É difícil precisar a data em que a sociedade portuguesa foi atingida pelo novo paradigma «da avaliação do desempenho», que se infiltrou por todos os poros, por todas as frinchas da actividade laboral, extravasando os proletários do campo e da ferrugem, atingindo trabalhadores de escolas, hospitais e centros de Saúde infectando investigadores de humanidades ou de ciências exactas, artistas, empregados dos shopping’s, de agências imobiliárias ou de viagens, vendedores de automóveis ou de latas de conserva.
Uma nova mentalidade dita moderna e empresarial, própria de gente viçosa e empreendedora, com pinceladas de arrogância e um confuso paleio ideológico mal aprendido nas universidades de Verão dos «jotas», começou a enviar para o caixote do lixo toda a experiência já acumulada no campo laboral, impondo como natural uma vida sempre sob pressão, avaliada em metas, objectivos, rankings e comportamentos, aumentando a submissão do trabalho às cada vez maiores exigências dos «donos do mundo».
No terreno, as «avaliações de desempenho», apresentadas sob a capa de rigor técnico, passaram a acicatar a concorrência individual, empurrando os trabalhadores uns contra os outros, isolando-os perante as arbitrariedades do assédio (designação de perseguições e maus-tratos por parte das chefias), que passaram a atingir formas desumanas e doentias, muitas vezes disfarçadas.
O inimaginável acontece: treinar «avaliadores» como psicopatas
Abordando o tema na sua vertente clínica, Christophe Dejours, psiquiatra, psicanalista e director do Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Acção do Conservatoire National des Arts et Métiers, de Paris, que analisou maus-tratos graves passados na Renault e na France Telecom, numa entrevista dada ao Público de 1/2/20101 (em plena «crise» financeira que acentuou a desregulação do trabalho em Portugal), falou do sofrimento da avaliação, do assédio, do suicídio nas empresas:
«A avaliação individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais – e também os indivíduos. E se estiver associada a prémios ou promoções, quer a ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, o que altera completamente as relações de trabalho: O que quero é que os outros não consigam fazer bem o seu trabalho!...».
Quanto ao perfil dos que são alvo preferencial da agressão das chefias, Christophe Dejours, precisa:
«São justamente pessoas que acreditam no seu trabalho, que estão envolvidas e que quando começam a ser censuradas de forma injusta, são muito vulneráveis. Por outro lado, são pessoas muito honestas e algo ingénuas. Portanto, quando lhes pedem coisas que vão contra as regras da profissão, contra a lei e os regulamentos, contra o código do trabalho, recusam a fazê-lo…».
«A ausência de um debate sério sobre o conteúdo e a imposição de «avaliações» irracionais (...) tem mostrado o seu carácter instrumental ao serviço de objectivos alheios à justa valorização do trabalhador e à sua progressão e aperfeiçoamento profissionais.»
Segundo Dejours há técnicas organizadas com o apoio de psicólogos para ensinar chefias e responsáveis de recursos humanos a fazerem o assédio. E cita um exemplo:
«No início de um estágio de formação em França, cada um dos quinze participantes, todos eles quadros superiores, recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e cada participante tinha de tomar conta do seu gatinho. No fim, o director do estágio deu a todos a ordem… de matar o seu gato». Catorze mataram o gatinho e a única participante que se recusou, adoeceu e foi tratada por Christophe Dejours que, assim, ficou a conhecer o caso. «O estágio era para ser impiedoso, uma aprendizagem de assédio», explica o psiquiatra.
Nesta guerra de domínio do capital, para os que vivem do seu trabalho – mesmo tendo funções superiores – não há almoços grátis. Falar de um ambiente fascizante, não será exagero. O caminho do despedimento está aberto pelo desgaste moral causado por processos de assédio em que a «avaliação do desempenho» representa uma das formas mais usadas de violência e submissão, sob o disfarce do rigor.
Na realidade, nada disto tem a ver com reais preocupações de avaliação, no seu verdadeiro sentido, mas com uma estratégia de domínio e fragmentação profissional e social. Os trabalhadores não se revoltam por serem avaliados. Revoltam-se contra regras sem credibilidade, impostas com falsa superioridade moral por quem muitas vezes é reconhecidamente incompetente e tudo ignora do trabalho realizado, seguindo critérios que servem apenas de pretexto para excluir os menos bem aceites pelas chefias.
E ver dirigentes políticos, com licenciaturas domingueiras inventadas ou alcançadas com ridículas equivalências, a encherem o peito com exigências de rigor, denuncia a pouca credibilidade das propostas.
A ausência de um debate sério sobre o conteúdo e a imposição de «avaliações» irracionais – pela forma aleatória, pouco coerente ou até displicente como são aplicadas – tem mostrado o seu carácter instrumental ao serviço de objectivos alheios à justa valorização do trabalhador e à sua progressão e aperfeiçoamento profissionais.
O exemplar caso da «avaliação» (ou não) dos professores
O que se passou com os professores no tempo do governo Sócrates e da ministra Maria de Lurdes Rodrigues retrata, em traços coloridos, todo esse enviesado processo que começou por dividir os professores em «titulares» e «não titulares», através de critérios inaceitáveis e até aí desconhecidos, pondo depois uns a avaliar os outros, subvertendo a hierarquia naturalmente reconhecida.
Alguns dos piores engulhos dessa avaliação sem sentido, que acentuou a desautorização dos professores e estimulou o facilitismo, foram travados pela enorme contestação, com greves e protestos constantes que culminaram em duas gigantescas manifestações, cada uma com mais de cem mil professores, que se deslocaram à capital, um espantoso acontecimento, inédito no país e na Europa.
«Os resultados mostram que conseguimos melhorar [o ensino] em todos os níveis, apesar de não termos conseguido fazer a avaliação»
Maria de Lurdes Rodrigues, Lusa, 10/2/2017
O tema monopolizou totalmente o debate nacional, e foi assumido pela comunicação social como se só dele dependesse o futuro do país e nada houvesse mais decisivo para a nação do que «a recusa dos professores em se deixarem avaliar», o que, de resto, constituía uma flagrante mentira.
Dez anos depois, contudo, e segundo afirmações da própria Maria de Lurdes Rodrigues, o que na altura a ex-ministra considerava absolutamente essencial para o avanço do país, afinal tinha pouca importância: «Os resultados mostram que conseguimos melhorar [o ensino] em todos os níveis, apesar de não termos conseguido fazer a avaliação» (Lusa, 10/2/2017).
Melhoria do ensino graças a ela? Não! Graças aos professores? Sim, seguramente…
Voltemos ao conceito da tal «avaliação»
Segundo o jornalista Vítor Malheiros (Público, 4/2/2014), «o recurso à avaliação individual de desempenho estandardizada serve apenas para que empresários, gestores ou capatazes possam tomar decisões de despedimento ou recompensa de trabalhadores motivadas por razões pessoais ou políticas e as possam justificar com ar inocente apontando para uma tabela Excel».
O jornalista explicita que a «avaliação» pune o absentismo «mesmo quando ele é justificado por razões legais, como uma baixa de maternidade ou a redução de horas concedidas aos trabalhadores-estudantes», e «não faz apenas uma análise quantitativa e qualitativa do trabalho realizado (o que não seria fácil só por si), mas inclui também uma componente comportamental».
Na verdade, segundo diz, «é importante ser “positivo” (o que significa oferecer as suas ideias mas nunca criticar as ideias do chefe), ser “construtivo” (o que significa nunca criticar as ideias da organização), estar “disponível” (o que significa fazer horas extraordinárias sem compensação)…».
Fausto Leite, advogado e especialista de Direito do Trabalho2, também concorda que «a avaliação tem sido usada para dividir os trabalhadores e expurgar os incómodos. No tempo da escravatura, os que tinham menos desempenho eram chicoteados. Agora pretende-se condená-los à pobreza, ainda que haja razões para a diminuição da produtividade, como a doença ou as responsabilidades familiares (Público, 2-3-2014)».
«é importante ser “positivo” (o que significa oferecer as suas ideias mas nunca criticar as ideias do chefe), ser “construtivo” (o que significa nunca criticar as ideias da organização), estar “disponível” (o que significa fazer horas extraordinárias sem compensação)»
Vítor Malheiro, Público, 4/2/2014
Entre outras empresas e instituições, também os institutos superiores de investigação foram avaliados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia de forma tão incompetente e pouco científica que despertou um coro de protestos. «Dos três avaliadores que visitaram o Centro de Arquitectura do Porto, nenhum era arquitecto, nem conheciam Siza Vieira», escandalizou-se o conhecido físico Carlos Fiolhais, em artigos publicados no Público em 3/9/2014 e 11/11/2014. Segundo o físico, havia uma cota escondida de 50% de instituições que podiam ser aprovadas (e financiadas). As outras eram para fechar. De resto, as regras também tinham sido mudadas durante o decorrer do processo3.
As Sociedades de Física, Química, Matemática, Filosofia, o Conselho de Laboratórios Associados (2500 laboratórios), os reitores das universidades, os sindicatos, as associações de bolseiros, enfim, quase todos os que puderam pronunciar-se e não estavam envolvidos no crime, manifestaram-se contra, sem que isso conseguisse impedir totalmente o desastre.
Para muitos, a recusa de uma proposta de «avaliação de desempenho» para a função pública coloca-os numa presumida posição de inferioridade moral, fazendo-os cair na armadilha de aceitarem acriticamente as condições propostas, desejando ingenuamente mostrar que não têm receio de a ela se sujeitarem.
Foi o caso de algumas organizações sindicais que, postas perante formas redutoras de «avaliação» – que separam o trabalhador do contexto em que desenvolve a sua actividade e se mostram totalmente desadaptadas à avaliação da profissão, incluindo até, por vezes, cláusulas abusivas – decidiram enveredar pela via do seu aperfeiçoamento o que, possibilitando o aparar de algumas arestas, as colocou do lado dos manhosos promotores do vicioso processo.
O paradoxal caso dos médicos: quando a avaliação é objectiva, descarta-se
No caso dos médicos, menorizou-se a longa e rica experiência já alcançada dentro do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com as celebradas Carreiras Médicas, que obrigavam a que qualquer lugar ou graduação só pudesse ser ocupado após concurso público com avaliação por um júri de pares qualificados.
Uma das conclusões que desde logo essa experiência tornou evidente, foi a importância e a complexidade de julgar os diversos passos e aspectos de toda uma carreira e, tão ou mais importante do que isso, as graves repercussões profissionais e psicológicas que podiam resultar de uma classificação injusta.
Essa preocupação levou a que os problemas, detectados em anos e anos de provas e recursos, fossem progressivamente corrigidos, procurando anular os factores mais subjectivos, estabelecendo procedimentos concursais mais claros e apertadas grelhas de critérios a seguir.
Paradoxalmente (ou talvez não) foi no cume da onda de «avaliações» que as das Carreiras Médicas foram substituídas por contratações individuais sem concurso, bastando uma carta do director do Serviço e a assinatura de cruz da Administração (que nada percebia da parte técnica eventualmente fornecida) para que o escolhido pudesse ocupar o lugar disponível.
«Paradoxalmente (ou talvez não) foi no cume da onda de «avaliações» que as das Carreiras Médicas foram substituídas por contratações individuais sem concurso, bastando uma carta do director do Serviço e a assinatura de cruz da Administração»
Culminando a arbitrariedade e prepotência do toda a pressão «avaliadora», os governos da troika, que encheram a boca com pomposas tiradas sobre a incontornável necessidade de «premiar o mérito» de cada um, mandaram às urtigas todos os prémios e progressões que tinham prometido aos trabalhadores pela «avaliação do desempenho», roubando os únicos estímulos que tinham estabelecido para o «progresso» para gastar o dinheiro a salvar a Banca dos seus buracos.
É pois altura de, para além de se exigir que sejam pagas as promessas e que se reponha tudo o que que é devido com os acrescentos que os trabalhadores merecem, começar a pôr termo a este «sistema avaliador» perverso e empapado de ideologia neoliberal, que serve para tudo menos… para avaliar!
- 1. Sobre o mesmo tema, também vale a pena ler a entrevista dada em Maio de 2016 à revista Psychologies (Maio de 2016)
- 2. O leitor que queira aprofundar o ponto de vista deste especialista pode ver e ouvir a sua intervenção no debate sobre «Justiça e Direito do Trabalho», realizado em Lisboa a 25/2/2015
- 3. O blogue De Rerum Natura, animado por Carlos Fiolhais e outros investigadores na área da ciência, com particular atenção à pseudo-ciência e aos inimigos da ciência, denunciou – a nível nacional e internacional – a incompetência da «avaliação» e as suas nebulosas motivações.
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