|José Goulão

Descobriram uma limpeza étnica? Tem 80 anos...

A transformação de Gaza, ou pelo menos a sua costa, em empreendimentos habitacionais e turísticos fechados já foi testada e esteve em vigor durante quase um quarto de século. 

CréditosMohammed Saber / EPA

O boçal pato-bravo de negócios globais em comissão de serviço na Presidência dos Estados Unidos da América, Donald Trump, ignorando ostensivamente os filtros do cinismo político dominante e assumindo a ganância inerente ao seu empreendedorismo, deitou os olhos gulosos à costa mediterrânica da Faixa de Gaza e deduziu que ali se poderia construir uma nova, paradisíaca e altamente lucrativa «Riviera».

Sem o saber, ou talvez tentando desde já marcar posição, o construtor civil-presidente entrou nos terrenos entretanto reclamados pelos colonos sionistas, já que estes há muito tempo reivindicam o regresso à Faixa de Gaza para explorarem o paraíso segundo os seus próprios interesses.

A transformação de Gaza, ou pelo menos a sua costa, em empreendimentos habitacionais e turísticos fechados já foi testada e esteve em vigor durante quase um quarto de século. Os 19 colonatos sionistas existentes na Faixa de Gaza entre 1982 e 2006 eram condomínios privados e de luxo, protegidos pela tropa de Israel;  ocupavam 120 quilómetros quadrados, um terço do território, com sete mil habitantes e uma densidade próxima de 60 habitantes por quilómetro quadrado. Cerca de milhão e meio de palestinianos viviam então em dois terços do enclave, sem acesso ao mar e com uma densidade brutal de sete mil habitantes por quilómetro quadrado, a mais elevada do mundo, a grande distância. A título de exemplo, a densidade da Índia é de 500 habitantes por quilómetro quadrado, a da China é de 145 e a de Portugal é de 115.

Em 2006, o criminoso de guerra Ariel Sharon, então primeiro-ministro, mandou evacuar os colonatos de Gaza, não por qualquer acesso anti-colonização, mas porque pretendia iniciar as ofensivas terroristas regulares contra o território, continuadas por Netanyahu,  e não queria ter limites na envergadura das operações militares por nele habitarem sionistas.

Em termos gerais, poderia haver um impedimento concreto a resolver para que o plano de Trump se concretizasse. No enclave viviam até há pouco, antes de Benjamin Netanyahu lançar esta nova etapa do genocídio da população original da Palestina, mais de dois milhões de pessoas. Agora há menos, mas muitas das recentemente expulsas estão a regressar, mesmo que seja para as ruínas deixadas pelos nazi-sionistas; porém, uma vez que a violação de cessar-fogo é um dos desportos em que Israel está no topo, não tarda que, mais uma vez, sejam obrigadas a seguir o caminho inverso, pelo menos as que restarem vivas.

Para Trump, afinal, não existe qualquer problema. Despacham-se os habitantes do território para países árabes, que vão ter de os acolher e integrar, talvez ignorando que este processo, a versão mais recente de «solução final», está em curso há quase oitenta anos e sem que haja integração. Ele próprio, na pessoa do genro, inventou durante a primeira administração os chamados «acordos de Abraão», que assentavam na transferência dos palestinianos de Gaza e da Cisjordânia para a península egípcia do Sinai e para uma moderníssima e imensa cidade criada de raiz, Neom, já em construção na província de Tabuk, na Arábia Saudita, ligada à citada Península do Sinai passando pelo Golfo de Aqaba e o sul da Jordânia. Para não fugir ao espírito de um dos objectivos do empreendimento e para que a construção de Neom seja concretizada em áreas despovoadas, já se processou, a mando do governo saudita, uma limpeza étnica do território, vitimando principalmente a tribo Howeitat.

«Cerca de milhão e meio de palestinianos viviam então em dois terços do enclave, sem acesso ao mar e com uma densidade brutal de sete mil habitantes por quilómetro quadrado, a mais elevada do mundo, a grande distância. A título de exemplo, a densidade da Índia é de 500 habitantes por quilómetro quadrado, a da China é de 145 e a de Portugal é de 115.»

Os palestinianos expulsos para Neom e o Sinai iriam servir principalmente os turistas milionários que poderiam usufruir em exclusivo das delícias do Mar Vermelho até ao Mediterrâneo. A nova «Palestina» resultaria então de uma transferência da população de Gaza e da Cisjordânia para um território desde o Sinai até à megalómana Neom.

Não digam que Trump, na sua heterodoxia político-empresarial, chamemos-lhe assim, não é um visionário. De Gaza a Sharm-el-Sheik e Neom, do Mediterrâneo ao Mar Vermelho, está na sua mente o maior e mais paradisíaco complexo turístico do planeta, acessível a meia dúzia de mafiosos que cada vez mais controlam o mundo. Não será esta uma gloriosa antecipação do espírito do globalismo, esse brilhante futuro para o qual o Ocidente tanto trabalha, mesmo que isso custe a vida e a expulsão dos locais de nascimento e residência a milhões e milhões de seres humanos?

O rei vai nu

Aqui d’El Rei, grita-se com a mesma convicção com que as chamadas democracias liberais dizem defender a «solução de dois Estados» na Palestina. Mas o rei vai nu. Todo o aranzel em torno de mais esta extravagância (para levar a sério) de Trump não passa de um fruto natural da imensa estratégia de enganos e mentiras cultivada pela política dominante para cometer as maiores atrocidades.

De alguns governos até à ONU interpretaram-se as palavras de Trump, com uma razão que não lhes pode ser negada, como a intenção de praticar uma limpeza étnica.

Sejamos sérios. Há muito que a limpeza étnica está em curso na Palestina. A «marcha da morte» de Lydda em 1948, o massacre da população das aldeias de Deir Yassin, ou o de Ramle, no mesmo ano – como exemplo das centenas de localidades palestinianas «despovoadas» na mesma altura – são episódios equivalentes ao da mortandade em curso em Gaza ou à expulsão em massa concretizada há dias em Jenin, no Norte da Cisjordânia. É o mesmo sistema, é o mesmo processo: limpeza étnica.

No fundo, estas ocorrências criminosas são uma inevitabilidade da existência da doutrina nazi, supremacista e racista do sionismo. «Uma terra sem povo para um povo sem terra» foi o primeiro princípio fundador do sionismo, há mais de 130 anos. Isto é, a Palestina estaria desabitada e à espera do povo judeu, a quem fora prometida por Deus há três mil anos, através da pena de Moisés.

A Palestina, porém, estava e está povoada por um povo multifacetado e milenar no seio do qual existia uma comunidade perfeitamente integrada de judeus palestinianos que, segundo as teses do sionismo, também faziam parte, simultaneamente, do «povo sem terra». É em mistificações como esta que se baseia a existência do Estado de Israel, que não se considera deste mundo, está acima de todos os outros e não se rege por leis terrenas mas sim pelos dogmas do Antigo Testamento, com o seu inegável cunho de crueldade. Nada disso é impeditivo de que o Estado sionista seja venerado por praticamente todos os outros do planeta, como se tivessem má consciência pelo Holocausto praticado por Hitler, horror que o sionismo sequestrou e invoca abusivamente e no qual nem só judeus foram chacinados, como reza a História que não é conhecida em Israel e nos seus principais aliados.

Uma nota imprescindível e que nunca é demais repetir. O sionismo não representa «os judeus», sejam religiosos, sejam étnicos. Os dois conjuntos, sionistas e judeus, estão longe de se sobrepor sendo que, por exemplo, não são poucos os cristãos – como os energúmenos Biden e Trump – que se proclamam sionistas.

O sionismo não tem procuração para invocar o Holocausto nem para se considerar representante de todos os judeus, muitos dos quais – quem nos diz que não é a maioria? – não se identificam com a limpeza étnica e os episódios de genocídio cometidos em seu nome e considerados indispensáveis para que se cumpra a meta do sionismo: a criação do Grande Israel, do Nilo ao Eufrates, pelo menos. Essa foi a terra prometida pelo deus dos sionistas, essa é a terra que o sionismo quer anexar, sejam quais forem os meios que tenha de utilizar. O judaísmo não se rege por esses objectivos e ambições. O sionismo é uma corrupção do judaísmo, é uma doutrina colonial, desumana e supremacista que considera os outros povos como «estrangeiros» e sem os mesmos direitos. Nada disso tem a ver com os judeus, o judaísmo e a sua imensa cultura milenar, de que sobram os grandes exemplos técnicos, científicos, económicos e artísticos – da literatura à música, da pintura, escultura e arquitectura ao cinema.

«Há muito que a limpeza étnica está em curso na Palestina. A "marcha da morte" de Lydda em 1948, o massacre da população das aldeias de Deir Yassin, ou o de Ramle, no mesmo ano – como exemplo das centenas de localidades palestinianas «despovoadas» na mesma altura – são episódios equivalentes ao da mortandade em curso em Gaza ou à expulsão em massa concretizada há dias em Jenin, no Norte da Cisjordânia.»

A realidade demonstrou, naturalmente, que a Palestina era habitada. Para ali se instalarem «os judeus» era necessário, portanto, expulsar os palestinianos. Uma acção que deveria fazer-se, escreveram os teóricos sionistas, para criar um Estado «com um regime de tipo europeu». A tal «única democracia do Médio Oriente», cujos resultados estão à vista.

Mas se a Palestina estava habitada, encontrou-se maneira de dar a volta à realidade e encaixá-la, à força, na doutrina sionista.

Por isso é natural ouvir os ministros israelitas de hoje e de ontem, militantes da extrema-direita, fanáticos religiosos ou colonos sem quaisquer raízes na Palestina – alguns nem são judeus, na verdadeira acepção da palavra –  afirmar que os palestinianos «não são humanos»; ou são «bárbaros», ou «animais», ou «selvagens», ou «sub-humanos»; ou «os palestinianos e os outros "goyim" (estrangeiros e não-judeus) têm a alma mais próxima da alma dos animais do que da alma de um judeu», leia-se, neste caso, de um sionista. Em suma, seres inferiores que devem ser escorraçados para que se cumpra «a vontade de Deus» e, finalmente, aquela terra prometida seja santificada.

Donald Trump enunciou, afinal, com palavras cruas, brutas e inconvenientes para as más consciências, principalmente as ocidentais, um conceito que é inerente ao sionismo, que não ao judaísmo.

Escândalo com o resort de Trump em Gaza? Afinal é mais um episódio de uma limpeza étnica a que o mundo assiste, às vezes palavroso, mas sempre impávido e sereno, há quase 80 anos. Uns governos e coisas do tipo da União Europeia insistem, como um mantra, na «solução de dois Estados» sem mexer um dedo para isso; outros manifestam solidariedade com a Palestina e os palestinianos e ou não têm influência ou acham que assim cumprem o seu dever; a ONU arrisca algumas palavras mais acrimoniosas mas tem a faca e o queijo na mão para fazer cumprir leis que aprovou e não respeita; para aplicar resoluções que ignora e armazena umas atrás das outras, transformadas em arqueologia diplomática e do direito internacional. Tem as suas «forças de paz», que prefere utilizar como tropas coloniais; representa todos os países do planeta mas tem medo de Israel, além de ser incapaz de denunciar o conceito nocivo e tóxico de sionismo. Teve coragem e autoridade suficientes para impor sanções contra o regime de apartheid na África do Sul, mas não consegue ou não quer fazer o mesmo contra o apartheid em Israel

Escândalo com a franqueza de Trump? Talvez motive alguns dirigentes influentes a chocar-se com a ligeireza com que o presidente norte-americano aborda o destino pretendido para os palestinianos e a pensar a sério naqueles seres humanos que lutam para sobreviver no inferno de Gaza em degradantes campos de refugiados e cidades e aldeias arrasadas; e que não podem sequer, por causa do «direito à existência» do Estado sionista, pisar a areia das praias, pescar artesanalmente ou banhar-se nas tépidas águas mediterrânicas.

Há pelo menos alguma agitação nos meios políticos e mediáticos, sem dúvida, também porque Trump, pelo seu fascismo indisfarçado, é o bombo da festa das castas políticas hipócritas e bem falantes, apesar de a sua doutrina económica e política, na prática, ser a mesma que guia os nossos dirigentes neoliberais. E se Biden tivesse pronunciado as mesmas palavras que Trump? Seria um presidente criativo ao propor uma solução eficaz para o problema de Gaza? Ou apenas mais um cristão sionista cúmplice de genocídio e limpeza étnica? Fica a dúvida.

Mais vale tarde do que nunca, dir-se-á a propósito do alarido. Neste caso é difícil que o aforismo seja verdadeiro. Trump e o seu confidente Benjamin Netanyahu – que, sejamos sinceros, ganhou uma nova vida porque os seus chacras não alinhavam muito bem com os de Biden – prosseguirão a saga iniciada no primeiro mandato do mega pato-bravo e potenciarão sinergias genocidas contra o povo palestiniano; o mundo em redor, principalmente a Ocidente, regressará à passividade do costume, incapaz ou sem querer ir além das palavras. Os palestinianos continuarão sozinhos e desprotegidos, mesmo com a sua inesgotável capacidade de luta e resistência, tendo apenas ao seu lado a solidariedade planetária de cidadãos e organizações cívicas capazes de lhes dar algum alento e cuja eficácia dos esforços em desenvolvimento é cada vez mais notável.

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Esclarecimento preventivo

Este texto não é antissemita, apenas desobedece ao decreto sionista que pretende fazer equivaler, mais uma vez abusivamente, o conceito de antissemitismo ao exercício saudável e democrático da crítica à doutrina sionista e aos comportamentos do Estado de Israel. O sionismo é, na teoria e na prática, o conceito mais antissemita aplicado à face do planeta pois define como antissemitas os outros povos semitas, designadamente os palestinianos e até comunidades judaicas da Palestina contrárias à existência do Estado de Israel. Quanto aos governos ocidentais que aceitam a definição sionista de antissemitismo, pretendendo até criminalizar os desobedientes e impô-la no quadro da opinião única, não passam, eles próprios, de antissemitas.

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