|Música

Em dia de manifestação de jovens, há

Juventude em construção

De Donny Hathaway e José Afonso a Bob da Rage Sense e Papillon a música de intervenção – tal como os jovens manifestantes de hoje – ajuda à construção do futuro. O rap e o hiphop à altura das circunstâncias.

Mais do que uma afinidade quase familiar, o que uniu os Grognation foi o pragmatismo, essa ideia de que seria mais fácil chegar a algum lado em grupo.
CréditosNuno Ferreira Santos

Neste Dia Nacional da Juventude cantamos algumas palavras conhecidas e outras não tanto, que celebram e retratam essa camada da sociedade, assumidamente determinada como alvo preferido e objecto fetiche da sociedade de mercado, mas que se mantém nos dias de hoje como uma das mais fragilizadas. Aos discursos mobilizadores e empenhados na valorização comercial das capacidades de cada jovem numa Europa de oportunidades, impõe-se a realidade da dificuldade de acesso ao ensino e à cultura, da exploração, do desemprego, da insegurança no trabalho, dos baixos salários, da emigração forçada e da falta de apoios.  São estes, também, traços marcantes da geração actual, factores de desigualdade e de injustiças várias que desperdiçam anos e recursos, nas sucessivas vagas de jovens emigrantes ou naqueles cujas vidas se esgotam entre trabalhos sem direitos e mal pagos.

Zeca Afonso,  em entrevista à RTP em 1984, conseguiu prever o estado a que chegámos. Disse nessa entrevista o cantor de Abril:

«Os jovens, e digo, os jovens de todas as classes, estão um pouco à mercê de um sistema que não conta com eles, mas que hipocritamente fala deles – o 25 de Abril não foi feito para esta sociedade, para aquilo que estamos agora a viver. Aqueles que ajudaram a fazer o 25 de Abril imaginaram uma sociedade muito diferente da actual, que está a ser oferecida aos jovens. Os jovens deparam-se com problemas tão graves, ou talvez mais graves do que aqueles que nós tivemos que enfrentar – o desemprego, por exemplo. E, por vezes, não têm recursos, porque o sistema ultrapassa-os, o sistema oprime-os, criando-lhes uma aparência de liberdade. Eu creio que a única atitude foi aquela que nós tivemos – por nós, eu refiro-me à minha geração – de recusa frontal, de recusa inteligente, se possível até pela insubordinação, se possível até pela subversão do modelo de sociedade que lhes está a ser oferecido, com o fundamento da liberdade democrática, com o fundamento do respeito pelos direitos dos cidadãos. É de facto uma sociedade que é imposta aos jovens de hoje, teleguiada de longe por qualquer FMI, por qualquer Deus banqueiro. Tal como nós, eles têm que a combater, têm que a destruir, têm de a enfrentar com todas as suas forças, organizando-se para criarem a sociedade que têm em mente».

Bob da Rage Sense (2010)

Bob da Rage Sense, usa estas palavras de Zeca como inspiração no seu rap «Geração da Hipocrisia» no álbum Diários de Marcos Robert de 2010. Num ataque feroz à apatia e às hipócritas formas de censura da sociedade capitalista, Bob Sense, com a ajuda do rapper Sir Scratch, fazem rap de intervenção enquanto alertam as novas gerações.

Disposable Heroes of Hiphoprisy (anos 90)

Figura central do movimento Beat Generation de meados do século XX, o escritor William S. Burroughs tem com certeza, através das suas palavras e obra,  muito a ensinar a todos, novos e velhos, sobre insubordinação. Na década de 1990 a dupla nova-iorquina de hiphop Disposable Heroes of Hiphoprisy, de Michael Franti, grava com Burroughs o seu famoso «Words of Advice For Young People», naquele que é ainda um monumento poético do género.

Donny Hathaway (anos 70)

Em 1969, Nina Simone compôs um dos hinos que marcaria o movimento dos direitos civis do jovens negros americanos. «To Be Young, Gifted and Black», com as palavras de Weldon Irvine, transformou-se no símbolo de uma juventude em luta contra a segregação racial nos E.U.A,  naquela que é um exemplo de uma música especificamente dirigida à sua geração. Mas «To Be Young, Gifted and Black», na voz do cantor e pianista Donny Hathaway, uma das maiores de sempre da música negra, ganha toda uma nova dimensão. O hino eleva-se à sagração, numa comunhão perfeita entre a soul e o gospel.

Papillon (2016)

Rui Pereira é o rapper Papillon, membro dos GrogNation, o colectivo hiphop de sucesso de Mem Martins, e um dos melhores novos valores do rap. Num tributo a Zeca Afonso lançado no 1 de Maio de 2016,  o rapper parte de um excerto da música de Zeca para com a ajuda do produtor Charlie Beats contar a história recente da juventude portuguesa, condenada ao desemprego, à emigração e à sua sorte. À procura de um melhor lugar , seguimos o trilho de Zeca na voz e rimas de Papillon, até à «Terra Prometida».

Na juventude manter-se-á sempre acesa a chama  da inconformidade. É nela que a inquietude, cultivada pela liberdade, alimenta a consciência de quem tem o mundo para transformar. E por mais que a realidade insista em parecer não querer mudar, no entanto, ela move-se. Cabe aos jovens esse importante papel de assumir a construção do futuro, «organizando-se para criarem a sociedade que têm em mente» – como nos disse Zeca Afonso.

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