Começou a jorrar a pungente enxurrada de palavras laudatórias dos governantes deste mundo para expressar sentimentos que não existem, cumprir conveniências protocolares, identificar-se com tudo o que desprezam, exibir falsas comoções, tirar proveito de um acontecimento de que amanhã já não se lembrarão porque é fundamental regressar à vidinha reles e predadora do costume.
A morte do Papa Francisco é, inegavelmente, uma perda para o mundo. Não como chefe da Igreja Católica mas como homem universalista e humanista que soube evitar e contornar as questiúnculas vaticanas, velhas de séculos, para se dedicar a pensar e a agir sobre as coisas do mundo e da humanidade; as coisas que nos levam por caminhos transviados, quem sabe se fatais e que o Papa, não como santo mas como ser humano, tentou travar com a sua sensibilidade e espírito fraterno.
«Nas suas derradeiras e esforçadas palavras, Francisco teve a energia sobre-humana necessária para lembrar os pobres, os desprezados, as minorias perseguidas, os excluídos das periferias, as vítimas do racismo e da xenofobia, os refugiados e migrantes, solidarizando-se com estes como vítimas da ganância e das guerras impostas aos seus países.»
A comunidade dos hipócritas que dirige o mundo, conduzindo-nos para precipícios que Francisco identificou como facilmente evitáveis se os homens, e as mulheres, tivessem a boa vontade que extravasa, em muito, as palavras dos textos religiosos, não hesita agora em tirar proveito do seu falecimento com denodo vampiresco.
O Papa que agora nos deixa, chefe de uma instituição que dificilmente encontrará outro à sua altura, porque não saberá (nem quererá) navegar contra a corrente com a coragem e lucidez de Francisco, deixa órfãos os desprotegidos, os marginalizados, os pobres, os refugiados e migrantes, os povos das periferias, os que sofrem na carne os efeitos dos crimes ecológicos praticados pelos que enchem a boca com o combate (falso) às alterações climáticas, enfim os milhões de seres humanos que enfrentam os terrores das guerras gananciosas impostas pelos interesses de castas desumanizadas e as minorias do dinheiro.
A coragem e a lucidez de um pacifista
Francisco foi um homem corajoso e lúcido. Corajoso porque não teve receio de usar a palavra contra os carrascos do ser humano que, tentando embalar-nos com conversas mansas das quais apenas sobra a mentira, não hesitam em criar infernos em vida e ameaçar as nossas existências. Lúcido, porque soube ler o mundo como poucos na comunidade internacional, traçando impiedosamente os retratos dos malfeitores e inconformando-se com os horrores das malfeitorias, apesar de os atingidos olharem sempre para o lado, fingindo que nada era com eles enquanto, cinicamente, lhe faziam os salamaleques da praxe.
O Papa que agora nos deixa extravasou em muito o catolicismo e o cristianismo. Mesmo no interior das instituições da sua fé e das comunidades dos crentes muitas vezes não foi bem aceite pelas correntes tradicionalistas, as mesmas que, simultaneamente, se acomodam, e até defendem o que de pior existe à face da Terra.
Francisco selou a sua presença na história do catolicismo e, principalmente, da humanidade, porque no seu tempo combateu sem hesitar os dois verdadeiros demónios que perseguem e abatem os seres humanos: o neoliberalismo e a guerra.
«O Papa não se identificava, e nunca deixou de condenar, esta preciosidade ocidental de se comover, justamente, com o sofrimento e o drama dos ucranianos mas desprezar e ser até cúmplice da matança e do genocídio do povo palestiniano. O Papa jamais perdoou e seria capaz de perdoar e segregacionismo e a xenofobia que estão no ADN dos hipócritas.»
O sacerdote argentino que tanto sofria com o seu pobre povo cruelmente entregue ao estado mais extremo do neoliberalismo, nunca foi manso para com esta doutrina económica, social e política que despreza o ser humano em nome da liberdade, que o oprime mergulhando-o na pobreza como caminho para a sempre longínqua e assim inatingível abastança, que o mata garantindo-lhe independências e soberanias a que são intrinsecamente avessos. O desumano neoliberalismo globalista são a sua meta; a justiça social, o respeito pelo ser humano, a dignidade da vida, a paz e a convivência fraterna são as luzes pelas quais o falecido Papa se guiava.
Francisco foi, por tudo isto, um homem contra a corrente, na realidade um corpo estranho neste mundo e que não desistiu, até ao fim, de o tentar modificar, de o tornar um lugar adequado para o florescimento da dignidade do ser humano, de todos os seres humanos. Por isso, o Papa não se identificava, e nunca deixou de condenar, esta preciosidade ocidental de se comover, justamente, com o sofrimento e o drama dos ucranianos mas desprezar e ser até cúmplice da matança e do genocídio do povo palestiniano. O Papa jamais perdoou e seria capaz de perdoar e segregacionismo e a xenofobia que estão no ADN dos hipócritas. Ele amou especialmente todos os povos vítimas de guerras, e não apenas as terçadas com armas.
Neste domingo de Páscoa, nas suas derradeiras e esforçadas palavras, Francisco teve a energia sobre-humana necessária para lembrar os pobres, os desprezados, as minorias perseguidas, os excluídos das periferias, as vítimas do racismo e da xenofobia, os refugiados e migrantes, solidarizando-se com estes como vítimas da ganância e das guerras impostas aos seus países. E não deixou de responsabilizar, mais uma vez, a doutrina que identificou explicitamente como responsável por essas expressões de miséria: o capitalismo e a sua versão extrema, o neoliberalismo.
Um combatente pelo desarmamento
E Francisco, horror dos horrores, defendeu a paz.
Não uma paz abstracta como apregoam os que a procuram e garantem estar no final das guerras. Mas sim a paz que desprezam e nos proíbem de invocar e defender sob pena de sermos considerados traidores e servidores dos inimigos que nos espreitam em cada canto. A paz que se encontra falando, compreendendo e negociando e não espalhando a pobreza e a morte porque são necessárias armas, mais armas, cada vez mais armas e mais sofisticadas, capazes de tornar sempre maiores as multidões de inocentes assassinados e fazer transbordar os cofres dos magnatas da morte.
«Defendia conceitos de vida terrena pelos quais nos vale a pena lutar para retirar o mundo do pântano onde mulheres e homens degenerados pelo poder e o dinheiro o vão mergulhando. Estes são dias tristes e, ao mesmo tempo, dias que a cáfila dos hipócritas e fanáticos da guerra anseia para poder desfilar e brilhar»
É verdade, Francisco defendeu o desarmamento sem poupar a indústria armamentista e respectivos frequentadores como um dos grandes flagelos deste tempo. Guardou até para apelar ao desarmamento as suas derradeiras palavras proferidas, a custo, num Domingo de Páscoa. Adivinhem: os que agora dizem lamentar o seu desaparecimento nunca o escutaram, fingiram-se moucos. Para eles, o Papa era alguém que tentavam identificar com as suas desprezíveis imagens e semelhanças; não o Papa que jamais se esqueceu das verdadeiras vítimas desses hipócritas, refinados vendilhões do Templo.
Os chefes e as cliques governantes da União Europeia, de Marcelo e quejandos aos confins do Báltico proferem agora as palavras banais, protocolares e de circunstância, expressam sentimentos que não têm a não ser nas carteiras e contas bancárias, pronunciam, a contragosto, a palavra paz enquanto montam exércitos e atafulham o continente europeu de armas, vestem as suas mais caras e negras fatiotas para irem em romaria e alinharem-se, quiçá para a foto de família, nos tapetes do Vaticano. Francisco dispensaria a sua presença, mas eles acham-se sempre indispensáveis e bem vindos mesmo quando ninguém os convida. Lagarde, a senhora do dinheiro, a par de Von der Leyen, a senhora da guerra e Costa, servidor babado de tudo isto, não faltarão. Por aí se percebe o tipo de gente a quem estamos entregues e que o Papa argentino, perceptivelmente, não tinha em grande conta.
Francisco deixa muitas saudades e um vazio que provavelmente tão depressa não será preenchido. A hierarquia da Igreja Católica, que não a imensa multidão dos fiéis, tem grande habilidade para emendar os seus “erros” movendo-se e conspirando com uma experiência de dois milénios no silêncio dos corredores vaticanos. Como foi o caso de João Paulo I, prometedor homem de bem que não resistiu mais de 33 dias na cadeira de Pedro, o pescador, logo substituído por Wojtyla (ou João Paulo II), o Papa do neoliberalismo, da unipolaridade imperial, arauto de um catolicismo com ressonâncias medievais.
Francisco foi um irmão mais velho, sábio e presente para católicos, não católicos e não cristãos, religiosos, agnósticos e ateus, muitos dos que, não comungando da sua doutrina e conceitos filosóficos, o admiraram como homem e humanista, certos de que nele podiam confiar. Defendia conceitos de vida terrena pelos quais nos vale a pena lutar para retirar o mundo do pântano onde mulheres e homens degenerados pelo poder e o dinheiro o vão mergulhando. Estes são dias tristes e, ao mesmo tempo, dias que a cáfila dos hipócritas e fanáticos da guerra anseia para poder desfilar e brilhar.
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