodoviário+ferroviário), cerca de 4,5% nas importações, e é da ordem de 1,5 % nas exportações. As exportações por modo ferroviário têm vindo a diminuir, -11,2% e -18,2% em 2022 e 2023, respectivamente.
Estes dados permitem constatar que o transporte ibérico ferroviário de mercadorias tem imenso por onde crescer e não é de todo a bitola que representa qualquer problema, é antes uma imensa vantagem.
Contra a liberalização. Unidade e industrialização do sistema ferroviário
Coloquemos então o foco dos problemas do sistema ferroviário do nosso país no que é de facto relevante: combater a fragmentação e a desindustrialização como as directrizes fundamentais da liberalização.
A fragmentação, de que se destaca a separação entre gestão da infraestrutura e operação ferroviária, mas não só, permite destinar a operação das linhas mais rentáveis a operadores privados dos grandes grupos económicos.
«a fragmentação é o meio de a liberalização destinar a carne do lombo, a operação das linhas mais rentáveis, ao capital privado. Do lado do Estado fica o que não lhes interessa, a operação nas linhas menos solventes e a onerosa construção e manutenção das infraestruturas»
Ou seja, a fragmentação é o meio de a liberalização destinar a carne do lombo, a operação das linhas mais rentáveis, ao capital privado. Do lado do Estado fica o que não lhes interessa, a operação nas linhas menos solventes e a onerosa construção e manutenção das infraestruturas.
Este crime tem desde logo como consequência desviar do país as receitas das linhas mais rentáveis, e impedir a CP de as operar e receber essas verbas necessárias para compensar a operação nas linhas menos solventes no interior e assim contribuir para a coesão territorial.
A dimensão do país, as exigências de mobilidade e a resposta com mais material circulante, impõem uma estrutura ferroviária com escala e decisões soberanas no sentido da reversão da liberalização.
Na construção das linhas e na sua electrificação, a liberalização está alinhada com a condição desindustrializada do país que agora importa praticamente todos os materiais excepto a pedra e o betão!
O país precisa de se reindustrializar e de apostar no sector ferroviário reunificado na CP, desde logo com toda a centralidade na operação de alta velocidade, em linha com os sistemas integrados e de operação pública nos países com sistemas ferroviários mais desenvolvidos.
- 1. N. da R.: Material ferroviário constituído por um «conjunto de rodas, sapatas de freio, rolamentos, molas, eixos, mancais, cilindros de freio, barras estabilizadoras, entre outras coisas». Fonte: Wikipédia.
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