No dia 29 de Julho fez 25 anos que foi inaugurada a ligação ferroviária sobre o Tejo na ponte 25 de Abril. Foram justas as comemorações. Pode-se destacar os 100 quilómetros de via, a obra na ponte e no túnel de acesso, a quadruplicação da Linha de Cintura, um conjunto de novas estações e a estação que ficou esboçada para ligar à Linha Vermelha. Um dos artigos publicados na imprensa recordava, com muita propriedade, que esta foi a última grande obra ferroviária que decorreu sem atrasos, respeitando os calendários, e ainda resolvendo complexos problemas técnicos com grande criatividade e capacidade. Lemos expressões como «milagre», «introduziu um conjunto de inovações no sector», trabalhadores «altamente motivados». O que são factos. Mas faltou abordar o porquê.
E o porquê é simples. Esta foi a última grande obra totalmente assumida pela empresa pública REFER, que se encontrava então dotada da capacidade de planeamento, projecto, fiscalização, reparação, manutenção e até, em algumas situações, de construção. Depois veio a liberalização, e é o desastre que todos conhecemos.
«Esta foi a última grande obra totalmente assumida pela empresa pública REFER, que se encontrava então dotada da capacidade de planeamento, projecto, fiscalização, reparação, manutenção e até, em algumas situações, de construção. Depois veio a liberalização, e é o desastre que todos conhecemos»
A ligação ferroviária sobre o Tejo é a última obra onde o caderno de encargos foi feito por engenheiros – agora é por advogados. Hoje, tudo é subcontratado. Umas coisas por ajuste directo, que são portas abertas à corrupção e ao compadrio, e muitas outras coisas sujeitas a concursos públicos. Nos concursos, as empresas de advogados que ajudam a fazer as leis, fazem os cadernos de encargo, metem as providências cautelares e preparam as reclamações judiciais dos que não ganham o concurso, fazem a defesa do Estado e dos privados, asseguram o recurso de alguém, sempre até à última instância, e muitas vezes garantem que centenas de milhões de euros depois tudo volta ao início.
Quando uma obra consegue ultrapassar a fase dos concursos, é preciso que o empreiteiro não abra falência, e mesmo assim, tudo se tem que arrastar porque o concurso foi ganho pelo valor mais baixo mas já a contar com trabalhos a mais, renegociação de preços e alterações ao projecto, que vão permitir criar a margem de lucro. E depois ainda há o recurso para um Tribunal Arbitral, alguma razão se arranjará para espremer mais uns trocos ao Estado.
As obras públicas passaram a ser uma oportunidade de ouro para se ganhar dinheiro. E não um objectivo nacional, concretizado no mais breve espaço de tempo pelo menor custo possível. A causa de tudo isto tem um nome: processo de liberalização. Fez e faz muita gente rica, mas deixa o país mais pobre.
E a opção pelo modelo liberal, que hoje impera, nada tem a ver com as questões do financiamento. A travessia ferroviária do Tejo inaugurada em 1999 foi financiada pelo Banco Europeu de Investimento (BEI) exactamente como está a ser financiada a Linha de Alta Velocidade Porto-Lisboa. Mas esta última é num modelo parceria público-privado (PPP). Enquanto, no primeiro caso, a REFER ficou a pagar ao BEI o empréstimo durante 30 anos, agora a Infraestruturas de Portugal (IP) vai ficar a pagar ao concessionário durante os mesmos 30 anos um valor suficiente para este pagar o empréstimo ao BEI e ainda ganhar uma boa renda.
Além de espremer os recursos públicos gerando magros resultados, a liberalização empurra a IP para ser cada vez uma mera gestora de livros de cheques, que tudo encomenda, tudo subcontrata e tudo paga. E essa destruição do saber fazer é muitas vezes nacional, criando dependências face às multinacionais. Um modelo errado, caro, ineficaz, mas que de facto faz muita gente rica, e por isso continua de vento em popa.
Foi na incapacidade – ou falta de vontade – de reverter o processo de liberalização que o projecto de modernização da ferrovia do anterior governo encalhou, com o Ferrovia 2020, quatro anos depois da data para a sua conclusão, a estar apenas 15% concluído.
«A forma como o Estado, primeiro, proibiu a CP de concorrer à concessão e depois vai sucessivamente prolongando esta há já 25 anos, mostra à saciedade o quanto não é a propalada fé na concorrência que move este tipo de processos. E o capitalista que há 25 anos explora este investimento público em infra-estrutura e comboios não sabe fazer nada mais que exigir – ao Estado, claro – mais comboios e mais linhas em exclusivo»
Curiosamente, foi a extraordinária obra pública da travessia ferroviária sobre o Tejo que viria a permitir a criação de condições para o expoente da liberalização na ferrovia: a entrega da exploração do serviço ferroviário urbano sobre a ponte à Fertagus (Grupo Barraqueiro), com o Estado a garantir ao privado os comboios, a infra-estrutura, a gestão das estações (recusada à CP), uma gigantesca indemnização compensatória, o direito de cobrar o serviço pelo dobro do preço da CP, o direito a manter o serviço fora do passe social durante 20 anos, e de passar a integrar o passe em 2019 mas recebendo a dobrar face às empresas públicas.
Passados 25 anos, os comboios que a Fertagus usa envelheceram e já não são suficientes para garantir uma oferta de qualidade. A forma como o Estado, primeiro, proibiu a CP de concorrer à concessão e depois vai sucessivamente prolongando esta há já 25 anos, mostra à saciedade o quanto não é a propalada fé na concorrência que move este tipo de processos. E o capitalista que há 25 anos explora este investimento público em infra-estrutura e comboios não sabe fazer nada mais que exigir – ao Estado, claro – mais comboios e mais linhas em exclusivo.
Terminemos como se começou: celebremos pois a extraordinária obra que foi a construção da ligação ferroviária sobre o Tejo. Ela é filha de uma capacidade pública e nacional que, no essencial, nasceu com a Revolução portuguesa e foi sendo liquidada pelo processo contra-revolucionário, particularmente com a crescente liberalização nos últimos 20 anos. São casos destes que ajudam a perceber o carácter estratégico de uma ideia programática como «Os valores de Abril no futuro de Portugal».
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