Comecemos pelo final. Regra geral, as plataformas digitais não querem saber grande coisa da moldura legal dos países em que operam a não ser para: 1) explorar as suas eventuais inconsistências; 2) forçar os respectivos legisladores a fazerem leis à sua medida. Bem sei que parece uma afirmação demasiado contundente, mas não apenas isto está já bem documentado como o que hoje se passa em Portugal o confirma de forma inquestionável.
Vamos aos factos. Depois de mais uma década em que muito se disse e escreveu sobre como as plataformas digitais traziam «novas formas de trabalho», «empreendedorismo», «economia da partilha» e outras fantasias do capitalismo pós-moderno, o compasso parece ter finalmente mudado.
Graças à intervenção de sindicatos e trabalhadores, partidos de esquerda e académicos com sentido crítico é hoje claro que a «uberização» não passa de um neologismo para «exploração» – algo que também aqui no AbrilAbril já se abordou.
A palavra do momento é, então, legislar. Mas claro, é preciso perceber para quê e para quem serve essa legislação antes de se lançar os foguetes. Como parte da alteração que recentemente fez ao Código do Trabalho, o Governo PS (por proposta do BE) introduz um novo artigo (12-A) que determina a presunção de relação laboral – algo de que as plataformas sempre fugiram como o diabo da cruz – quando «se verifiquem algumas das seguintes características».
Embora se fique sem saber quantas são algumas e quem deve determinar isso, as características incluídas são: que a plataforma determine a retribuição pelo trabalho realizado, que detenha poderes de retribuição, de direção, supervisão, e disciplina sobre os trabalhadores, e que seja a proprietária dos equipamentos e instrumentos de trabalho.
Desengane-se quem achar que no Largo do Rato ou na Rua da Palma abunda a criatividade. Uma formulação semelhante, por sinal mais clara, tinha sido avançada cerca de um ano antes pela Comissão Europeia. No entanto, as críticas não pararam de chover. A principal delas consistia em sublinhar que ao estipular-se critérios rígidos se estaria a criar condições para que as plataformas – como tantas vezes têm feito – se adaptassem de forma a simplesmente circunscrever a nova disposição legal. Por isso, num processo que ainda não tem fim à vista, o Parlamento Europeu decidiu deixar cair essa fonte de ambiguidade. O futuro dirá como acabará esse processo.
«Não me cumpre discutir aqui porque é que alguém acha razoável avançar com uma disposição legal que está condenada ao fracasso desde o início – talvez a história trate de nos dar esse esclarecimento um dia, como deu num passado recente. A pergunta que se impõe é: então, o que fazer?»
De volta a Portugal, o que importa aqui sublinhar é que a opção tomada foi de insistir na fórmula que no plano europeu já se deixou cair. É certo que, na maioria das vezes, divergir do que se passa em Bruxelas/Estrasburgo pode ter mais de bom do que de mau. Porém, no caso que aqui analisamos, aquilo do que se trata não é de uma verdadeira insubmissão, mas antes da casmurrice numa fórmula que antes de nascer... já morreu!
Em peça publicada pelo Expresso recentemente isso fica cristalinamente claro. Primeiro, o representante de uma das plataformas diz que prefere adaptar a sua operação do que passar os trabalhadores a assalariados. Depois, representantes de outras plataformas deixam no ar a possibilidade de não cumprirem a lei – tal como acontece em Espanha, e como se a lei fosse algo que se cumpre ou não consoante se quer. Por último, os advogados ouvidos antecipam que as plataformas encontrarão formas de não cumprir a lei e/ou que os trabalhadores serão forçados a recorrer aos tribunais para ver a sua situação esclarecida.
Não me cumpre discutir aqui porque é que alguém acha razoável avançar com uma disposição legal que está condenada ao fracasso desde o início – talvez a história trate de nos dar esse esclarecimento um dia, como deu num passado recente. A pergunta que se impõe é: então, o que fazer?
O caminho é parar de tentar reinventar a roda. Enquanto os algoritmos que organizam o trabalho dos trabalhadores das plataformas for dirigido secreta e unilateralmente, enquanto aos trabalhadores não for dada plena liberdade de negociar por quanto e quando realizam o seu trabalho haverá sempre uma relação de dependência. No Código do Trabalho em Portugal temos já ferramentas capazes de lidar com o falso trabalho independente (normalmente com a forma de falsos «recibos verdes»). De resto, já em 2021, num relatório do Instituto da Mobilidade e Transportes sobre a chamada «lei Uber», o parecer dado pela ACT [Autoridade para as Condições do Trabalho] apontava para que os motoristas TVDE fossem considerados como trabalhadores das plataformas digitais.
Em suma, não é a legislação que precisa de mudar estruturalmente, nem é preciso que se criem novas regras à medida deste ou doutro sector. O que precisamos, sim, é de uma ACT com mais meios e mais eficácia, e de tribunais que decidam sobre matérias centrais na vida dos trabalhadores sem custas e em tempo útil. E quanto aos que acham que a lei – seja qual for – não é para cumprir, resta-nos fazer o que se faz a qualquer prevaricador: fechar-lhe a porta.
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