A dominação política, económica e cultural anglo-saxónica, liderada pelos EUA, muito deve à capacidade de fazer circular ideias que se tornam centrais nos debates públicos internacionais através de intervenções dos think tanks que marcam a agenda dos debates para desarmarem e descontextualizarem os que coloquem em causa o pensamento neoliberal. Um processo que se foi apurando em dezenas de anos, em que se consolidaram a globalização mediática, a cultura de massas e a iconografia norte-americanas, integradas numa ideologia hedonista e consumista em que se neutralizaram as culturas locais descontextualizando-as, sempre e só lhe reconhecendo algum valor quando as assimilam para as colocar no mercado global das indústrias mediáticas e culturais. Uma estratégia que tem o seu maior êxito na contaminação produzida no pensamento de esquerda que, paradoxalmente, enquanto produz análises realistas e incisivas nos planos da política, da economia e da sociologia, em livros, revistas, jornais, no ciberuniverso, sobre a condição actual das nações, do aprofundar dos problemas e dramas de nosso presente, em que há um esvaziamento da democracia e se regride com a subordinação às plutocracias, muitas vezes se enreda em debates em que a luta de classes é atirada para segundo plano como se esta sociedade não fosse fundada na violência da luta de classes. Muitas esquerdas ausentaram-se de muitos planos de luta, substituindo-os por outras frentes que desaguam no que Nancy Fraser, filósofa ligada aos movimentos feministas, descreve como o neoliberalismo progressista que dominava a política estadunidense antes de Trump: «isso pode soar como um oxímoro, mas era uma aliança real e poderosa de dois companheiros de cama improváveis: por um lado, as correntes liberais mainstream dos novos movimentos sociais (feminismo, anti-racismo, multiculturalismo, ambientalismo e direitos LGBTQ); por outro lado, os setores “simbólicos” e financeiros mais dinâmicos da economia dos EUA (Wall Street, Silicon Valley e Hollywood)». Aliança que tem por objectivo último liberalizar e globalizar a economia capitalista, consolidando a sua hegemonia, o que é desde sempre o objectivo do liberalismo na sua pluralidade, de que essas esquerdas desbussoladas acabam por ser objetivamente aliadas.
«Nas democracias liberais residiria a «salvação nacional», o que se deve ler como para a salvação do neoliberalismo vale tudo, até passar por cima do funcionamento das instituições democráticas. A democracia liberal seria o melhor dos mundos apesar de uns sobressaltos nada despiciendos, desiguais e variáveis, de Orbán a Trump»
São-no porque para adquirirem presença mediática, que não por acaso lhe é amplamente concedida, não se libertam das agendas que são, directa e indirectamente, pautadas pelo ideário neoliberal plasmado pelas elites que monopolizam o espaço público que perverteram, universalizando-o. Por cá, na nossa periferia, é vê-los a perorar em todos os teatros que lhes dão palco para que o estado de sítio do liberalismo democrático se respire como ambiente natural. Da direita musculada, que se vai exercitando enquanto lavra terreno para ter condições de pôr os bíceps à prova, às esquerdas de frágil ancoragem que fazem críticas anémicas para justificarem a sua existência enquanto esquerda, esse é o pano de fundo dos cenários onde se movem. De um ou de outro modo são dependentes das ideias produzidas nos cenáculos do liberalismo, desde os primitivos liberais aos actuais neoliberais, em que a constelação dos think tanks brilha com intensidade, as dos EUA mais vigorosas pelos meios de difusão de que dispõem.
Os think tanks têm formação académica adquirida nas mais prestigiadas universidades norte-americanas, estão directamente ou indirectamente vinculados a departamentos de Estado, são presença regular nos media internacionais. Um dos casos mais recentes e emblemático é o de Francis Fukuyama, que proclamou o fim da história, das ideologias e da política no celebrado O Fim da História e o Último Homem1 depois da queda do Muro de Berlim e da implosão da primeira experiência histórica socialista. A sua tese era que a democracia liberal, regida pela mão invisível do mercado, era o ponto final da história universal, o capitalismo seria o seu estado nativo. A história tinha deixado ser território de transformações radicais ou mesmo significativas quanto à forma de organização e de vida da sociedade humana. O fim da política era o fim da política ideológica, marxista por perca definitiva de todo o horizonte utópico, da utopia não como o desejo do impossível mas daquilo que ainda não foi possível realizar.
A História que Fukuyama atirara porta fora, fechando-a a sete chaves, entrou fragorosamente pela janela. Para ele, para os cientistas políticos da sua lavra, não há vício lógico que os trave. Vale tudo desde que a propriedade privada seja o deus ex-machina, a doxa que orienta os seus ditirâmbicos exercícios de estilo, pelo que escaqueirado o fim da história retoma-a de cernelha: «os sistemas políticos modernos são chamados de democracias liberais, porque unem dois princípios díspares. Liberalismo é baseado na manutenção de um campo aberto para todos os cidadãos, principalmente quando se trata da propriedade privada, que é um factor crítico para o crescimento e para a prosperidade económica. A parte democrática, a escolha política, é aquela que reforça as escolhas comuns e que vê todos os cidadãos como um único conjunto». Nas democracias liberais residiria a «salvação nacional»,o que se deve ler como para a salvação do neoliberalismo vale tudo, até passar por cima do funcionamento das instituições democráticas. A democracia liberal seria o melhor dos mundos apesar de uns sobressaltos nada despiciendos, desiguais e variáveis, de Orbán a Trump, o que procura explicar inventando novos conceitos, das mais variegadas cepas.
«O que estes modernos cientistas políticos procuram iludir é que no liberalismo político, que tanto os move e comove, as liberdades individuais e o progresso estão sempre submetidos às suspeitas mãos invisíveis do mercado, que ditam as leis em que nada se cuida das liberdades culturais, sociais e políticas, desde que estas não se reflictam no lucro, a única hierarquia que reconhecem»
«Democracia iliberal» é um conceito apresentado por Fareed Zakaria em artigo de 1997 para a revista Foreign Affairs, de que é editor. Zakaria, que defendeu a invasão do Iraque – do que se veio a arrepender – e criticou George Walker Bush para alinhar com as aventuras bélicas de Obama, anda agora muito entusiasmado com o Plano Abraão, o iníquo plano de paz de Trump para o Médio-Oriente, elogiando Netanyahu e mesmo Mohammad bin Salman, o príncipe herdeiro saudita – esse mesmo, o mais que suspeito de envolvimento na morte macabra de Jamal Khashoggi, no desaparecimento de vários outros príncipes sauditas seus críticos, responsável sem quaisquer presunções pelo maior desastre humanitário actual, que sucede no Iémen. Quando define esse conceito inicia uma cruzada em defesa das democracias liberais, as quais que se poderiam organizar numa espécie de deriva política da tabela periódica de Mendeleiev: 1- Não democracia; 2- Democracia illiberal; 3- Semidemocracia; 4- Democracia liberal; todos estes grandes grupos subdivididos numa miríade de subgrupos. É um exercício de sobrevivência das democracias formais para a ditadura da burguesia, como Lénine definiu, continuar a exercer o seu poder soberano, mais ou menos temperado entre as liberdades individuais e as reivindicações da economia de livre mercado – a sua pedra basilar – em que as desigualdades económicas e sociais se agravam, como se tem assistido nos últimos decénios. O que estes modernos cientistas políticos procuram iludir é que no liberalismo político, que tanto os move e comove, as liberdades individuais e o progresso estão sempre submetidos às suspeitas mãos invisíveis do mercado, que ditam as leis em que nada se cuida das liberdades culturais, sociais e políticas, desde que estas não se reflictam no lucro, a única hierarquia que reconhecem. O fundamento é que a propriedade privada, raiz da exploração do trabalho e da alienação humana, permaneça intocada.
Neoliberais herdeiros dos liberais do séc. XVIII, John Locke, Jeremy Bentham, Stuart Mill, que nunca foram democratas embora pregoando o liberalismo político, as liberdades individuais e o progresso, os quais deviam ser submetidos ao utilitarismo de uma ética aplicável tanto às decisões políticas como às acções individuais. Esse o norte nas áreas económicas, políticas e judiciárias do liberalismo. Um relativismo absoluto que os fazia defender ser sempre aceitável o despotismo desde que a economia continuasse orientada pelos automatismos das leis do mercado ferreamente controladas e impostas pela lei do mais forte. Os liberais de antanho e os neoliberais de hoje só relutantemente e quando lhes é impossível subtraírem-se é que se submetem a princípios democráticos, que logo subvertem quando alcançam o poder.
O que de facto os inquieta é que a crise continuada do liberalismo clássico do século XIX, agora agravada com as crises vividas nos sécs XX e XXI, continue incapaz de garantir o progresso social por muito que os mercados sejam livres, o que alimentou as experiências socialistas do início do século XX e continua a manter a chama acesa nas esquerdas marxistas que consideram contingente a realidade histórica do capitalismo mesmo quando hoje ela se apresente como hegemónica.
As inquietações dos politólogos think tanks, esse crescente clero de cientistas políticos, com as democracias iliberais, agravadas e ratificadas pelo episódio grotesco da invasão ao Congresso norte-americano – um assalto à democracia representativa que até nem é surpreendente para quem acompanhou os lances das últimas eleições presidenciais norte-americanas e os das antigas e continuadas transumâncias entre os dois partidos que se alternam no poder de uma ditadura democrática submetida aos interesses do complexo industrial-financeiro-militar – são exercícios de sobrevivência do capitalismo neoliberal para minimizar os movimentos de disrupção política que, no entanto, consideram inevitáveis.
«O que de facto os inquieta é que a crise continuada do liberalismo clássico do século XIX, agora agravada com as crises vividas nos sécs XX e XXI, continue incapaz de garantir o progresso social por muito que os mercados sejam livres, o que alimentou as experiências socialistas do início do século XX e continua a manter a chama acesa nas esquerdas marxistas que consideram contingente a realidade histórica do capitalismo mesmo quando hoje ela se apresente como hegemónica»
O que esses politólogos sublinham nas democracias iliberais é que são regimes que hibridizam as formas vulgarizadas pelas democracias liberais mais abertas e por regimes autoritários, em que os governos eleitos democraticamente imediatamente ignoram e tripudiam os limites constitucionais e as liberdades individuais dos cidadãos. Enfatizam que os líderes e partidos iliberais, uma vez eleitos, usam as suas maiorias legislativas para subverter o processo de controlos e equilíbrios, o poder Executivo para subjugar a independência de outras instituições, o judiciário, as Procuradorias Gerais, os órgãos de investigação, para reinterpretar o estado de Direito, as Comissões Eleitorais para provocar mudanças no sistema eleitoral para se perpetuarem no poder. Não anotam que o sufrágio universal na actualidade foi sempre variável, entre os mais representativos da vontade popular, como em Portugal ou na Holanda, ao que é condicionado pelos desenhos de círculos eleitorais em que com menos votos expressos se elegem mais deputados, para garantir a hegemonia das forças mais conservadoras. Escandalizam-se, com o que de facto é escandaloso, com as manipulações eleitorais do Fidesz na Hungria, que nas últimas eleições consegue 67% dos assentos parlamentares com apenas 49% dos votos, ou com o PiS, na Polónia que logra 51% dos assentos parlamentares com 38% dos votos expressos. São desvios brutais, mas que têm precedentes mais suaves mas reais no Reino Unido em que, nas últimas eleições, os Conservadores com 42,6% dos votos conquistam 56,2% dos assentos parlamentares em comparação com os Trabalhistas, 32,2%/31,2%, e os Liberais, 11,5%/1,70%; na Grécia, em que o partido mais votado nem que seja por um voto tem um bónus de 50 deputados não sufragados; com o sistema de colégio eleitoral nos EUA, onde não há correspondência entre o número de votos obtidos por um candidato a presidente e milhões de votos a mais não garantem a sua eleição. Também não os escandaliza um governo que não é submetido ao voto dos cidadãos como recentemente o de Mario Draghi, chamado de unidade nacional mas que é de facto iliberal, como, noutro plano, nunca se escandalizaram com as imposições da troika à Grécia, ou as do FMI ou do Banco Mundial, que objectivamente contribuem para a proliferação das ideias subjacentes aos populismos e às democracias iliberais.
O que consideram como desvios à democracia liberal é a normalidade da anormalidade democrática das sociedades capitalistas neoliberais que desde sempre variaram e continuam a variar entre tanto serem limitadamente libertárias como não hesitarem em recorrer aos extremos mais repressivos, tanto se apresentaram múltiplas como monolíticas, modalizando-se conforme as geometrias dos enquadramentos sociais, económicos e políticos resultantes dos avanços e recuos da luta de classes, a pedra de toque é que a exploração da força de trabalho se mantenha intocada.
A grande evidência é que nada é mais desigual que a igualdade entre desiguais. Com tamanhas desigualdades a democracia é impossível ou é muitíssimo degradada no quadro da democracia burguesa, quaisquer que sejam as variantes da representação democrática. É essa evidência que impede as discussões políticas e sociológicas de saltarem as barreiras do pensamento dominante, e que a alternativa seja ficar encerrado num sistema em colapso, mais despolitizado, mais desdemocratizado, socialmente mais despromovido, cada vez mais fechado e dissemelhante.
O grande desafio que se coloca à esquerda, às esquerdas é, sem se alhear dessas teses, não se deixar enredar nas suas agendas, manter aberto um diálogo aberto, por mais áspero que seja, para abrir frentes de luta contra o neoliberalismo capitalista, criticando-o em todas as suas vertentes, fortalecendo todos os baluartes democráticos e antifascistas onde se forjem consensos para o ultrapassar.
- 1. Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, Gradiva, 2019.
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