As Marchas Populares são uma tradição inventada por Leitão de Barros, enquadrada no espírito de António Ferro, de quem era colaborador próximo, que via Portugal como uma «Caravela de Sonhos», «Uma Canção Cheia de Redondilhas». Uma invenção que fez o seu caminho, ganhou raízes em Lisboa e até, mais tarde, se propagou para outras cidades.
Quando em 1932, Leitão de Barros organiza as primeiras Marchas Populares tinha vários objectivos em carteira: o mais imediato reanimar o Parque Mayer, o outro, mais importante e que foi alcançado, implicar colectividades de cultura e recreio numa actividade de divertimento que lhes ocuparia tempo e energia, reduziria os tempos das actividades culturais e educativas, olhadas com alta desconfiança e que estavam a ser rigorosamente controladas por serem uma forma de resistência à ditadura em fase de estabilização do seu modelo fascista.
No primeiro concurso, os participantes Alto Pina, Bairro Alto e Campo de Ourique, exibiram-se no Parque Mayer na véspera do dia de Santo António, feriado municipal. O sotaque lisboeta, que se dizia ser o motor do evento, desaparecia sob os trajes minhotos da marcha vencedora, Campo de Ourique, prenúncio de um folclore que anos mais tarde iria fazer vencimento na RTP pela mão de Pedro Homem de Mello, outro inventor de tradições muito e bem satirizado por Fernando Lopes-Graça.
O êxito desse espectáculo patrocinado pela empresa do Parque Mayer, foi enorme. Quinze dias depois, no dia de São Pedro, repetiu-se com a participação de mais três ranchos: Alfama, Madragoa e Alcântara. Leitão de Barros, um excelente animador cultural e jornalista de sucesso, consegue forte cobertura mediática que pressiona o reconhecimento oficial da Marchas Populares.
No Diário de Lisboa (3/Junho/1932) escreve-se «lançaram-se os fundamentos para uma grande festa anual, tipicamente portuguesa e popular, a organizar com extensão e superior critério, e que a Câmara Municipal devia tomar a si».
Um dia depois, o Diário de Notícias insiste: «As municipalidades têm, além de outras missões, também a de cultivar as tradições, aproveitando o manancial inesgotável de fantasia e de alegria do povo, a fim de, por vezes, quebrar a monotonia da cidade, essa espécie de tristura contemporânea que deforma, afinal, a verdadeira índole da nossa gente».
O fascismo estava a pôr em prática uma política contra a «tristura contemporânea». Nada como tornar o país fechado a sete chaves, pobrete mas alegrete.
Em 1935 inaugura-se a FNAT – Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, no dia 13 de Junho, quando em Lisboa as Marchas Populares tinham saído para a rua, eram um espectáculo com grande apoio popular.
Já em 1934 tinham marchado do Terreiro do Paço até ao Parque Eduardo VII, 12 bairros e 800 marchantes, uma assistência calculada em 300 mil pessoas. Em 1935, a Câmara Municipal de Lisboa dá posse a uma Comissão de Festas da Cidade e assume o patrocínio da Grande Marcha da Cidade, a celebrizada «Lá Vai Lisboa» de Norberto Araújo e Raul Ferrão.
Leitão de Barros tinha conseguido, percorrendo todos os bairros da cidade, originar um folclore local, em que cada bairro procurava encontrar os traços específicos da sua identidade. O enorme êxito das Marchas Populares só foi interrompido pela II Guerra Mundial, sendo imediatamente retomado, tendo alcançado o seu ponto máximo nos anos 50, com a participação do município e de membros do governo.
Segue-se um período de menos brilho e o seu desaparecimento no pós-25 de Abril, por se ter considerado as marchas uma manifestação do antigo regime, o que era um facto que não atendeu a que a tradição inventada tinha criado fortes raízes que virão a ser ressuscitadas pela EGEAC nos anos 80, com sucesso que só tem paralelo aos dos seus anos mais brilhantes.
«As Marchas bem tentam mostrar uma realidade dos bairros que é cada vez mais uma ficção. Começa a ser uma pesada evidência que a maioria dos marchantes foi excluída dos bairros que continuam a representar.»
Ressurgiram nos seus moldes mais tradicionais em que letras, músicas, coreografias e encenações estão alheios ao envolvimento sócio-político. Nem os violentos anos da troika fizeram bulir as Marchas que desfilam como se durante aqueles dias tivesse sido decretada uma trégua olímpica.
Tudo continuaria a correr sem sobressaltos de maior para os arcos balões e passos de danças e contra-danças se as políticas urbanas que se têm implementado em Lisboa não começassem a ser uma térmita das Marchas Populares.
As Marchas bem tentam mostrar uma realidade dos bairros que é cada vez mais uma ficção. Começa a ser uma pesada evidência que a maioria dos marchantes foi excluída dos bairros que continuam a representar.
O futuro das Marchas, na sua configuração em que o espírito bairrista é o pulsar de cada marcha, independentemente do que se possa analisar ou mesmo criticar sobre a sua génese, está ferido pela deslocalização forçada dos lisboetas por políticas urbanas que pensam a cidade não em função dos seus munícipes mas de uma cidade calculada a preço de metro quadrado, em que a monocultura do empreendedorismo turístico e da especulação imobiliária é dominante, espalhando os seus tentáculos por todo o lado, como se pode ver pelas alterações aos planos de urbanização, a desqualificação de edifícios de interesse público, no traçado proposto para o metropolitano que só tem essa justificação, por mais contorções e habilidosos sofismas do presidente da Câmara de Lisboa a travestir a realidade que é a de Lisboa estar entregue a um conluio de políticos e especuladores imobiliários que ofertam a cidade a essa melancólica multidão solitária que atafulha o eléctrico 28 e o elevador de Santa Justa, deambula entre fotos e selfies, colecciona magras recordações.
O turismo, um importante sector de negócio, é também um mal que está a matar Lisboa, tal como está a matar outras cidades europeias que seguem o mesmo modelo em que os seus patrimónios perdem significado histórico são vendidos nos mercados dos bens culturais, o sentido de as habitar não tem qualquer importância.
Os marchantes resistentes serão cada vez menos, as memórias dos seus descendentes já serão outras. Com a manutenção dessas políticas subjugadas pelos interesses imobiliários em breve veremos os edis que dirigem os destinos da Câmara de Lisboa a presidirem com sorrisos de plástico, que sempre são mais baratos, a desfiles de marchas contratadas nos arredores para manter uma tradição que se vende a pataco.
«Marchem, não deixem morrer as marchas para iludir o desmantelamento da cidade pelo seu progressivo despovoamento, alinhando Lisboa por esse modelo global em que habitar perde sentido, as cidades se tornam idênticas terras de ninguém para o turismo.»
Bem podem começar a preparar uma marcha multicultural verde alfacinha para desfilar em 2020, quando Lisboa for Capital Verde Europeia, encabeçada pelo cheerleader zé que não faz falta a Lisboa e um exército de marchantes mercenários recrutados entre lisboetas corridos para as periferias, para onde a bolha imobilíária com epicentro na capital começa a alastrar, e não lisboetas suburbanos, a engrossar os elencos marchantes que podem mesmo desconhecer o bairro sob que bandeira desfilam.
Nada como continuar a marchar para alegria do parque de diversões em que a cidade se está a transformar. Marchem, continuem a marchar cantando e rindo enquanto a monocultura do turismo vai esvaziando Lisboa dos seus habitantes, à imagem e semelhança do que está a acontecer em muitas outras cidades da Europa, para criar a ilusão que a cidade não se está a transformar num museu em que se degradam as relações vivas entre os seus habitantes e as memórias da cidade se estratificam para serem visitadas, dando-lhe a vitalidade económica que é também a causa do seu suicídio.
Marchem, não deixem morrer as marchas para iludir o desmantelamento da cidade pelo seu progressivo despovoamento, alinhando Lisboa por esse modelo global em que habitar perde sentido, as cidades se tornam idênticas terras de ninguém para o turismo.
Marchem, não deixem morrer as marchas para fingir que a cidade está viva. Marchem, com marchantes que desçam à cidade de onde foram excluídos por rendas impossíveis, para sustentar a enorme falácia em que se tornou o direito à cidade.
As cidades não podem estar condenadas a essa danação em que os seus centros históricos se transformaram nuns buracos negros de políticas urbanas sem qualidade que os transformam em parques temáticos em que se acotovelam visitantes de sociabilidades massificadas de um cosmopolitismo fruste que borboloteia entre pólos de atracção onde desembarcam em maratonas com tempos cronometrados, fachadas recuperadas do seu património edificado de onde são progressivamente excluídos os seus habitantes e os grandes eventos, que antes de o serem já assim são anunciados, que se acumulam e repetem nas mais diversas geografias, Cidades de actividade económica pauperizada por uma unicultura da Cidade-Empresa do pensamento único, em que a ideia de Cidade e de Poder Local se esvaziam tomados de assalto pelo neo-liberalismo, transformando-as num território de negócios desvinculado das necessidades humanas.
Os fortes sinais de alarme contra essa cultura que deixa morrer as cidades privatizando-as para oferecer as suas imagens e as suas obras ao consumo, são antigos, tiveram algum eco na altura, rapidamente foram sepultadas pelas cáfilas de políticos e especuladores imobiliários que sempre marcharam de braço dado pelos gabinetes em que riscam as políticas urbanas.
Agora, a um passo do abismo em que muitas cidades europeias, Lisboa em franca aceleração para ficar na linha da frente, é de relembrá-los. Foram enunciados nos finais dos anos 60 sobretudo por Henri Lefébvre, em O Direito à Cidade e Contra os Tecnocratas1 dois textos a reler com urgência que tem ecoado noutros igualmente importantes2 de avisos sérios para este estado de coisas da alienação das cidades, em que vender a cidade se tornou o objectivo central do Poder Local.
Dois textos que também fazem renascer a esperança de que as ciências humanas, em particular a sociologia e a psicologia, saiam do pântano do pensamento inutilitário em que, nestes tempos pós-modernos, se têm afundado.
- 1. O Direito à Cidade, Henri Lefébvre, Letra Livre, 2012; Contra os Tecnocratas – Acabar com a Ficção Científica, Henri Lefébvre, Moraes Editores, 1968
- 2. Le Capitalisme contre le Droit à la Ville, David Harvey, Amsterdam, 2011;
Naked City, The Death and Life of Authentic Urban Places, Sharon Zukin, Oxford University Press, 2010
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