O Provedor Cívico da União Europeia (Ombudsman), cargo desempenhado pela irlandesa Emily O'Reilly, pretendeu conhecer o conteúdo das mensagens trocadas entre a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, e o director executivo da Pfizer, Albert Bourla, das quais resultou o quase monopólio desse império da indústria farmacêutica na venda de vacinas da Covid-19 à União Europeia.
A Comissão Europeia respondeu que esses registos já não existem porque foram considerados documentos de «vida curta». O'Reilly não desistiu mas, tendo em conta o secretismo que envolve os contratos das vacinas, nada indica que a sua persistência venha a ter êxito.
O Ombudsman da União Europeia é o órgão fiscalizador da corrupção, vocacionado para verificar se a gestão das instituições e agências da comunidade se guia pelas «boas práticas» essenciais ao funcionamento do serviço público.
As diligências de Emily O'Reilly foram desencadeadas por uma queixa apresentada nos seus serviços, provavelmente baseada numa notícia do New York Times segundo a qual Von der Leyen trocou mensagens, emails e chamadas telefónicas durante um mês com o director executivo da Pfizer. Algo a que o jornal norte-americano chamou «diplomacia pessoal» da chefe da Comissão.
Pouco depois, a Pfizer tornou-se o maior fornecedor de vacinas de Covid-19 da União Europeia – na altura foram anunciados 1800 milhões de doses – através de um contrato envolvendo dezenas de milhões de euros e que impõe confidencialidade em relação ao conteúdo.
Na sequência da queixa, a titular do cargo de Provedor Cívico pediu à Comissão Europeia a cedência dos documentos, mensagens e todos os registos dos contactos entre Von der Leyen e Bourla; foi então surpreendida pela resposta de que esses materiais já não existem.
O'Reilly reagiu com um tweet que não deixa margem para dúvidas quanto à gravidade com que encara a situação: «No seguimento de uma queixa abrimos um inquérito à recusa da Comissão Europeia em permitir o acesso às mensagens de texto entre Von der Leyen e um CEO de uma multinacional sobre um contrato de vacinas da Covid-19.» Embora o CEO não tenha sido nomeado, desde a notícia publicada pelo New York Times que se conhecem a sua identidade e a da empresa que dirige.
«No seguimento de uma queixa abrimos um inquérito à recusa da Comissão Europeia em permitir o acesso às mensagens de texto entre Von der Leyen e um CEO de uma multinacional sobre um contrato de vacinas da Covid-19.»
Emily O'Reilly, Ombudsman
Numa carta dirigida depois à Comissão Europeia, Emily O'Reilly comunicou que o inquérito anunciado tem igualmente a ver com uma situação mais geral e que diz respeito aos critérios de manutenção e eliminação dos registos das actividades da Comissão e dos seus serviços.
«A Comissão tem obrigação de guardar as mensagens relacionadas com assuntos políticos importantes, como os contratos das vacinas da Covid-19». Esta formulação deixa claro que as diligências da Provedoria Cívica não se limitam aos registos das negociações e incluem os próprios contratos com a multinacional, que continuam oficialmente secretos. As questões relacionadas com a selecção e o fornecimento das vacinas da Covid-19 têm sido tratadas das maneiras mais obscuras pela Comissão Europeia e a generalidade dos governos dos Estados-membros.
Antecedentes
Como se percebe, Emily O'Reilly considera a resposta da Comissão Europeia, na qual alega que os registos já não existem, como uma «recusa» em prestar informações relevantes e de interesse público, comportamento que recai na alçada das leis europeias, entre as quais cita o regulamento 1049/2001.
Na carta dirigida à Comissão Europeia, a Ombudsman pede a realização de reuniões entre elementos de ambos os serviços nas quais os representantes da Comissão devem explicar a sua política de manutenção e eliminação dos registos de actividades, de que maneira essa política é aplicada e de que modo será ainda possível ter acesso aos documentos sobre as negociações com a Pfizer.
A Comissão defende que «não tem de preservar cada um e todos os documentos da sua actividade». Argumento a que a carta de O'Reilly contrapõe: «Reconhecendo que não é possível nem desejável guardar todos os textos e mensagens, a lei europeia exige que a administração da UE retenha os documentos pertinentes das suas actividades tanto quanto possível de uma maneira não arbitrária e previsível. A decisão de guardar certas peças de informação, segundo a lei europeia, não está dependente do meio (carta, email, texto ou mensagens instantâneas) mas do seu conteúdo».
A selecção e fornecimento das vacinas da Covid-19 no espaço da União Europeia foi – e continua a ser – daqueles assuntos da pandemia a que a Comissão se apressou a deitar as mãos depois da sua absoluta inactividade durante os períodos mais críticos do ano de 2020 e parte de 2021. Bruxelas foi incapaz de coordenar as operações de combate ao vírus – deixando-as à mercê de cada país – e nada fez quando alguns governos, designadamente o italiano, pediram a activação das medidas de emergência da União em casos de crise grave.
Além disso, Ursula Von der Leyen já tem antecedentes quanto a comportamentos de falta de transparência e de habilidades – ainda que primárias e facilmente denunciáveis – para cultivar esse tipo de comportamento. Na altura em que desempenhava o cargo de ministra da Defesa da Alemanha, um telemóvel tornou-se a peça-chave para investigar o escândalo de um contrato suspeito relacionado com fornecimentos de armas ao ministério. Quando o telemóvel finalmente apareceu nas mãos dos investigadores já estava limpo, absolutamente vazio de conteúdo. Digamos que, tal como agora aconteceu, os registos foram de «vida curta».
Na realidade, a presidente da Comissão e, em geral, a casta tecnocrática e burocrática que gere a União Europeia, e que para isso não foi submetida a qualquer espécie de sufrágio, ignora os direitos dos cidadãos e, neste caso dos contratos das vacinas, o próprio respeito pela saúde pública. Iniciativas como a lançada pela Provedoria Cívica em relação aos fornecimentos das vacinas da Covid-19 são excepção e não a regra no espaço da União – ou acabam por ser abafadas pelos grandes meios de comunicação social. Observe-se como o assunto em questão tem vindo a ser silenciado pelos media corporativos, apesar da sua relevância pública.
O que esconde o silêncio?
Submeter assuntos que interferem na vida das pessoas ao silêncio absoluto, desde a negociação dos contratos, à selecção das vacinas, aos próprios contratos e aos fornecimentos não são práticas que suscitem bons augúrios. Presume-se que só impõe o silêncio quem tem algo a esconder – e a obscuridade não é tranquilizadora para as pessoas, a não ser que seja ignorada ou minimizada graças a cumplicidades institucionais e comunicacionais, fazendo com que não seja conhecida do grande público.
Von der Leyen recusa-se a ceder os registos das conversações que conduziram ao negócio com a Pfizer e mantém o contrato em absoluto segredo, como impõe o próprio documento subscrito por ambas as partes.
Apesar disso, o secretismo não é estanque e certas partes dos contratos assinados entre a Pfizer e alguns governos, que têm vindo a público, revelam a total desresponsabilização da multinacional perante o funcionamento do processo de vacinação e as suas consequências.
A Pfizer é a maior responsável pelas possíveis reacções adversas à vacina da Covid-19 registadas na EudroVigilance, a base de dados europeia (relativa apenas aos países da União Europeia) que dá conta de problemas de saúde sofridos por cidadãos depois de receberem a vacina.
Segundo o apuramento feito até 19 de Outubro, a Pfizer foi responsável por mais de um milhão e 170 mil dos dois milhões e 700 mil casos graves, entre eles um número avultado de mortes, assinalados entre os vacinados contra a Covid-19 com doses da Pfizer, Moderna, AstraZeneca e Janssen.
«(...) certas partes dos contratos assinados entre a Pfizer e alguns governos, que têm vindo a público, revelam a total desresponsabilização da multinacional perante o funcionamento do processo de vacinação e as suas consequências.»
As autoridades afirmam que não está provada a relação de causa e efeito entre as vacinas e as anomalias de saúde sofridas pelos vacinados, mas os registos ficam feitos para memória futura e até para se proceder com objectividade a um balanço do processo de vacinação com imunizantes que ainda estão «em fase de ensaios clínicos», conforme reconhece o contrato secreto.
De acordo com o que tem vindo a público através de fugas de informação de várias origens, os contratos com a Pfizer reflectem absolutamente a imposição das vontades da multinacional: não pode ser responsabilizada pelos efeitos do medicamento, não poderá ser atingida por reclamações de cidadãos e entidades que se considerem prejudicados por acção das vacinas, nunca pagará danos e prejuízos decorrentes do processo de vacinação, os governos não podem rejeitar fornecimentos danificados, o fabricante pode não cumprir quantidades e prazos de entrega sem ser penalizado, pode alterar unilateralmente o preço do produto, que tem vindo a ser sucessivamente aumentado.
Além disso, desconhece-se o número de doses que cada um terá de tomar para ser considerado «imunizado» – e provavelmente em cada fase o preço será aumentado, porque a Pfizer não está impedida contratualmente de o fazer.
Depois dos seus procedimentos durante o processo de negociação e dos contratos que assinou, não faz sentido – ou é uma mera jogada de diversão - que Ursula Von der Leyen venha declarar, perante incumprimentos dos prazos de entrega das vacinas, que «a Europa investiu milhões de dólares para ajudar a desenvolver as vacinas da Covid-19 pelo que agora as empresas devem entregá-las, honrar as suas obrigações».
Como se as negociações, os contratos, o desaparecimento de documentos e o secretismo tivessem alguma coisa a ver com honra e não com negócios, astronómicos negócios. Além disso, como é possível permitir que uma entidade na qual a União Europeia investiu «milhões de dólares» de dinheiro público imponha depois um contrato leonino a quem a financiou?
O procedimento lançado pela Provedoria Cívica da União Europeia poderá não ter efeitos para a correcção das «más práticas» da presidente da Comissão e seus subordinados – uma vez que elas são inerentes à essência da própria comunidade. De qualquer maneira, contribuem para que cada um perceba o tipo de gente que está à cabeça das instituições que nos governam, sem que se registe qualquer assomo de crítica e de brio soberano de executivos dos Estados-membros, entre eles o português.
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