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Quando os oligopólios mandam na investigação mundial

Três empresas controlam praticamente 50% do mercado mundial das publicações científicas: a Elsevier, a Springer e a Wiley. As margens de lucro ultrapassam os 35%. São elas que determinam a direcção das investigações.

Protesto de bolseiros de investigação científica contra a precariedade, no Campus Tecnológico e Nuclear, Polo de Loures, São João da Talha.
CréditosAntónio Cotrim / Lusa

Na semana passada, a eurodeputada comunista Sandra Pereira fez uma pergunta à Comissão Europeia sobre o acesso livre a publicações científicas.

«As publicações académicas tornaram-se essenciais pela potencialidade do conhecimento partilhado mas também porque passaram a ser um factor contável para a integração e progressão na carreira dos investigadores e professores universitários. São, por isso, alvo de um negócio multimilionário das editoras especializadas que vivem à custa do trabalho desses investigadores, a quem, com frequência, pedem até um pagamento para a publicação de artigos. Ou seja, os investigadores, pagos por fundos públicos, frequentemente sob pressão da avaliação da sua posição, produzem ciência que publicam em artigos científicos que são cedidos, gratuitamente ou sob pagamento, aos editores, que por sua vez recorrem gratuitamente a revisores científicos e depois vendem esses artigos a outros investigadores e instituições», considerou a eurodeputada, que perguntou sobre o estado das coisas em relação à prometida implementação de políticas de livro acesso que acabem com esta situação em termos de publicações científicas:

«A Comissão Europeia vai promover políticas de acesso aberto e, em caso afirmativo, em que consistem?

Há garantia de que as instituições e os investigadores não terão qualquer tipo de custo para publicar e aceder a artigos científicos e que não serão, uma vez mais, as editoras a lucrar com o trabalho científico dos investigadores?»

Sandra Pereira sublinha, ao AbrilAbril, a importância deste assunto para os eurodeputados comunistas: «A promessa de um mecanismo de publicação aberta dos trabalhos dos investigadores europeus fez-nos não votar contra a proposta do Espaço Europeu de Investigação. Aquilo que nos fez tomar essa posição foi que falavam de plataformas de ciência aberta promovida com dinheiros públicos. Isso parece-nos bem, mas ao mesmo tempo a comissão que está a propor isso é a mesma comissão que está a levantar imensos obstáculos à partilha das patentes», disse.

Estamos perante um autêntico roubo. O estados e as universidades pagam as investigações; os académicos escrevem os artigos sem receber nenhum dinheiro em troca ou até pagando para isso; os «pares» revêem os artigos gratuitamente; as editoras publicam e ficam com os direitos de autor para todo o sempre, e revendem os seus conteúdos aos investigadores e universidades que produziram esses artigos e conhecimento, que para isso pagam milhões de euros pelos pacotes de assinaturas destas revistas e publicações cientificas.

Apesar de o aparecimento da internet parecer que ia liquidar esse negócio da China, baseado num oligopólio de três a quatro grupos editoriais, a verdade é que isso não aconteceu: as carreiras universitárias são classificadas pelos número de artigos que um investigador publicar nas revistas dessas editoras. Para além disso, as universidades e centros de investigação que querem estar actualizados têm que ter as assinaturas dessas revistas, para saber o que se está a fazer no seu campo de investigação.

Mesmo as estratégias de Open Acess (OA), acesso aberto, desenhadas pela Europa não são feitas para quebrar o negócio, mas para obrigar os investigadores, que querem publicar em acesso aberto os seus artigos, a pagar a essas editoras uma taxa por essa publicação em acesso aberto.

Cereja no topo do bolo, a União Europeia colocou, aliás, a maior das editoras, Elsevier, a «fiscalizar» o processo de transição para a colocação dos artigos científicos em OA. É como colocar o lobo a vigiar o galinheiro.

Esta criação de um negócio rentista milionário assegurado pelos contribuintes não é apenas a galinha dos ovos de ouro para três editoras, mas é também a entrega das carreiras de investigação à gestão dos interesses privados simbolizados pelos editores das revistas privadas. Elas publicam sobretudo um tipo de investigações que rendem uma maior criação de patentes.

A declaração dos Direitos Humanos pode dizer que a ciência deve estar ao acesso de todos, mas na realidade a produção científica das universidades, institutos e centros de investigação foi entregue a um oligopólio privado de poucas empresas. O neoliberalismo serve para privatizar o que é de todos, e, como sabemos, funciona só para os ricos.

Vejamos em concreto. Um artigo científico é o resultado palpável de uma investigação que, em certos casos, pode envolver milhares de milhões de euros (por exemplo, os recentes programas de investigação sobre o SARS-CoV-2). A publicação de artigos científicos é o critério primordial de avaliação universitária em todo o mundo, progressão de carreira. Para além de tudo, a leitura de artigos científicos é o principal mecanismo de transmissão de conhecimento científico em todo o planeta.

«O público universitário mundial é apreciável: 250 milhões de alunos, 15 milhões de docentes, 10 milhões de investigadores, estudando, ensinando e investigando em mais de 28 mil universidades. A transformação das universidades, de edifícios corporativos no sentido medieval em empresas geradoras de lucros, todas elas directa ou indirectamente assentes no modelo anglo-saxónico, contribuiu para estandardizar não apenas estruturas organizacionais e de conhecimento, mas sistemas ideológicos e comunicacionais. Neste modelo, os estudantes deixaram de ser estudantes e passaram a ser clientes pagantes, os graus e certificados transformaram-se em produtos, os docentes foram proletarizados e as administrações plasmaram as das companhias comerciais e industriais. Proliferaram os CEO e FCEO, instituiu-se a contabilidade analítica com vista ao aumento de margens de lucro, à redução de passivos, e à eliminação de sectores não competitivos, numa lógica declaradamente concorrencial», notou Manuel João Ramos num artigo de opinião no Público.

«Quem são os capitalistas mais implacáveis do mundo ocidental, cujas práticas monopolistas fazem o Walmart parecer uma loja de esquina e Rupert Murdoch um socialista? (...) Não obstante os muitos candidatos, o meu voto vai não para os bancos, para as companhias petrolíferas ou para as seguradoras, mas para os editores académicos. Este sector pode soar recôndito e insignificante, mas é tudo menos isso. De todos os esquemas fraudulentos, o que eles protagonizam é o que precisa mais urgentemente de ser denunciado às autoridades da concorrência», alerta George Monbiot, num artigo publicado há alguns anos no The Guardian.

«Pode ficar ressentido com a política de Murdoch, na qual ele cobra 1 libra por 24 horas de acesso ao Times e Sunday Times. Mas pelo menos nesse período pode ler e descarregar tantos artigos quantos quiser. A leitura de um único artigo publicado por uma das revistas da Elsevier custar-lhe-á 31,50 dólares. Springer cobra 34,95 euros, Wiley-Blackwell, 42 dólares. Leia 10 e pagará 10 vezes. E as revistas mantêm os direitos de autor perpétuos. Quer ler uma carta impressa em 1981? Serão 31,50 dólares», denuncia Monbiot.

O problema não é só o roubo no negócio. É que são as próprias editoras que mandam nas carreiras nas universidades. Um investigador progride numa universidade quanto mais publicações tiver em revistas mais importantes. Aquilo que estabelece a importância das revistas, todas elas privadas, é o número de citações que têm: esse índice é controlado por um organismo das próprias revistas editoras mais importantes.

E o desvio não se fica por aqui, é também linguístico. A certificação de um artigo ou de uma revista (o seu «factor de impacto») é feita por mecanismos informáticos, através de algoritmos medidores da quantidade de citações geradas, e não da avaliação interna da qualidade dos argumentos. Nesta corrida, os falantes de inglês têm uma vantagem indiscutível, já que esta se tornou a língua de comunicação mundial no mundo universitário: uma publicação em inglês «vale» três a cinco vezes mais que em quaisquer outras línguas na avaliação interna anual de um docente ou investigador. E a publicação em revistas de «quartil» superior – geralmente, as que são propriedade do cartel Elsevier-Springer-Wiley – é a única forma de assegurar empregabilidade e progressão na carreira.

Este alto impacto do neoliberalismo no controlo das carreiras universitárias é confirmada pela presidente da ABIC (Associação dos Bolseiros de Investigação Científica), Bárbara Carvalho, ao AbrilAbril:

«O investigador faz a sua investigação, a maior parte das vezes, paga com dinheiros públicos; para poder ter currículo vai ter de publicar os seus resultados, e os seus resultados são medidos não só pelo número de publicações, mas pelo factor impacto dessas publicações. É diferente publicar numa revista que não esteja indexada no Scopus ou Web of Science, ou numa revista da Academia de Ciências, por exemplo. O neoliberalismo entrou na investigação numa forma tão agressiva; basta ver à escala portuguesa. Neste momento é aberto um único concurso para doutorados anual, pela Fundação da Ciência e Tecnologia, e a taxa de aprovação é de 8% e 10%. Muitas vezes estamos a falar de 300 vagas para milhares de investigadores. A avaliação têm vários parâmetros, mas a publicação em revistas científicas é o mais importante. Não é o que se publicou que conta, é onde é que se publicou e o factor de impacto desta publicação. Não basta estar indexada na Scopus ou Web of Science, mas tem de estar indexada no primeiro quartil, percentil um das publicações mais cotadas. Só para dar um exemplo, abriu um concurso na Universidade de Lisboa que já era requisito da candidatura ter publicado em revistas com factor de impacto elevado e só as pessoas que tinham publicado nessas revistas de topo eram admitidas a concurso. Tudo isso implica obedecer a uma cultura de artigo e dessas publicações. É uma pescadinha de rabo na boca. Na verdade o Estado paga a investigação, o investigador precisa de publicar, cede o seu trabalho à editora, a revista vai publicar e depois vende de volta à universidade através de uma subscrição altíssima. Com a alteração das política de acesso aberto, foi um passo que foi dado para se poder publicar parte dos artigos em acesso aberto. Mas o problema é que muitas vezes as editoras exigem um pagamento para disponibilizar esses artigos. Este tipo de políticas não só coloca a carreira dos investigadores dependentes da revista como limita o acesso dos investigadores e da sociedade à produção científica.»

Os difíceis caminhos do acesso aberto

Memes satíricos encheram as redes sociais de cientistas do mundo todo quando, em Janeiro deste ano, a revista especializada Nature Neuroscience decidiu fazer um editorial destacando sua adesão à política para publicação de artigos de acesso aberto, permitindo o acesso online de quem não tem assinatura.

«Essa transição reflecte nosso comprometimento com a ciência aberta e a forte procura da comunidade científica», detalhou o editorial. O preço da mudança: 11,39 mil dólares por artigo, valor pago pelos próprios cientistas que querem publicar a sua investigação.

Embora a Springer Nature argumente que o valor se justifica pelos serviços oferecidos pelas publicações aos cientistas e pela alta competição por espaço nas suas páginas, pesquisadores dizem que a taxa está fora da realidade para países em desenvolvimento, como o Brasil. Além disso, criaria barreiras para a livre divulgação de resultados de pesquisa justamente quando esse seria um dos objectivos do modelo de acesso aberto.

Descontos que considerem a realidade dos países de origem dos cientistas? Por enquanto, isso é impossível para praticamente toda a gente. «Eles usam uma classificação socioeconómica do Banco Mundial que só significa publicação gratuita para o Sudão do Sul e o Afeganistão. Se o investigador for do Haiti, já é considerado de país de rendimento médio-baixo e, portanto, tem de pagar», relembra Alicia Kowaltowski, professora do Departamento de Bioquímica da USP à Folha de São Paulo.

Acesso desigual aos resultados da investigação pública, um modelo económico obsoleto, lucros exuberantes para um punhado de editoras científicas, avaliação disfuncional dos investigadores. Tantos obstáculos entre a realidade da publicação científica e uma indústria que serviria verdadeiramente a comunidade científica e o interesse geral. Embora editores, universidades e agências de financiamento pareçam estar finalmente de acordo sobre a necessidade de uma ciência aberta que seja acessível a todos gratuitamente, ainda não existe unanimidade sobre como alcançar o acesso aberto generalizado.

Quanto pagaria pelo acesso a um estudo científico? A editora holandesa Elsevier, que publica mais de um estudo em cada cinco, cobra uma média de 25 euros por artigo. Agora imagine que procura a resposta para um dilema médico do qual depende a sua vida ou a vida de alguém próximo de si. Não gostaria de consultar vários artigos e correr o risco de ter uma factura perigosamente alta? Esta é a situação em que se encontrava o biólogo americano Jonathan Eisen, e que levou ao seu compromisso de abrir o acesso à ciência para todos. É agora editor-chefe da PloS Biology, um exemplo bem sucedido de uma revista de acesso aberto, cujas publicações são disponibilizadas online gratuitamente a todos. Várias dezenas de milhares de periódicos semelhantes surgiram desde os anos 2000. No entanto, cerca de dois terços da investigação mundial é ainda publicada em revistas pagas, que são inacessíveis ao público em geral e a todos os institutos de investigação que não podem pagar subscrições caras dessas revistas científicas. Existem plataformas piratas, como o SciHub, que oferecem artigos ilegalmente, mas uma solução institucional oficial está ainda por conseguir.

A luta pelo acesso aberto tem décadas. A investigadora do Centro de Estudos Sociais Paula Sequeiros recorda, ao AbrilAbril, as intenções daqueles que começaram a exigir que o conhecimento fosse público e não apropriado por entidades privadas.

«As primeiras movimentações relativas ao acesso aberto foram realmente feitas por pessoas ligadas à publicação de ciência e que se apercebiam dos constrangimentos que eram exercidos por grandes empresas. A pressão é muito maior hoje daquilo que era há 20 ou 30 anos. A ideia era afrontar os grandes grupos editoriais que levavam muito dinheiro por um trabalho que já tinha sido pago por entidades públicas. Os investigadores e universidades, muitas vezes com apoio de fundos públicos, faziam as investigações e aí intervinha uma terceira entidade oportunista que publicava sem pagar nada aos primeiros e retirava um lucro enorme e ilegítimo disso. O outro desejo, que se tinha, era a ideia benfazeja de que o conhecimento científico devia estar ao alcance de todas as pessoas e, por suposto, a toda a comunidade científica e portanto não fazia nenhum sentido cobrar dinheiro para se poder aceder àquilo que eram recursos primários para produzir mais conhecimento. Estas foram as grandes intenções iniciais daqueles que defendiam o acesso aberto. Entretanto, o que é curioso ou não, por que não é caso único em economias capitalistas, é que os próprios grandes grupos editoriais., que começaram a ter quebras nos seus resultados, apropriaram-se deste discurso benfazejo e então apresentam-se a dizer: nós criamos o acesso aberto.»

Paula Sequeiros foi co-coordenadora do livro A Investigação e a Escrita: Publicar sem Perecer, em que se analisavam os mecanismo com que o neoliberalismo coloniza a investigação científica.

«A ideia boa e generosa de colocar o conhecimento aberto a qualquer pessoa está em permanente colisão com o grande negócio que não quer tolerar que isso aconteça ou então permitir algum acesso aberto mas muitíssimo pago por outras vias. Um dos principais ricochetes que a indústria da publicação que arranjou foi exigir aos autores que paguem os Article Processing Charges (APC), os custos de publicação em acesso aberto para uma revista privada. Gera uma lógica que deita fora a lógica mais igualitária e mantém as características ilegítimas do negócio. Este negócio é tão forte e violento que não se fica apenas pelo enorme lucro. De repente, estas criaturas têm o controle do que são as agendas de investigação. Eles é que se constituem como um poder de facto que decidem o que se pode fazer ou não fazer: privilegiando tudo aquilo que dê patentes. Isto é uma luta que está muito aguda.»

Para tentar resolver este problema criou-se na Europa a «Coligação S», um agrupamento de 27 instituições de financiamento da investigação – agências nacionais e internacionais, fundações privadas, etc. – que estabeleceu dez princípios para iniciar uma mudança de rumo em direcção ao Acesso Aberto. O «Plano S», que pôs em prática em Janeiro de 2020, exige que os resultados financiados pelos seus membros sejam publicados em livre acesso para todos, gratuitamente e imediatamente após a sua publicação. 

Fora da Europa, a ideia do acesso aberto está também a fazer o seu caminho nos Estados Unidos, China, Austrália e Canadá. Para Matthew Day, Director de Política de Acesso Aberto da editora britânica Cambridge University Press (CUP), «o debate já não é se as revistas académicas farão a mudança para o Acesso Aberto, mas, sim, como conseguir esta transição de uma forma justa e sustentável». De facto, todo um modelo económico precisa de ser revisto – o da publicação científica – e há muitas maneiras de avançar para a investigação de acesso aberto. Assim, embora o «Plano S» defenda o acesso aberto, não decide o caminho a seguir. Quatro editoras comerciais, incluindo Elsevier e Springer Nature, detêm mais de 50% do mercado e acumulam regularmente lucros recorde de mais de 35%, ao passo que as sociedades de conhecimento e as editoras sem fins lucrativos parecem preocupadas com a sua sobrevivência num mundo em que as suas revistas se tornam gratuitas.

Os editores privados afirmam que têm de cobrar estas taxas como resultado dos custos de produção e distribuição, e que acrescentam valor (nas palavras de Springer) porque «desenvolvem marcas de revistas e mantêm e melhoram a infra-estrutura digital que revolucionou a comunicação científica nos últimos 15 anos». Mas uma análise do Deutsche Bank chega a conclusões diferentes: «Acreditamos que a editora acrescenta relativamente pouco valor ao processo editorial... se o processo fosse realmente tão complexo, dispendioso e de valor acrescentado como os editores afirmam que é, os cerca de 40% de margens não estariam disponíveis.»

Longe de ajudar à divulgação da investigação, as grandes editoras impedem-no, uma vez que os seus longos tempos de resposta podem atrasar a divulgação dos resultados por um ano ou mais.

O que vemos aqui é puro capitalismo rentista: monopolizar um recurso público e depois cobrar taxas exorbitantes pela sua utilização. Outro termo para ele é parasitismo económico. Para obter os conhecimentos pelos quais já pagámos, temos de entregar a pele e o cabelo.

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