|José Goulão

Francisco, a Paz e a romaria dos hipócritas

A comunidade dos hipócritas que dirige o mundo, conduzindo-nos para precipícios que Francisco identificou como facilmente evitáveis se os homens, e as mulheres, tivessem a boa vontade que extravasa, em muito, as palavras dos textos religiosos, não hesita agora em tirar proveito do seu falecimento com denodo vampiresco.

Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, num encontro com o Papa Francisco, no Vaticano. 10 de Junho de 2022 
Créditos / VaticanNews

Começou a jorrar a pungente enxurrada de palavras laudatórias dos governantes deste mundo para expressar sentimentos que não existem, cumprir conveniências protocolares, identificar-se com tudo o que desprezam, exibir falsas comoções, tirar proveito de um acontecimento de que amanhã já não se lembrarão porque é fundamental regressar à vidinha reles e predadora do costume.

A morte do Papa Francisco é, inegavelmente, uma perda para o mundo. Não como chefe da Igreja Católica mas como homem universalista e humanista que soube evitar e contornar as questiúnculas vaticanas, velhas de séculos, para se dedicar a pensar e a agir sobre as coisas do mundo e da humanidade; as coisas que nos levam por caminhos transviados, quem sabe se fatais e que o Papa, não como santo mas como ser humano, tentou travar com a sua sensibilidade e espírito fraterno. 

«Nas suas derradeiras e esforçadas palavras, Francisco teve a energia sobre-humana necessária para lembrar os pobres, os desprezados, as minorias perseguidas, os excluídos das periferias, as vítimas do racismo e da xenofobia, os refugiados e migrantes, solidarizando-se com estes como vítimas da ganância e das guerras impostas aos seus países.»

A comunidade dos hipócritas que dirige o mundo, conduzindo-nos para precipícios que Francisco identificou como facilmente evitáveis se os homens, e as mulheres, tivessem a boa vontade que extravasa, em muito, as palavras dos textos religiosos, não hesita agora em tirar proveito do seu falecimento com denodo vampiresco.

O Papa que agora nos deixa, chefe de uma instituição que dificilmente encontrará outro à sua altura, porque não saberá (nem quererá) navegar contra a corrente com a coragem e lucidez de Francisco, deixa órfãos os desprotegidos, os marginalizados, os pobres, os refugiados e migrantes, os povos das periferias, os que sofrem na carne os efeitos dos crimes ecológicos praticados pelos que enchem a boca com o combate (falso) às alterações climáticas, enfim os milhões de seres humanos que enfrentam os terrores das guerras gananciosas impostas pelos interesses de castas desumanizadas e as minorias do dinheiro. 

A coragem e a lucidez de um pacifista

Francisco foi um homem corajoso e lúcido. Corajoso porque não teve receio de usar a palavra contra os carrascos do ser humano que, tentando embalar-nos com conversas mansas das quais apenas sobra a mentira, não hesitam em criar infernos em vida e ameaçar as nossas existências. Lúcido, porque soube ler o mundo como poucos na comunidade internacional, traçando impiedosamente os retratos dos malfeitores e inconformando-se com os horrores das malfeitorias, apesar de os atingidos olharem sempre para o lado, fingindo que nada era com eles enquanto, cinicamente, lhe faziam os salamaleques da praxe.

O Papa que agora nos deixa extravasou em muito o catolicismo e o cristianismo. Mesmo no interior das instituições da sua fé e das comunidades dos crentes muitas vezes não foi bem aceite pelas correntes tradicionalistas, as mesmas que, simultaneamente, se acomodam, e até defendem o que de pior existe à face da Terra.

Francisco selou a sua presença na história do catolicismo e, principalmente, da humanidade, porque no seu tempo combateu sem hesitar os dois verdadeiros demónios que perseguem e abatem os seres humanos: o neoliberalismo e a guerra.

«O Papa não se identificava, e nunca deixou de condenar, esta preciosidade ocidental de se comover, justamente, com o sofrimento e o drama dos ucranianos mas desprezar e ser até cúmplice da matança e do genocídio do povo palestiniano. O Papa jamais perdoou e seria capaz de perdoar e segregacionismo e a xenofobia que estão no ADN dos hipócritas.»

O sacerdote argentino que tanto sofria com o seu pobre povo cruelmente entregue ao estado mais extremo do neoliberalismo, nunca foi manso para com esta doutrina económica, social e política que despreza o ser humano em nome da liberdade, que o oprime mergulhando-o na pobreza como caminho para a sempre longínqua e assim inatingível abastança, que o mata garantindo-lhe independências e soberanias a que são intrinsecamente avessos. O desumano neoliberalismo globalista são a sua meta; a justiça social, o respeito pelo ser humano, a dignidade da vida, a paz e a convivência fraterna são as luzes pelas quais o falecido Papa se guiava.

Francisco foi, por tudo isto, um homem contra a corrente, na realidade um corpo estranho neste mundo e que não desistiu, até ao fim, de o tentar modificar, de o tornar um lugar adequado para o florescimento da dignidade do ser humano, de todos os seres humanos. Por isso, o Papa não se identificava, e nunca deixou de condenar, esta preciosidade ocidental de se comover, justamente, com o sofrimento e o drama dos ucranianos mas desprezar e ser até cúmplice da matança e do genocídio do povo palestiniano. O Papa jamais perdoou e seria capaz de perdoar e segregacionismo e a xenofobia que estão no ADN dos hipócritas. Ele amou especialmente todos os povos vítimas de guerras, e não apenas as terçadas com armas.

Neste domingo de Páscoa, nas suas derradeiras e esforçadas palavras, Francisco teve a energia sobre-humana necessária para lembrar os pobres, os desprezados, as minorias perseguidas, os excluídos das periferias, as vítimas do racismo e da xenofobia, os refugiados e migrantes, solidarizando-se com estes como vítimas da ganância e das guerras impostas aos seus países. E não deixou de responsabilizar, mais uma vez, a doutrina que identificou explicitamente como responsável por essas expressões de miséria: o capitalismo e a sua versão extrema, o neoliberalismo.

Um combatente pelo desarmamento

E Francisco, horror dos horrores, defendeu a paz.

Não uma paz abstracta como apregoam os que a procuram e garantem estar no final das guerras. Mas sim a paz que desprezam e nos proíbem de invocar e defender sob pena de sermos considerados traidores e servidores dos inimigos que nos espreitam em cada canto. A paz que se encontra falando, compreendendo e negociando e não espalhando a pobreza e a morte porque são necessárias armas, mais armas, cada vez mais armas e mais sofisticadas, capazes de tornar sempre maiores as multidões de inocentes assassinados e fazer transbordar os cofres dos magnatas da morte.

«Defendia conceitos de vida terrena pelos quais nos vale a pena lutar para retirar o mundo do pântano onde mulheres e homens degenerados pelo poder e o dinheiro o vão mergulhando. Estes são dias tristes e, ao mesmo tempo, dias que a cáfila dos hipócritas e fanáticos da guerra anseia para poder desfilar e brilhar»

É verdade, Francisco defendeu o desarmamento sem poupar a indústria armamentista e respectivos frequentadores como um dos grandes flagelos deste tempo. Guardou até para apelar ao desarmamento as suas derradeiras palavras proferidas, a custo, num Domingo de Páscoa. Adivinhem: os que agora dizem lamentar o seu desaparecimento nunca o escutaram, fingiram-se moucos. Para eles, o Papa era alguém que tentavam identificar com as suas desprezíveis imagens e semelhanças; não o Papa que jamais se esqueceu das verdadeiras vítimas desses hipócritas, refinados vendilhões do Templo.

Os chefes e as cliques governantes da União Europeia, de Marcelo e quejandos aos confins do Báltico proferem agora as palavras banais, protocolares e de circunstância, expressam sentimentos que não têm a não ser nas carteiras e contas bancárias, pronunciam, a contragosto, a palavra paz enquanto montam exércitos e atafulham o continente europeu de armas, vestem as suas mais caras e negras fatiotas para irem em romaria e alinharem-se, quiçá para a foto de família, nos tapetes do Vaticano. Francisco dispensaria a sua presença, mas eles acham-se sempre indispensáveis e bem vindos mesmo quando ninguém os convida. Lagarde, a senhora do dinheiro, a par de Von der Leyen, a senhora da guerra e Costa, servidor babado de tudo isto, não faltarão. Por aí se percebe o tipo de gente a quem estamos entregues e que o Papa argentino, perceptivelmente, não tinha em grande conta.

Francisco deixa muitas saudades e um vazio que provavelmente tão depressa não será preenchido. A hierarquia da Igreja Católica, que não a imensa multidão dos fiéis, tem grande habilidade para emendar os seus “erros” movendo-se e conspirando com uma experiência de dois milénios no silêncio dos corredores vaticanos. Como foi o caso de João Paulo I, prometedor homem de bem que não resistiu mais de 33 dias na cadeira de Pedro, o pescador, logo substituído por Wojtyla (ou João Paulo II), o Papa do neoliberalismo, da unipolaridade imperial, arauto de um catolicismo com ressonâncias medievais.

Francisco foi um irmão mais velho, sábio e presente para católicos, não católicos e não cristãos, religiosos, agnósticos e ateus, muitos dos que, não comungando da sua doutrina e conceitos filosóficos, o admiraram como homem e humanista, certos de que nele podiam confiar. Defendia conceitos de vida terrena pelos quais nos vale a pena lutar para retirar o mundo do pântano onde mulheres e homens degenerados pelo poder e o dinheiro o vão mergulhando. Estes são dias tristes e, ao mesmo tempo, dias que a cáfila dos hipócritas e fanáticos da guerra anseia para poder desfilar e brilhar.

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