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E, todavia, Lakeith ri-se

Antes de Lakeith Smith, com 15 anos, ser condenado a 65 anos de prisão por um crime que não cometeu, um jovem de 24 anos foi julgado por causar um morto ao fugir da polícia. A pena foi de 18 meses. Era branco.

LaKeith-Smith durante o seu julgamento, Elmore County, Alabama, EUA, Abril de 2018. O jovem afro-americano de 15 anos foi condenado a 65 anos de prisão por um homicídio que não cometeu.
Créditos / WSFA 12 News

Quando falei pela primeira vez com Lakeith, para um artigo do jornal Avante!, comovi-me profundamente com a nossa despedida: «até daqui a 65 anos», disse-me quando os serviços prisionais anunciaram que tínhamos esgotado o tempo da chamada. Nenhum adolescente devia ter de se despedir assim, mas Lakeith Smith estava preso na cadeia de alta segurança de Kilby desde 2015, quando, com apenas 15 anos, foi condenado «como um adulto» a 65 anos de prisão por assaltar uma casa em Milbrook, Alabama, nos Estados Unidos da América: a democracia das crianças presas e onde 10 mil menores de 16 anos partilham a cela com os adultos.

Manter o contacto com Lakeith para além da entrevista começou por ser a minha maneira de desobedecer a uma sentença duplamente monstruosa. Lakeith, que na noite fatídica estava desarmado, foi condenado a 25 anos de prisão pelo homicídio do seu amigo A’Donte Washington, que morreu numa troca de tiros durante o assalto. Mas, segundo o tribunal, não foi Lakeith que o matou. Ao abrigo da infame «lei da responsabilidade» do Alabama, uma pessoa que cometa um crime pode ser responsabilizada por todas as consequências da resposta policial. Por outras palavras, a lei admite que alguém que não tenha morto ninguém possa ser condenado por homicídio. Inversamente, o polícia que confessou em tribunal ter matado A’Donte, de 16 anos, não foi sequer alvo de um inquérito interno. Os outros 40 anos de prisão foram o castigo por Lakeith Smith ter sorrido quando o juiz lhe propôs que aceitasse um acordo judicial para ser preso durante 25 anos por um crime que não cometeu. Quando lhe perguntei porque se riu num momento tão trágico, Lakeith respondeu-me que «às vezes é preciso rir para não chorar».

«É a lei mais estúpida do Alabama. Se dez pessoas assaltarem uma casa e o dono da casa matar um dos assaltantes, os outros nove são culpados de homicídio. A lógica deles é que quem comete um crime tem de arcar com todas as consequências desse crime. Na prática, isto faz com que a polícia dispare primeiro e pergunte depois. A culpa nunca é deles. E eles disparam para matar»

Brontina Smith, entrevista ao Abril Abril

Foi na sequência desta troca de ideias e correspondência com Lakeith que cheguei à fala com a mãe, Brontina Smith1, que generosamente aceitou conversar com o AbrilAbril sobre o que é hoje o Sul Profundo.

«Ele adorava sorrir, adorava rir. Quando penso no Lakeith penso no seu sorriso», disse-me Brontina, «e é por isso que está preso. Condenaram um miúdo a 65 anos de prisão só por sorrir», acusou.

O coração de Brontina ainda dispara quando fala da noite em que o filho perdeu a liberdade. «Começámos a receber chamadas de vizinhos a dizerem que um miúdo tinha morrido num assalto e que tinha sido o Lakeith. A polícia não nos dizia nada. Foram horas na esquadra a achar que ele estava morto. Depois chegou mais uma família em pranto que também achava que tinha sido o filho deles. Quando o detetive lhes mostrou uma fotografia, soubemos, pela reacção na cara deles, que não tinha sido o Lakeith».

A família em questão, os Washington, tornar-se-ia numa das principais testemunhas da defesa de Lakeith e, quatro anos depois, continuam a exigir justiça para A’Donte, Lakeith e para todos os afro-americanos mortos pela polícia.

Para Brontina, a forma como o filho foi detido é todo um tratado sobre os direitos, as liberdades e as garantias de que gozam os negros nos EUA: «Só pude falar com o meu filho 15 horas depois de ele ter sido detido. A polícia interrogou o meu filho de 15 anos durante 15 horas a fio. Sem um advogado presente, sem eu saber onde ele estava. Foi assim que convenceram as outras crianças a aceitar e a assinar tudo o que lhes puseram à frente. Aqui no Sul, as pessoas têm tanto medo do sistema que não o querem pôr à prova. A polícia não os interrogou: atou-os à linha do comboio. Fazem miúdos de 15 anos sentir que não têm opções para além de assinar a confissão que lhes é dada. Mas o Lakeith tinha-me a mim, tinha o meu pai… e não assinou nada. Foi isso que o sistema não perdoou: que ele não se conformasse».

Sorrir como quem tem poços de petróleo na sala a jorrar

Para Brontina, não é possível compreender como se condena um rapaz de 15 anos a 65 anos de prisão sem falar de racismo. Nos EUA, onde os julgamentos podem ser extremamente rápidos, ou sumários, é frequente que vários arguidos de casos diferentes sejam presentes a tribunal ao mesmo tempo. Brontina recorda-se que, imediatamente antes de Lakeith, um jovem de 24 anos sentou-se no banco dos réus por ter fugido à polícia. A violenta perseguição automóvel prolongou-se por dezenas de quilómetros e terminou com um morto. «A família dele estava lá toda, igualzinha à nossa: os avós, os tios, os irmãos… as lágrimas. Mas, apesar de ele ter matado uma pessoa, só apanhou 18 meses. A diferença? Ele era branco», sentencia.

«Imediatamente antes de Lakeith, um jovem de 24 anos sentou-se no banco dos réus por ter fugido à polícia. A violenta perseguição automóvel prolongou-se por dezenas de quilómetros e terminou com um morto. "A família dele estava lá toda, igualzinha à nossa: os avós, os tios, os irmãos… as lágrimas. Mas, apesar de ele ter matado uma pessoa, só apanhou 18 meses. A diferença? Ele era branco"»

Se o racismo é uma gangrena que grassa, de costa a costa, na sociedade estado-unidense, é no Sul que mais fede a podre. Após a derrota da Confederação em 1865, os escravos foram formalmente libertados para, imediatamente após a Reconstrução, começarem ser detidos, julgados, condenados, presos e, novamente, compelidos ao trabalho forçado. Como escreveria o histórico comunista afro-americano W.E.B. Dubois, «O escravo libertou-se, permaneceu por um momento ao sol; e depois voltou à escravatura». Antigas plantações de algodão puderam assim continuar a laborar com os antigos escravos convertendo-se em prisões. O trabalho recluso gerado pela «tubagem escola-prisão» substituiu na prática a escravatura.

«Isto é o Sul, sabes?», suspira Brontina e, repete, lentamente, após uma pausa, como se invocasse uma velha lei, «Isto é o sul… Ainda a minha mãe não era nascida e já a minha avó andava em manifestações contra o racismo. Eu gostava de acreditar que o racismo é um assunto do passado, que toda a gente agora é tratada da mesma forma, mas não é verdade. O racismo está por todo o lado. Está em tudo.»

E ano após ano, as estatísticas vêm comprovar que, como Brontina afirma, nos EUA, o racismo está em tudo: para cada dólar que um trabalhador branco aufere, um negro ganha só dez cêntimos; a taxa de mortalidade infantil dos negros é o dobro da dos brancos; a taxa de encarceramento dos negros é cinco vezes maior do que a dos brancos e a probabilidade de um negro desarmado ser morto pela polícia é quatro vezes maior que a de um branco.

«Ainda a minha mãe não era nascida e já a minha avó andava em manifestações contra o racismo. Eu gostava de acreditar que o racismo é um assunto do passado, que toda a gente agora é tratada da mesma forma, mas não é verdade. O racismo está por todo o lado. Está em tudo. [...] “Terra dos livres”? Eu era pequenina e ainda nem percebia bem o que estávamos a dizer, mas já suspeitava que algo não batia certo. Se somos a “terra dos livres” porque é que toda a gente está presa?»

Brontina Smith, ibidem

No entanto, ressalva Brontina, o racismo não discrimina por igual todos os negros: «É verdade que as nossas leis não afectam da mesma forma os miúdos brancos suburbanos. Mas também não afectam da mesma forma os miúdos negros privilegiados. Não: as leis racistas só afectam a classe trabalhadora e aquilo a que hoje em dia chamam a "classe média"».

«Eu gostava que todo o mundo soubesse que na América se uma pessoa não trabalha para cuidar dos filhos, é tratada como um perigo para a sociedade. Mas se trabalha, 10, 12 horas por dia, os filhos passam o dia sozinhos nas ruas e aí são eles que são considerados um perigo para a sociedade. Nós ou os nossos filhos, somos sempre vistos como um perigo para a sociedade. Façamos o que fizermos, estamos sempre do lado errado das leis»

Entre estas leis, conta-se a «lei da cumplicidade» ao abrigo da qual Lakeith foi condenado por um homicídio que não cometeu. «É a lei mais estúpida do Alabama», acusa Brontina, «Se dez pessoas assaltarem uma casa e o dono da casa matar um dos assaltantes, os outros nove são culpados de homicídio. A lógica deles é que quem comete um crime tem de arcar com todas as consequências desse crime. Na prática, isto faz com que a polícia dispare primeiro e pergunte depois. A culpa nunca é deles. E eles disparam para matar».

Compreende-se assim que, por exemplo, em 2017, só 1% dos 1129 homicídios cometidos por polícias tenha resultado num processo judicial.

«Isto não é uma democracia. Basta olhar para o nosso hino ou para o nosso juramento de bandeira», explica Brontina, «Desde os seis anos somos obrigados a repetir aquilo, mas aquelas palavras não são para nós. “Liberdade e justiça para todos”? “Terra dos livres”? Eu era pequenina e ainda nem percebia bem o que estávamos a dizer, mas já suspeitava que algo não batia certo. Se somos a “terra dos livres” porque é que toda a gente está presa?»

A «terra dos livres e a casa dos corajosos» tem a maior população prisional do mundo, mais de dois milhões de pessoas presas, o que corresponde a um aumento de 500% em quatro décadas. Com menos de 5% da humanidade, os EUA são a terra de 25% da humanidade presa.

Sorrir como quem tem minas de ouro escondidas no quintal

A hermética pronúncia do Alabama fica doce quando Brontina fala do filho. «Ele queria ser jogador de futebol americano. Era louco por futebol, mas eu insisti que ele continuasse a estudar… para o caso de a carreira de jogador não resultar. Ainda estava a tentar perceber o que queria da vida. Estava sempre a sorrir».

«A "terra dos livres e a casa dos corajosos" tem a maior população prisional do mundo, mais de dois milhões de pessoas presas, o que corresponde a um aumento de 500% em quatro décadas. Com menos de 5% da humanidade, os EUA são a terra de 25% da humanidade presa»

Porque terá esse sorriso despoletado tanta raiva no juiz Sibley Reynolds, do Partido Republicano, que castigou a expressão de Lakeith com mais 40 anos de prisão? «Se ele se tivesse chorado, o juiz teria dito: “Agora já chora! Não chorava quando estava a assaltar casas!”», previne Brontina.

Enquanto a família Smith espera para saber se terá direito a um recurso, a educação e o telefone são a única forma de liberdade de Lakeith. «Nós vamos continuar a lutar para que ele sorria, mas não quero que ele se sinta demasiado confortável a crescer naquele ambiente. Por isso quis que ele tivesse acesso a livros e a uma educação na prisão. Agora está a fazer o GED» [certificado de ensino secundário associado à educação técnico-profissional]. Na turma do Lakeith, na prisão de Kilby, há mais onze rapazes com menos de 18 anos».

Segundo o Gabinete de Estatística do Departamento de Justiça dos EUA, todos os anos meio milhão de menores são encarcerados nas chamadas «instalações de detenção de jovens», metade das quais é privada. Mas há ainda 250 mil menores como Lakeith que anualmente são julgados «como adultos». Destes, cerca de 20% têm 15 ou 16 anos, 7% têm 14 ou 15 anos e 0,3% têm 13 anos ou menos. Trocando por miúdos, nos EUA, todos os anos há aproximadamente 750 crianças com 13 anos ou menos julgadas «como se fossem adultas». Algumas delas, com 11 e 12 anos, chegam mesmo a ser presas juntamente com os reclusos adultos e submetidas à tortura da solitária. A definição jurídica de «julgamento como adulto» é tão sinistra como é ambígua: qualquer criança com mais de 7 anos pode ser julgada «como um adulto» sempre que o tribunal considere que o menor tem a mesma consciência do crime que está a cometer que um adulto teria.

«Não se condena a 1000 anos de prisão uma criança de 15 anos que comete o primeiro crime. Mas isto acontece porque nós permitimos. Os negros podiam correr com estas leis. Enquanto dermos aos ricos o poder de fazer as leis, vamos continuar a perder»

BRONTINA SMITH, ibidem

«O sistema está feito para que que as crianças que entram no sistema nunca mais saiam», acrescenta Brontina «Não se condena a 1000 anos de prisão uma criança de 15 anos que comete o primeiro crime. Mas isto acontece porque nós permitimos. Os negros podiam correr com estas leis. Enquanto dermos aos ricos o poder de fazer as leis, vamos continuar a perder. Se as nossas comunidades não votarem para eliminar as leis que levam os nossos filhos, quem o vai fazer por nós? O meu conselho para todos os pais de jovens afro-americanos é que mantenham uma comunicação permanente com os vossos filhos e com a escola. Vão lá duas vezes por semana. Sejam vigilantes. Não estou a dizer que quando os nossos filhos são engolidos pelo sistema prisional é culpa vossa. Era muito fácil dizer isso, claro. Mas não é isso. Chorem tudo o que tenham para chorar e depois continuem a lutar. Encontrem força e simplesmente continuem».

Há, hoje em dia, nos EUA, mais dez mil Lakeiths: dez mil crianças presas, quase todas negras, quase todas pobres. Na ausência hipócrita de uma coligação internacional que venha libertá-las a todas e na falta de sanções que castiguem o regime de apartheid que castiga com prisão o sorriso das crianças, que culpa os negros pelos homicídios dos brancos e que condena miúdos do décimo ano a dizerem às mães «até daqui a 65 anos», é urgente a mobilização da civilização contra a barbárie.

Já depois da conversar com Brontina, fiz chegar um poema ao Lakeith, cujo excerto transcrevo abaixo. Foi escrito por Maya Angelou, uma lutadora incansável pelos direitos civis dos afro-americanos. Chama-se «E todavia me levanto», que é outra forma de dizer bem alto «Até amanhã, Lakeith!». Espero que o tenha lido com um sorriso.

Podeis inscrever-me na história
Perversamente mentir
Pela poeira arrastar-me
Do pó hei-de renascer

Sou atrevida. Perturbo?
Irrita que o meu olhar lembre os poços de petróleo na minha sala a jorrar?
Como luas, como sóis, com a certeza das marés
com a esperança a esperançar-se
Eu me levanto

Queríeis ver-me destroçada?
Cabeça e olhos no chão
Os ombros tombados, lágrimas
Débil de tanto chorar?

A minha altivez ofende?
Magoa-vos que eu me ria como quem tem minas de ouro escondidas no quintal?
Podeis matar-me com sílabas cortar-me com o vosso olhar
Matar-me com o vosso ódio, que mesmo assim eu me ergo, como ar.

Das vergonhosas barracas da História, eu me levanto
De um passado enraizado na dor, eu me levanto
Sou um oceano imenso e vivo
Que vai e vem e derrota as marés
Deixando para trás noites de medo
Eu me levanto

Para romper do dia claro e belo
Eu me levanto
Trazendo os dotes dados pelos meus avós.
Eu sou o sonho e a esperança do escravo.
E me levanto, me levanto, me levanto.

  • 1. Obrigado à Casey Elizabeth Doyle, que generosamente transcreveu o áudio da entrevista com Brontina Smith.

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