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Os 60 anos de «Primary»

Na véspera do arranque de mais uma campanha nos EUA, Primary desafia-nos para continuar a pensar, hoje, sobre os mecanismos de construção da celebridade pela televisão e pelo cinema.

Fotograma de «Primary» (1960), de Robert Drew (1924-2014), um marco na história do documentário e do chamado «cinema direto»
Créditos / Letterboxd

Primary, realizado e produzido por Robert Drew, com a colaboração de D.A. Pennebaker, Richard Leacock e Albert Maysles, foi filmado há exatamente 60 anos. Um marco da história do documentário e do chamado «cinema direto», este filme acompanha uma votação no estado do Wisconsin para as primárias do Partido Democrata dos EUA. Os candidatos eram Hubert Humphrey e John F. Kennedy. O segundo ganharia a nomeação e depois a presidência.

O «cinema direto» distinguia-se por um estilo observacional, usando para esse fim novas câmaras e gravadores de som leves e portáteis e equipas técnicas pequenas, para tornar o ato de filmar o mais discreto possível. Era frequente a ausência de narração explicativa, de entrevistas ou de qualquer outra forma de interpelação pela câmara, assim como o uso exclusivo da iluminação disponível e a filmagem em exteriores. Interessando-se pelo que se passava nos «tempos mortos» e «atrás dos bastidores» dos grandes eventos e notícias, esta prática cinematográfica pretendia desmontar as representações sociais da realidade e a forma como as convenções televisivas construíam o mundo. Foi com este objetivo que Robert Drew, originalmente um fotojornalista da revista Life, recrutou vários realizadores que assinaram diversos filmes para as principais estações de televisão americanas, como por exemplo a série Living Camera para a ABC, entre 1961 e 1963, mas também para a Time, como foi o caso de Primary.

«O “cinema direto” distinguia-se por um estilo observacional, usando para esse fim novas câmaras e gravadores de som leves e portáteis e equipas técnicas pequenas, para tornar o ato de filmar o mais discreto possível»

Como muitos outros filmes desta tradição cinematográfica, Primary tem uma «estrutura de crise» que, neste caso, emerge da própria eleição, uma situação tensa com resultados imprevisíveis e o desfecho concentrado num período temporal curto. Filmado com acesso total aos candidatos e com várias equipas trabalhando em simultâneo, o filme constrói um «drama observacional» assente em dois pares de oposições: Humphrey e Kennedy, por um lado, claro, e o cinema e a televisão, por outro.

Estas oposições vão sendo criadas através da longa presença das equipas de filmagem junto dos candidatos, que muito frequentemente nos surgem como que insensibilizados à presença das câmaras durante os atos públicos, mas também os momentos privados. Primary regista tanto as ações de campanha como os trajetos entre elas, os bastidores ou as reuniões de preparação e estratégia, os momentos galvanizadores em comícios repletos de apoiantes e os tempos mortos das viagens ou da espera solitária dos resultados na noite eleitoral. A câmara é, com efeito, a «mosca na parede» da metáfora mais conhecida sobre o «cinema direto». Mas mais que revelações políticas explosivas, a câmara parece preocupada em oferecer-nos, isso sim, um acesso especial à intimidade dos candidatos, isto é, à pessoa por detrás da figura publica.

«Interessando-se pelo que se passava nos “tempos mortos” e “atrás dos bastidores” dos grandes eventos e notícias, esta prática cinematográfica pretendia desmontar as representações sociais da realidade e a forma como as convenções televisivas construíam o mundo»

Neste processo, o filme vai construindo uma diferença cada vez mais maior entre os dois homens. Humphrey é o político «tradicional» que vemos e, sobretudo, ouvimos falar, a explicar as suas ideias aos eleitores, acumulando comícios e reuniões, sobretudo nos meios rurais. Kennedy, por seu lado, é mostrado como uma celebridade, filmado sobretudo em grandes comícios nas cidades, muitas vezes em silêncio perante plateias de apoiantes em êxtase. No encontro com a comunidade católica-polaca de Milwaukee, a entrada em cena de Kennedy é duplamente programática. Em vez de filmar apenas o discurso do futuro presidente, Drew opta por montar, primeiro, vários planos mostrando o grande número de pessoas que esperavam no local, um salão de festas demasiado pequeno para tantos apoiantes. Em seguida, filma num plano-sequência único o longo percurso feito por Kennedy através do salão apinhado de gente até finalmente conseguir chegar ao palco. Ou seja, se a opção pelo plano-sequência prova como aquele comício foi concorrido, também demonstra a superioridade das técnicas cinematográficas do «cinema direto» para construir esse sentido de uma forma que a televisão não fazia habitualmente.

A sequência da presença de Humphrey num programa televisivo reforça esta ideia. Primeiro, Drew mostra-nos como o candidato se preocupa em encenar antecipadamente o «guião» daquele direto televisivo, combinando o que cada um diria, incluindo as piadas «espontâneas». Essa sequência é filmada com uma série de panorâmicas rápidas em que a câmara de Primary alterna entre Humphrey e os outros participantes já instalados no cenário e os bastidores do estúdio de televisão à sua frente. Mais uma vez, Drew recorre a técnicas emblemáticas do «cinema direto» como o som direto e os movimentos ágeis das câmaras de cinema carregadas ao ombro, para demonstrar a superioridade de “Primary” sobre a televisão e as suas câmaras de estúdio, fixas sobre os seus tripés pesados. O movimento de vaivém da câmara é, por isso, uma declaração da capacidade que o «cinema direto» tem de multiplicar pontos de vista, ao passo que as câmaras de televisão apenas parecem capazes de apontar numa direção e contar uma versão da história, ainda por cima encenada por Humphrey.


Apesar de todas as suas virtudes, Primary mostra-nos que o «cinema direto» não é sinónimo de ausência de um ponto de vista. Ao longo do tempo, o filme foi criticado por proporcionar apenas uma representação inócua dos assuntos e das pessoas filmadas — sem dúvida, o preço a pagar para poder continuar a filmar outros assuntos com «acesso total» —; ou ainda por construir uma clara preferência por Kennedy, o jovem candidato fotogénico, e, em suma, não fazer nenhum verdadeiro escrutínio daquelas eleições primárias. Já percebemos como a preferência por Kennedy era provavelmente tão política como cinematográfica no sentido em que este candidato se prestava com mais facilidade do que Humphrey a demonstrar a superioridade do «cinema direto» sobre o jornalismo televisivo tradicional. Seja como for, Primary desafia-nos para continuar a pensar, hoje, sobre os mecanismos de construção da celebridade pela televisão e pelo cinema, sobre as complexas relações entre política e mass media, ou ainda sobre a natureza das campanhas políticas como momentos em que estas relações se reforçam ou se reconfiguram, se revelam ou são profundamente camufladas. Serão certamente reflexões oportunas, 60 anos depois da estreia de Primary e na véspera do arranque de mais uma campanha política nos EUA.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)

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