Para acabar e começar bem a semana acorde-se no dia 10 de Junho com Camões:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
para assumir sem receio o radicalismo, o bom e saudável radicalismo, dos que têm e nunca perderam a vontade de querer mudar os tempos com a memória de todos os revolucionários que mudaram o mundo para algo de facto diferente tornando possível a esperança que durante séculos tem sido transportada por todos os explorados e oprimidos. Tornando-a possível por semanas, meses, décadas, mesmo tenha sido interrompida num ponto qualquer do seu percurso para se saber que o foi possível alguma vez, será novamente possível, de outra forma que a história ensina mas não se repete.
Aproveite para, em todos os intervalos dessa luta, encher os alforges de livros, contrariando as cassandras que aparecem aqui e ali a proclamar que os livros estão se não mesmo mortos pelo menos em declínio. Que a voragem do tempo tira tempo para ler. Que cada vez se lê menos. Que a criatividade está em queda e a escrita mais magra.
Claro que há livros e livros e uns ditos escritores que podem até vender muito, mas são uns jihadistas contra a literatura, como os rodriguesdossantos & companhia. Sempre os houve e haverá, mas a literatura, que os desconhece, continua bem viva.
Todas as semanas são editados livros de velhos e novos escritores que exigem atenção. Em Lisboa, no Parque Eduardo VII, há uma óptima e já quase centenária montra, a 87.ª Feira do Livro.
Deambule-se entre os stands dos grandes grupos editoriais às pequenas editoras, muitas delas que quase só encontramos aí ou mais facilmente aí as encontramos, para (re)encontrar os clássicos e todos os outros que mesmo que nunca venham a ser clássicos são escritores de quilate. Aproveite-se a oportunidade de comprar livros com preço de capa mais baixo e os muito mais acessíveis que as editoras seleccionam para livros do dia.
Consulte-se o programa para estabelecer um roteiro de compras. Com essas ofertas podemos sempre comprar mais livros, nunca há livros a mais e cada dia passado na feira do livro é sempre um dia ganho, certamente numa qualquer esquina daquelas veredas de livros plantadas, encontramos um amigo também ele carregado de livros.
Nestas idas e vindas chegam os Santos Populares. Em Lisboa, as Festas da Cidade com a animação que a faz pulsar. Nos bairros tradicionais há sempre um arraial que espera por si. O meu arraial é o da Vozdo Operário, uma grande festa com o suplemento de se dar uma ajuda àquela instituição com uma actividade de mais de cem anos. Actividade social e cultural muito diversificada, com destaque para as suas escolas com um trabalho pedagógico que se distingue pela excelência. Vá a um qualquer arraial, mas dê uma saltada ao da Voz do Operário.
Com tantos livros e festas ficam esta por aqui as sugestões celebrando o Santo António com Fernando Pessoa que nasceu a ouvir os sinos da sua aldeia, os sinos das igrejas dos arredores do Chiado.
O poeta sempre foi um fingidor. Isto sem esquecer os outros santos populares. A festa rija, na noite de 23 para 24, do São João no Porto a abençoar as cabeças com martelinhos de plástico, sinais dos tempos que a carestia resguardou os alhos porros, que davam protecção garantida contra pragas e invejas, para as aventuras culinárias.
O São Pedro, de 28 para 29, é o mais celebrado de norte a sul e ilhas. Na Póvoa de Varzim, Bombarral, Castro Verde, Évora, Montijo, São Pedro do Sul, Seixal, Sintra, Macedo de Cavaleiros, Felgueiras, Ribeira Grande, o São Pedro é o santo tutelar de festas populares.
Nasci exactamente no teu dia –
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucólico e humano,
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir...
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!
Santo António, és portanto
O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Católico, apostólico e romano.
(Reflecti.
Os cravos de papel creio que são
Mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João...
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)
Adiante ... Ia eu dizendo, Santo António,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demónio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
És o santo do povo.
Tens uma auréola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração –
Está sempre aberto lá o vinho novo.
Dizem que foste um pregador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,
Etcetera...
Mas qual de nós vai tomar isso à letra?
Que de hoje em diante quem o diz se digne
Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa.
Qual santo! Olham a árvore a olho nu
E não a vêem, de olhar só os ramos.
Chama-se a isto ser doutor
Ou investigador.
Qual Santo António! Tu és tu.
Tu és tu como nós te figuramos.
Valem mais que os sermões que deveras pregaste
As bilhas que talvez não concertaste.
Mais que a tua longínqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
No que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as semelhanças
Com quando a vida era só vida e instinto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.
Nós somos todos quem nos faz a história.
Nós somos todos quem nos quer o povo.
O verdadeiro título de glória,
Que nada em nossa vida dá ou traz
É haver sido tais quando aqui andámos,
Bons, justos, naturais em singeleza,
Que os descendentes dos que nós amámos
Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que há na certeza,
O amante a quem ama,
E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez contigo
Nunca foi teu devoto: é teu amigo,
Ó eterno rapaz.
(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm beleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa? ...
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico
Em fantasia, promoveu-te a manjerico.
És o que és para nós. O que tu foste
Em tua vida real, por mal ou bem,
Que coisas, ou não coisas se te devem
Com isso a estéril multidão arraste
Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,
Essa prolixa nulidade, a que se chama história,
Que foste tu, ou foi alguém,
Só Deus o sabe, e mais ninguém.
És pois quem nós queremos, és tal qual
O teu retrato, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até que já te vi.
És este, e este és tu, e o povo é teu –
O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vai alta a lua
Num plácido e legítimo recorte,
Atira risos naturais à morte,
E cheio de um prazer que mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.
Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei António –
Isso sim.
Porque demónio
É que foram pregar contigo em santo?
«Santo António», Fernando Pessoa
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