O projecto de lei (PL) 490, orquestrado pela chamada «bancada ruralista», que defende os interesses do agronegócio, visa alterar o Estatuto do Índio, datado de 1973, e, segundo o Brasil de Fato, pode «inviabilizar o reconhecimento dos territórios» das comunidades indígenas.
O PL 490 tramita em conjunto com mais 11 projectos de conteúdo semelhante, tendo como relator o deputado Jerônimo Goergen, em quem o vencedor das presidenciais brasileiras, Jair Bolsonaro, terá mesmo pensado para comandar o Ministério da Agricultura.
Ao apresentar o seu parecer sobre a medida, o deputado ruralista propôs a rejeição do PL 490 e sugeriu, em substituição, um conjunto de outras medidas, lesivas para os indígenas. Entre elas, contam-se a agilização da realização de obras e da exploração de recursos em terras indígenas, bem como a retirada aos povos originários do direito de consulta.
No documento, o deputado defende que as medidas não ferem a constitucionalidade, nem outras normas de carácter jurídico e técnico-legislativo, mas os opositores sublinham exactamente o oposto.
A eliminação do direito de consulta aos povos indígenas fere a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de acordo com a qual os povos tribais e indígenas têm de ser previamente «ouvidos sobre eventuais medidas administrativas e legislativas que tenham potencial para os afectar directamente».
Denúncias de inconstitucionalidade
O parecer Goergen, apresentado em Maio último, está pronto para ser votado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados – órgão que tem como função avaliar a constitucionalidade das matérias legislativas. Se passar na Comissão, o relatório segue para o plenário.
Além do parecer, os membros da Comissão devem apreciar ainda os votos dos deputados Chico Alencar e Ivan Valente (ambos do Partido Socialismo e Liberdade – PSOL), que apontam a inconstitucionalidade da proposta.
Para Chico Alencar, o projecto choca com a Constituição brasileira, que protege os direitos dos indígenas, «com destaque para as terras, a cultura e a identidade das comunidades», indica o Brasil de Fato.
Por seu lado, para Valéria Paye, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a agilidade que os ruralistas estão a imprimir à tramitação do projecto de lei não é alheia à eleição de Bolsonaro para presidente, num contexto político nacional de avanço da direita. «O que antes era uma ameaça […] hoje é real», frisou.
Constituição e marco temporal: uma falácia
Outro aspecto do parecer, entendido como uma ameaça aos povos tradicionais, é a inclusão da tese do chamado «marco temporal» no Estatuto do Índio. De acordo com essa teoria, as comunidades só podem ter direito à demarcação de um território se comprovarem que ele estava em sua posse no dia 5 de Outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição Federal.
O Parecer 001/2017, da Advocacia-Geral da União (AGU), transforma essa tese político-jurídica em regra, de tal modo que o dispositivo tem sido uma das marcas do governo de Temer em relação aos povos originários.
Em declarações feitas ao Brasil de Fato em Julho do ano passado, Luiz Henrique Eloy, indígena do povo Terena e advogado da APIB, explicou que a tese do marco temporal prejudica «muitos povos indígenas que já haviam sido expulsos das suas terras na data da promulgação da Constituição».
«A Constituição trabalha no sentido de reconhecer direitos originários, anteriores a quaisquer outros. Ela não tem a ver com tempo e sim com o modo como as comunidades lidam com seu território, uma extensão social e cultural desses povos. Impor um requisito temporal teria um impacto imediato», disse, acrescentando: «A Constituição veio logo após a ditadura, quando os indígenas sofreram muitas violações, principalmente remoções forçadas, feitas pelos braços estatais e elites regionais. Então, como exigir que as comunidades estivessem nas suas terras nessa época?»
Esta perspectiva foi também salientada pelo antropólogo Spensy Pimentel, fundador e membro do Fórum sobre Violações de Direitos dos Povos Indígenas (FVDPI): «A raiz do absurdo é que muitas populações indígenas foram simplesmente retiradas de suas terras num período anterior ao da Constituição.»
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